terça-feira, março 23, 2010

As responsabilidades que começam nos sonhos

Moro, desde há vinte anos, na Fracção Autónoma I, correspondente ao 2º Andar, B, de um Prédio destinado a habitação, constituído por um Hall, Sala Comum, um Quarto, cozinha, despensa, 2 casas de banho, uma varanda com a área de 5m2, e um lugar para estacionamento de veículo automóvel ligeiro, com a Área de 9m2, situado na garagem.

Sou titular desta fracção, desde o falecimento da minha tia Maria Joaquina, que morreu solteira, e sem qualquer descendente directo.

Ficámos, como Herdeiros Legais, e Universais, da tia Maria Joaquina, eu, e mais o meu primo direito - o André Filipe.
Desde essa altura, sempre residi na Fracção Autónoma I, correspondente ao 2º Andar, B, do Prédio destinado a habitação supra citado, sem quaisquer problemas.

Assim, não foi ligeiro o meu espanto, quando recebi uma Carta do Tribunal, que me intimava a comparecer, numa Audiência de Discussão e Julgamento. Tratava-se de um Processo que tinha sido aberto, com base em supostos problemas relacionados com a propriedade do imóvel acima citado, ou seja, a Fracção Autónoma I, correspondente ao 2º Andar, B, de um Prédio destinado a habitação.
O autor era o André Filipe, meu primo direito, que reivindicava a posse de metade do imóvel.

Compareci à Audiência, da qual não me recordo. Recordo-me, apenas, da Sentença, que dispunha o seguinte: “conferimos ao Autor André Filipe, a Legítima Propriedade de um terço do Hall, metade do Quarto, uma casa de banho, e 4m2 do lugar para estacionamento de veículo ligeiro, da Fracção Autónoma I, correspondente ao 2º Andar, B, do Prédio destinado a habitação, referido neste Processo”.

O André Filipe mudou-se, de imediato, para a Fracção Autónoma I, o que me causou enormes transtornos. Soube que ele residira, durante todos estes anos, numa remota quinta, no interior do país. Talvez por isso, a parte do Hall que lhe passou a pertencer, por direito, foi por ele utilizada para a construção de um mini curral. A banheira da casa de banho transformou-se em zona de plantação de abóboras, e beterrabas.

Deixei de conseguir dormir, pois o André Filipe mudou-se de armas e bagagens para o meu Quarto.
Digo a palavra “armas” de um modo literal. Descobri que o André Filipe gostava de dar tiros aos pombos, que passavam, a voar, perto da Fracção Autónoma I. Por conseguinte, havia, por todo o Quarto, um enorme arsenal, com todo o tipo de armas, carregadas.
O galo, que dormia num poleiro, perto da janela, cantava, invariavelmente, às 5 e meia da manhã.

Eu não podia discutir com o André Filipe. Sei, pelo senso comum, que se deve ter um bom relacionamento com um indivíduo que durma com 2 caçadeiras, carregadas, no leito da cama.

Mas achei a situação deveras estranha. Sabia, intimamente, que o André Filipe sempre odiara o campo, e os animais, incluindo as galinhas, as cabras, e os porcos.

Mais: era humanamente impossível que o André Filipe conseguisse pegar numa arma. Afinal, ele ficou sem braços, naquele "acidente" de comboio, ocorrido uma semana depois do falecimento da minha tia Maria Joaquina.
Mais: o André Filipe ficou sem pernas, naquele "acidente" de comboio.
Acrescentaria ainda: o André Filipe ficou reduzido, naquele "acidente" de comboio, ao tamanho de um chouriço chamuscado.

Como já devem calcular: o André Filipe faleceu há vinte anos, num "acidente" de comboio.
Desta forma, haveria duas possibilidades:
1- A Sentença do Tribunal deveria ser impugnada, com base na morte óbvia do Autor.
2- Tratava-se de um sonho. Eu continuava a ser a única Titular da Fracção Autónoma I, correspondente ao 2º Andar, B, de um Prédio destinado a habitação, constituído por um Hall, Sala Comum, um Quarto, cozinha, despensa, 2 casas de banho, uma varanda com a área de 5m2, e um lugar para estacionamento de veículo automóvel ligeiro, com a Área de 9m2, situado na garagem.

