Cuculito
«É certo que a Arte consiste no aperfeiçoamento da forma. Mas vós – e deparamo-nos aqui frequentemente com um outro cardeal erro vosso – imaginais que a Arte consiste na criação de obras perfeitas; reduzis aquele imenso e pan-humano processo de criar a forma a produzir poemas ou sinfonias; e, mais ainda, nunca soubestes apreciar devidamente, e aclará-lo para os demais, quão enorme é o papel da forma na nossa vida. Mesmo na psicologia, não soubestes consignar à forma o lugar devido. Até agora continuamos a julgar que são os sentimentos, instintos ou ideias que regem a nossa conduta, enquanto que a forma a consideramos antes como um inofensivo e suplementário adorno. E quando a viúva, acompanhando o ataúde do seu marido, chora com ternura, nós pensamos que chora porque sente dolorosamente a sua perda. Quando algum engenheiro, médico ou advogado assassina a sua esposa, filhos ou amigo, opinamos que se deixa levar para o assassinato por sanguinários e raivosos instintos. Quando algum político se expressa estúpida, mentirosa e limitadamente no seu discurso público, dizemos que é estúpido porque estupidamente se expressa. Mas na realidade o assunto apresenta-se assim: o ser humano não se exterioriza de modo imediato e concordante com a sua natureza, mas sempre numa forma definida; e esta forma, aquele estilo, modo de ser, modo de falar e reagir, não provém só dele, mas é-lhe imposto desde o exterior; e passa-se aqui que este mesmo homem pode manifestar-se por fora, ora sábia, ora estupidamente, sanguinária ou angelicamente, madura ou imaturamente, segundo a forma, o estilo que se lhe apresente e no modo como é pressionado ou limitado pelo próximo. E se os vermes e insectos correm e voam todo o dia em busca de comida, nós, sem nenhum momento de descanso, sem cessar, estamos em busca da forma de expressão, batalhamos com outros homens pelo estilo, pelo nosso modo de ser e, viajando num eléctrico, comendo, divertindo-nos ou descansando ou fazendo negócios, sempre e sem cessar buscamos a forma e deleitamo-nos com ela, ou sofremos por ela, ou nos adaptamos a ela, a quebramos e violamos, ou nos deixamos violar por ela, amén.»
(Witold Gombrowicz, Ferdydurke)
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