A segunda possibilidade ganhou grande consistência, quando me vi, de repente, transportada para a Sala de Embarque do Aeroporto, na companhia do Paulo.
Não se tratava do Paulo gordo, careca, e envelhecido, que partilhou a minha cama, durante os últimos anos – neste momento, eu estava na presença um belo indivíduo, de farta cabeleira, porte atlético, e com os dentes lavados.

Não consegui conter o espanto:
“Paulo, és tu?”.
Ele riu-se, naquele sorriso de gato de porcelana, que eu tanto apreciava, e disse-me:
“Sim, amor, claro!”
Perguntei-lhe:
“O que é que estamos aqui a fazer?”
E ele, com aquele sorriso Colgate anti tártaro, respondeu-me:
“Vamos fazer aquela viagem de sonho, com que tanto sonhavas! Vamos à Índia, ao Egipto, à Patagónia, e ao Tajiquistão!”
Respondi-lhe, entusiasmada:
“Ao Tajiquistão? A sério? Mas não tinhas medo de andar de avião?”
“Querida, neste momento, estás a projectar, em mim, todas as qualidades concebíveis num Ser Humano. Claro que não tenho medo. Mais: pago-te a viagem, e deixo-te ir à janela!”

Dei-lhe a mão, agradecida. Pegámos nos bilhetes, e passaportes, e preparávamo-nos para entrar no avião, quando um solícito Funcionário disse, ao analisar o Passaporte do Paulo:-Este senhor não pode entrar!
O Paulo respondeu-lhe:
- Ora essa, porque não? Renovei o passaporte há pouco tempo, e os bilhetes são válidos!
O Funcionário, imperturbável, respondeu-lhe:
- Tudo o que o senhor me está a dizer é verdade. O passaporte não está, de facto, caducado. Permita que lhe diga, caro senhor Paulo, que é bastante mais atraente, fisicamente, ao vivo, e a cores, do que aparenta, neste retrato.
O Paulo sorriu-lhe:
- Muito obrigado, é muito amável!

O Funcionário continuou o seu monólogo:
- Todavia, e apesar de o senhor Paulo ter o passaporte em dia, e de os bilhetes estarem absolutamente válidos, existe um pequeno senão. E agora, pergunto-lhe, caro Paulo, sabe qual é esse senão? Ora muito bem, este pequeníssimo senão consiste no facto de o senhor Paulo estar morto. Veja, existe uma lista negra, que me é disponibilizada, todos os dias, por uma moderníssima base de dados, que me avança o nome de todas as pessoas falecidas. Ora, diz aqui na lista que o “ senhor Paulo Cardoso se encontra falecido”.

O Paulo parecia inconsolável:
- Mas pensei que isso não constituiria um problema…não posso pagar uma taxa adicional?
O funcionário continuou:
- Regra geral, não existem, de factos, grandes entraves à entrada de indivíduos falecidos, nos aviões. Porém, o senhor Paulo deveria ter comprado um passe especial, o “Cartão Cliente Morto”, que inclui taxas adicionais. Os indivíduos munidos deste cartão têm de estar devidamente acomodados em caixões selados, e têm lugares reservados nos aviões. Ora, o grande problema é que estamos em época alta. Neste momento, milhares de pessoas querem viajar para o Tajiquistão. Desta forma, e uma vez que não recebemos informações, no sentido de reservar os lugares destinados aos clientes do “Cartão Cliente Morto”, esse lugares já estão todos ocupados.

O Paulo parecia não querer desistir:
- E se eu comprar agora esse Cartão? Não podemos viajar no próximo voo?
O funcionário respondeu-lhe:
- Lamento informar-vos, mas, neste momento, todos os voos, para os próximos meses, estão ocupados. Existe apenas uma hipótese.
“Qual é essa hipótese?”, perguntou o meu defunto marido.

- Ora bem, como já vos disse, o avião encontra-se cheio. Mas ainda há algum espaço na zona das bagagens de mão, e no cockpit do avião. Se o senhor Paulo Cardoso tiver muita vontade em viajar para o Tajiquistão, poderá, sempre, optar pela hipótese da cremação. Caso não saibam, temos, neste aeroporto, ao serviço dos nossos clientes, 5 moderníssimos fornos crematórios. A cremação é rápida, e nem necessitam de pagar pelo caixão. O senhor Paulo deverá, apenas, dirigir-se aos nossos balcões, depois de ser cremado, para lhe modificarmos o passaporte, uma vez que terá uma alteração substancial no seu aspecto físico.

Fiquei entusiasmada. No fundo, tinha medo que o Paulo engordasse, de repente, e que ficasse careca, e com mau hálito e os dentes podres. Se ele ficasse reduzido a um monte de cinzas, nada disto interessaria. Por isso, lancei-lhe o meu olhar mais sensual, e perguntei-lhe, enternecidamente:
- Então, querido? O que achas? Não deve ser complicado, e assim, nem tens de te preocupar mais com o teu aspecto físico, nem tens de voltar a comprar roupa.

Mas o Paulo não se mostrou convencido:
- Querida, eu concordaria com isso tudo. Mas há um pequeno senão: se eu for cremado, não posso voltar a praticar uma coisa de que gosto muito.
Lembrei-me dos nossos tempos de paixão, e de quando partilhávamos a cama, sem ser, apenas, para vermos quem ressonava mais alto. Por isso, disse-lhe:
- Oh querido, mas isso não é nenhum impedimento! Tenho a certeza de que existem dezenas de posições sexuais que podem ser praticadas por um indivíduo cremado!

Mas o Paulo, quase irritado, respondeu-me:
- Querida, quem é que está a falar de sexo? Eu estou a falar de armas! Como é que posso dar tiros aos pombos, estando reduzido a um monte de poeira? Vamos embora, iremos, à mesma, ao Tajiquistão, mas a pé!

Sem me dar tempo de responder, saímos, a correr, do aeroporto. E sem me dar conta, já atravessávamos os planaltos de Espanha, as montanhas do sul de França, a zona vedada de Chernobyl, os campos desoladores da Sibéria, ou os desertos da Austrália. Mas não havia maneira de chegarmos ao Tajiquistão.

Acordei, cansada, e cheia de sede. Ao meu lado, vi o meu marido, moribundo, com os olhos abertos, a arfar, e a cara arroxeada. O corpo movia-se, lentamente, com espasmos nervosos.
- Ainda estás vivo, querido? Afinal, o veneno demora mais tempo a actuar, do que eu pensava! Pobrezinho, deves estar a sofrer muito!

Comecei a acariciar-lhe a cabeça, e os poucos cabelos que lhe restavam. Isto pareceu sossegá-lo, pois entrou num sono profundo, e começou a ressonar. Este barulho teve o condão de me embalar, igualmente, e voltei, de novo, a adormecer.

Agora, nos meus sonhos, vejo sempre o Paulo e o André Filipe. Torna-se cada vez mais difícil residir no 2º Andar, B, de um Prédio destinado a habitação, constituído por um Hall, Sala Comum, um Quarto, cozinha, despensa, 2 casas de banho, uma varanda com a área de 5m2, e um lugar para estacionamento de veículo automóvel ligeiro, com a Área de 9m2, situado na garagem.

O curral, que anteriormente ocupava, apenas, o hall de entrada, alargou-se para a Sala Comum, para a cozinha, e para uma das casas de banho. Nem poderei chamar-lhe, tecnicamente, um curral, pois nele vivem, agora (para além dos porcos), três cabras, duas vacas, 4 avestruzes, 2 javalis, 6 cavalos e 1 gambuzino.

O que resta da casa (a varanda, e a outra casa de banho) foi totalmente ocupado por várias plantações - de beterrabas, abóboras, espinafres, couves lombardas, e bifes com molho tártaro.

Refugio-me no quarto, mas não tenho descanso. O Paulo e o André Filipe passam o dia todo aos tiros. Mas já não se contentam em atirar aos pombos. Agora, não têm pejo em disparar sobre todos os objectos que se mexam. E isso incluiu os transeuntes, nomeadamente, os meus vizinhos, que ficam irritados, e intentam, continuamente, novos processos judiciais, que visam despejar-me do 2º Andar B, do prédio destinado a habitação.

Como vêem, a minha vida, tornou-se, literalmente, num pesadelo. No meio de todas estas aflições, só vejo uma vantagem: passei a acordar muito cedo. Nunca me levanto depois das cinco e meia da manhã. Isto, porque o galo, que dorme num poleiro, perto da janela, canta, invariavelmente, a essas horas, todos os dias.

Tento mandá-lo calar, dar-lhe um tiro, mas sei, no meu íntimo, que sempre tive medo de armas de fogo. Levanto-me, irritada. Com todos estes problemas, a saúde é que se ressente. Só como porcarias. A ideia de poder comer verduras (beterrabas, abóboras, espinafres...) dá-me a volta ao estômago. Por isso, engordei, ando a perder os dentes e, com toda esta aflição, até perco cabelo (ainda agora, meti as mãos à cabeça, e saiu-me um grande tufo esbranquiçado de pêlos).







quinta-feira, março 18, 2010

Agenda Cultura - Crítica de Música

O público começa a chegar ao recinto por volta da hora do almoço, muito antes do início do espectáculo. Segundo nos explica uma jovem adolescente, vestida a preceito, “todos queremos estar lá à frente, para estarmos mais perto deles”. Às 20 horas, em ponto, abrem-se as portas do Pavilhão, e a multidão entra, em polvorosa, e impaciente.

Às 21.15, começa o Concerto. O Pavilhão “rebenta pelas costuras”, como se costuma dizer nestas ocasiões, e o público parece estar a gostar, pois entoa a primeira canção, em uníssono.

Mas o espectáculo está apenas no início. Em palco, vemos uma vulgar banda “da moda”, com os instrumentos do costume – guitarras, um baixo, teclas, bateria, voz. Está tudo pintado com tonalidades escuras. Há um pano, por detrás do palco, com o ridículo logótipo do grupo – um dragão alado, com uma guitarra. O vocalista puxa pelo público, o guitarrista parece encadear-se com toda a parafernália visual, instalada em volta do palco – vários holofotes, ecrãs gigantes, fumos, luzes multicolores, e a mascote oficial da banda – um porco, insuflado.

Vou buscar uma cerveja, para tentar combater o tédio. Volto a meio da terceira “canção”, a tempo de ver o que interessa, ou seja, o verdadeiro início do concerto.

Ninguém parece estar à espera do que se irá passar. As adolescentes continuam a fotografar, e filmar o palco, com os seus telemóveis, prontas para meter tudo nas redes sociais, mal cheguem a casa.

Os seguranças estão tranquilos, mãos nos bolsos. Afinal, trata-se de um público maioritariamente jovem, supostamente pacato, e que não se quer meter, propriamente, em confusões.

Até que eles chegam, pelas zonas laterais do palco. São cerca de 12 elementos, e estão com a cara tapada. O público não os aplaude, a sua entrada parece ter apanhado todos de surpresa.

O Porta-voz do Colectivo chega ao proscénio, dá um murro ao vocalista da banda, afastando-o do microfone, e anuncia:
- Boa noite, nós somos o Colectivo “A Arma é uma Canção”. Sejam bem-vindos, e espero que gostem!

Depois, o Colectivo, sem mais delongas, começa a disparar sobre todos os presentes, indiscriminadamente.
Trata-se do tema de abertura, “Uma morte singular é uma tragédia, um milhão é uma estatística”, e é recebida com um coro de gritos.

A introdução do tema (execução sumária de todos os elementos da banda, em palco), é feita na perfeição. O vocalista é morto com um único tiro, na cabeça, entre os olhos.
O baterista é morto com um tiro de bazooka. A violência do estrondo faz com que o seu corpo se desloque alguns metros, e fique colado ao fundo do palco, junto ao logótipo da banda, que começa a ficar inundado de sangue.
O baixista é degolado, com uma catana, e o seu corpo, sem cabeça, parece manter-se de pé, durante alguns segundos (ou terá sido ilusão de óptica?)
O resto do grupo é morto, igualmente, com requintes de mestre.

A verdade emocional, por contraponto à verdade conceptual, é o motor criativo subjacente à produção da “Arma é uma Cantiga”. Num primeiro contacto visual com as suas performances, sobressai, desde logo, uma energia luminosa fornecida pelos desequilíbrios cromáticos, e pela tensão entre as diversas cores.

Isto nota-se particularmente bem a partir do momento em que o palco se encontra totalmente repleto das mais diversas tonalidades de cores avermelhadas, provenientes dos corpos dos elementos da banda que estava a tocar, aquando da invasão de palco, e dos seguranças, que tentaram intervir, logo quando tomaram conta do que se passava.

O público parece dividir-se. Uns, ficam estáticos, extasiados, transidos de medo. Outros, reagem de outra forma, correm para o fundo do Pavilhão, pois foram acordados da sua dormência, da sua pequena segurança de um entretenimento fútil, e tentam fugir.

Compreende-se. Estão habituados a uma violência televisionada, servida à hora do jantar, entre dentadas da sua Happy Meal empacotada, e o espectáculo que lhes é oferecido (uma violência quase erótica, com altas temperaturas, e onde se sente a proximidade vulcânica de uma violência latenta) repugna-os, estarrece-os.

Correm para o fundo do Pavilhão, mas – Oh, sem que isso de nada lhes sirva. Isto porque são, de imediato, fuzilados, e os seus corpos são, depois, expostos em ganchos de talho (trata-se de um paralelismo com o processo de admiração, morte e embalagem dos animais, mas usando adolescentes em substituição dos animais, criando um paralelismo entre a maneira desapaixonado como se abatem animais para consumo e a imagem dos jovens como objecto descartável de desejo, tal como é nos apresentada nos dias que correm em todos os medias).
Mas o mundo é um lugar violento, e a arte também, e a vida, o sangue, os corpos, a morte…

Quando chega o hit do grupo “A liberdade política está na ponta da espingarda”, já foram dizimadas mais de metade das pessoas que estavam presentes, inicialmente, no recinto.
Talvez isso explique a estranha calma com que foi recebido o tema. Mas este foi tocado na perfeição, com o seu coro de serras eléctricas, a sobressair, por entre um acompanhamento com zagalotes.

Apesar de todo o aparato visual, e sonoro, que acompanha todos os espectáculos de “A arma é uma cantiga”, poderemos dizer que se tratou de uma performance pragmática e eficaz. Os artistas limitaram-se a dizer o nome dos temas, e quase nada acrescentaram, para além dos normais agradecimentos.

Talvez se tenha perdido algum envolvimento emocional entre palco e plateia, mas ganhou-se uma solenidade salutar, só interrompida quando algum elemento da assistência se exaltava, em demasia, na hora da sua morte, e começava a berrar, pedindo clemência.
Os próprios arranjos das canções contribuíram para essa sensação de sobriedade: de fora ficaram os arranjos mais grandiosos, feitos por instrumentos, como o canhão, a G3, ou os Lança-chamas.

O espectáculo ganhou com isso. As canções ficaram mais vulneráveis, e próximas de todos nós.
Tudo terminou por volta das 23 horas, depois de terem sido tocados os temas “O perigo mortal é um antídoto eficaz para as ideias fixas”; “Não são os neutrais ou os indiferentes que fazem a História”; “Criar dois, três, muitos Vietnames – esta é a palavra de ordem” e, para terminar, em ambiente de grande emoção, “Ninguém gosta da minha actuação, excepto o público”.

Depois, os Artistas levaram consigo algumas raparigas da assistência, escolhidas a dedo, e recolheram aos camarins, para verem o resumo dos jogos da Champions League.

O próximo concerto/invasão de Palco ainda não está agendado. Mas será, certamente, habitado por imagens em conflito, energias alternativas e figurações de um universo humano disforme, em busca de representação.

Nota final: 4,5 estrelas (faltaram as menções à cidade, ou à beleza e simpatia do povo local. Deu a ideia de que, a certa altura, os Artistas não sabiam onde estavam a actuar. Podiam ter dito, por exemplo “hoje comi uma magnífica açorda, ao almoço”. Ficava bem, e ficaríamos a saber que se interessavam pela nossa cultura, e tradição).







quarta-feira, março 10, 2010

Não te prendas a uma onda qualquer

Nunca tive jeito para a música, pelo menos, no que toca à parte da execução.

Quer dizer, de certa forma, até tenho, se aplicarmos outros sentidos à palavra “execução”. Expliquemos um pouco melhor: a minha relação com um instrumento musical pode ser exemplificada nesta frase: “executo muito bem este piano. Ele faleceu depois de muitas horas de sofrimento”.

E não estou a falar em termos abstractos. Eu executei, de facto, o piano da minha avó, quando tinha 12 anos, no momento em que a última tecla que ainda emitia algum som se calou para sempre, depois de meses de maus tratos permanentes.

Igual sorte tiveram as guitarras, flautas, ou instrumentos de percussão em que tentei tocar, que de tanto sofrerem às minhas mãos, acabaram por se quebrar, e ir parar à tumba.
Por isso, não será de estranhar que tenha desenvolvido, desde o início, uma relação um pouco tumultuosa com a zurna, instrumento que me foi apresentado durante a minha última visita a um país islâmico.


Dizem os entendidos que a “zurna deve ser tocada utilizando uma respiração circular”.
Confesso que não compreendi o significado desta expressão. Seja como for, e depois de várias dezenas de tentativas, não consegui extrair da zurna o mais remoto resquício de algo a que se pudesse assemelhar a um vestígio de som.
Pensei, obviamente, para com os meus botões: mais um instrumento falecido prematuramente às minhas mãos.
Fiquei desapontado, e atirei a zurna para cima de uma estante, na sala, onde ficou a repousar durante um bom par de meses.


A história ficar-se-ia por aqui, caso não tivesse encontrado, num alfarrabista, um exemplar, Já muito velhinho, das “50 Pautas das Melhores Canções Revolucionárias”, saída nas (já extintas) Edições Omba – Hong.

Comprei, entusiasmado, o livro, mas ao chegar a casa, lembrei-me que não possuía nenhum instrumento musical, desde que tentara tocar, com ferrinhos, o hino da Eurovisão (nessa ocasião, os ferrinhos partiram-se ao meio, à entrada da terceira nota da canção).

De repente, lembrei-me da zurna. Retirei-a de cima da estante, limpei-a (a exposição prolongada à atmosfera da minha sala oferece, a todos os objectos que por lá permanecem, uma boa quantidade de pó), e comecei a tocar o “Hasta Siempre Comandante”, do Carlos Puebla.

Ao princípio, nada de novo. Da zurna, continuavam a sair sons inaudíveis.
Mas insisti, e resolvi tocar a música até ao fim.
A partir da segunda quadra (Aquí se queda la clara,la entrañable transparencia,de tu querida presencia /Comandante Che Guevara), comecei a ouvir uns ruídos, quase indistintos, de início, mas que começavam a ganhar vigor, e intensidade, à medida que avançava pela canção.
Eram ruídos secos, e fortes, que se assemelhavam a instrumentos de percussão. Pensei: “não estou a tocar bem, a zurna tem um som agudo, quase esganiçado. E este barulho que agora oiço, não corresponde às notas do “Hasta Siempre Comandante”.


De repente, olhei em volta, e deparei-me com um cenário insólito. Descobri que o ruído não provinha da zurna. Também não provinha de outros instrumentos musicais. Essas batidas secas, intensas, fortes, e vigorosas tinham origem nas cadeiras da sala, que se agitavam, freneticamente. E não se agitavam devido a um terramoto, ou a alguma catástrofe natural: as cadeiras da minha sala, dançavam, simplesmente, ao som do “Hasta Siempre Comandante”.
Quando parei, as cadeiras imobilizaram-se.


Experimentei tocar outras canções: “A las barricadas”; “Bandiera Rossa”; “No Pasarán”; ou “The Red Flag”. Todas foram acompanhadas, entusiasticamente, pelas cadeiras.
Depois, experimentei tocar outras músicas, com um conteúdo lírico menos politizado, como o “Summertime”, o “Nikita”, ou alguns êxitos da Madonna, Cat Stevens, ou Tina Turner. Mas as cadeiras mantiveram-se imóveis (se bem que eu tenha notado um tímido bater de pé da minha cadeira de baloiço, ao som do hino gay “Freedom”, do George Michael).


Cheguei à conclusão de que as cadeiras dançavam apenas ao som de canções de teor revolucionário.

Cheguei, igualmente, à conclusão de que as cadeiras executavam diversos tipos de dança, conforme as canções – o bolero, o samba, ou o tango eram escolhidos, geralmente, para temas sul-americanos.
A polka era mais utilizada para canções revolucionárias russas, por exemplo.
Mas esta divisão entre tipo de dança, e origem geográfica da canção não era absolutamente estanque. Cheguei a ouvir, por exemplo, o “Grândola Vila Morena”, acompanhada por um animado Fox Trot, ou a “Marselhesa” acompanhada pela Dança Mexicana do Chapéu, ou pelo Fandango.


Fiquei muito animado, e cedo percebi o enorme potencial comercial deste fenómeno.
Ao princípio, convidava os meus amigos, para assistirem aos eventos. Depois, comecei a cobrar-lhes entrada. Passado pouco tempo, os meus amigos falavam aos seus amigos das fabulosas danças das cadeiras a que haviam assistido.


O efeito do “palavra passa palavra”, aliado à publicidade gerada nas redes sociais do Facebook, ou do Myspace, que anunciavam os espectáculos, levou a que, passado poucas semanas, a “Dança das Cadeiras” se tivesse tornado num enorme fenómeno popular, e de massas.

Com o sucesso, surgiram centenas de ofertas, a requisitar os serviços das incríveis cadeiras. Eu, como manager, tomei a decisão mais sensata: aceitei todos os pedidos e, em breve, a minha agenda ficou preenchida com todo o tipo de trabalhos. Vou recordar alguns dos mais marcantes:
1- Os anúncios da Moviflor, cujo plot obedecia sempre à seguinte ideia: “Compre aqui todos os seus artigos para a casa. As suas mobílias dançarão de alegria”.
2- O filme “A verdadeira história da queda de Salazar”, onde se contava que a sua queda da cadeira não se tratara de um mero acidente, mas sim de uma conspiração levada a cabo pelo KGB, e pelos “Panteras Negras”, que utilizavam cadeiras (que funcionavam como seus agentes duplos) para perpetrarem uma série de atentados.
3- O programa de debates “A cadeira do poder” – todas as semanas eram colocados, frente a frente, dois políticos, que tinham de responder a uma série de questões. O político que perdesse o debate era atirado da sua cadeira. O político vencedor manter-se-ia na cadeira, até à semana seguinte, altura em que lhe impunham outro adversário, para um novo frente-a-frente.
4- O programa de Entretenimento “Dança Comigo”, adaptado a cadeiras (várias celebridades tinham de dançar com cadeiras).


E tantos outros…
Ganhei muito dinheiro, nos meses seguintes.
Todavia, talvez devido à sobrecarga de trabalho, muitas cadeiras ressentiram-se do esforço, e começaram a partir-se. Tentei comprar nova mobília, mas cedo compreendi que apenas as cadeiras originais da minha casa conseguiam dançar. Por isso, apenas me restou tentar consertá-las, o melhor possível.
Mas as cadeiras começaram a perder elasticidade, e não dançavam tão bem quanto antes. Para além disso, esgotaram o seu repertório de danças. As minhas tentativas de lhes ensinar “Break Dance”, “Hip Hop”, “Sapateado” ou “Table Dance” resultaram em rotundos fracassos.


O interesse do público também se ressentiu desse facto. Os críticos queixaram-se da “repetição e falta de frescura” dos espectáculos, e as salas começaram a esvaziar-se. Em poucos meses, passámos de um Pavilhão Atlântico esgotado, e de um estatuto de Cabeças de Cartaz no Rock In Rio, para figurantes em peças do Filipe La Feria, e pequenas salas semi-vazias em localidades de província, como Lamego.

Até que um dia, cheguei a casa, para preparar um ensaio geral, e deparei-me com um papel, escrito a lápis, e colado à zurna. O papel dizia o seguinte:

Que força é essa que trazes nos braços,
Que só te serve para obedecer
Que só te manda obedecer
Que força é essa, amigo
Que te põe de bem com outros e de mal contigo
Que força é essa, amigo?

Não compreendi o significado do texto. Rasguei o papel, e comecei a tocar na zurma. Mas as cadeiras continuaram imóveis, como se de cadeiras se tratassem.

Insisti. Toquei o antigo repertório, adicionei novas músicas revolucionárias, como alguns temas do Valete, ou do Sam the Kid, mas nada se passou. As cadeiras mantiveram-se estáticas.
No dia seguinte, tentei fazer um novo ensaio, mas os resultados foram os mesmos (nulos) -Toquei todo o repertório que conhecia, de músicas revolucionárias. Depois, tentei tocar alguns êxitos de música pop, canções dos Beatles, Coldpay, U2, ou alguns êxitos da Madonna, Cat Stevens, ou Tina Turner. Mas as cadeiras mantiveram-se imóveis (se bem que eu tenha notado um tímido bater de pé da minha cadeira de baloiço, ao som do hino gay “Freedom”, do George Michael).


Tive de cancelar os espectáculos e anunciar o fim das magníficas cadeiras dançantes. À imprensa, não contei o sucedido (talvez na esperança de uma recuperação das Artistas), falando, apenas, em “divergências criativas”, que teriam culminado numa “separação amigável”.

E acabou-se aqui a história. Aprendi a fazer uso da respiração circular, e passei a tocar zurna, no metro, ou na rua (trabalho, geralmente, na zona do Chiado, ao pé do Café “A Brasileira”). De vez em quando, para matar saudades, toco uma ou outra canção revolucionária.

Quanto às minhas anteriores parceiras artísticas, não voltaram a dar sinais de vida. Mas não as deitei fora. Continuam espalhadas, pela sala, semi-partidas, e com um pouco de pó, a acumular-se-lhes em cima. Como não tenho coragem para me sentar em cima delas (talvez por pudor?), sento-me no chão frio da sala, enquanto vejo na RTP memória as reposições dos antigos espectáculos das cadeiras.

Depois, vou-me deitar. A meio da noite, oiço, de vez em quando, ruídos secos, e fortes, que se assemelham a instrumentos de percussão. Levanto-me, sobressaltado, e com uma súbita esperança na ressurreição das minhas velhas companheiras.

Mas vou à sala, e nada vejo. Reparo que o barulho tem origem no andar de cima, e lembro-me, de repente, que deve ser o meu vizinho (não é o serial killer, é o outro), que costuma partir a cama do seu quarto, enquanto pratica actos sexuais de relevo.

Deito-me, de novo. Revejo, mentalmente, as músicas que terei de tocar, no dia seguinte, no metro, logo de manhã, à hora de ponta. E fico preocupado. Não é um emprego que me agrade, verdadeiramente.
Afinal, nunca tive jeito para a música, pelo menos, no que toca à parte da execução.


Adormeço, com uma canção a ecoar-me, aos ouvidos:
“Aprende a nadar, companheiro….”