terça-feira, fevereiro 20, 2007

Uma longa citação -1

FORMIGA: No verão o que fazias? Boa vida?
CIGARRA: Eu cantava noite e dia, a toda a hora!
FORMIGA: Bravo! Cantavas! Pois agora dança!

Desde que me contaram a fábula de A Cigarra e a Formiga, eu aprendera que o Inverno era um fenómeno malvado, severo, vingativo, – que castigava os contentes e era clemente para com os tristes –, e desde então eu levava o Inverno muito a sério. Se a moral da história era homenagear o trabalho, a temperança e o esforço, então não entendia qual o papel da cigarra cantadeira nesta história. Sempre achara que a cigarra cantadeira só entrava na história para emprestar validade à lição de moral da formiga e, além de fazer a pobre da formiga sentir-se recompensada pelo seu trabalho, não entendia esta vontade sub-reptícia de castigar a cigarra. Não se ensinavam só as virtudes do esforço, como se aprendia também uma espécie de merecida vingança latente como um prémio, talvez o único verdadeiro consolo da formiga.
Os dois bravos bicharocos consagravam a ética insectívora, que estava na base da moral minúscula, e que a humanidade iria adoptar para si, por tão bem lhe servir. Repreendia-se a vida da cigarra e elogiava-se a sobrevivência da formiga.
O mais admirável de tudo é que a fábula vinha da cabeça de um escravo no ano 1000 antes da era de Cristo. E o que o velho Esopo não podia adivinhar é que durante os três mil anos que se lhe seguiram, as nossas queridas mães iriam embalar os seus filhos (os mortos e os por nascer) com esta historieta, iriam ensinar às suas crianças como era desejável ser formiguinha. Esopo chegou a todas as partes do mundo, e há mais de três mil anos que sabemos quem somos, de onde vimos e para onde vamos. Está tudo lá.
O mundo dos homens reconverteu-se num formigueiro sem escrúpulos, as cigarras cantadeiras puta-que-as-pariu, e o cifrão assumiu a linguagem codificada comum a todos os homens na terra.
Criaram-se duas estações imaginárias, o Inverno e o Verão. Os Invernos tanto maiores quanto o poder de formigalizar, assim como os Verões tanto mais minúsculos quanto a incapacidade de cigarralizar. Ao cabo de três mil anos, a humanidade ocidental dá por vitórias o direito de todos a trabalharem, a consolidação dos direitos dos trabalhadores e a ideologia sindical. Considera o desemprego um flagelo e formulou uma utopia social cujo cerne é o trabalho. Assim evoluímos, sempre acreditando na libertação pelo trabalho. Há milhares de anos que mantemos uma gramática laboral a partir da qual nos fazemos reproduzir, comunicar e sofisticar. Milhares de anos sobre uma gramática antiga, primitiva, obsoleta, a matriz sobre a qual erigimos uma sociedade tecnológica, tanto mais obsoleta quanto mais avançada, estéril na sua essência.
Não obstante, aqui produzimos o nosso horizonte de sentido. Alienamos os músculos e os nervos a tempo inteiro em actividades sérias (porque a trabalhar não se brinca) e o tempo que nos sobra é classificado de tempo livre, a maior parte das vezes como sinónimo de tempo morto, aborrecimento, necessidade de fazer qualquer coisa que nos faça distrair do tempo livre – um passatempo, como tão bem dizemos, para nos aliviar do peso de nos sentir à solta, da opressão de se sentir livre.
A lição foi tão bem assimilada que nos corre no sangue, o trabalho tornou-se um valor indiscutível e as férias dos trabalhadores um subtil instrumento de valorização do trabalho através de uma astuciosa encenação do ócio e do lazer, levando-nos a acreditar que a vida não é assim e que, ao final de contas, estamos a perder tempo com o nosso tempo livre.
O sermão da formiga à cigarra representava o triunfo do trabalho sobre o recreio ou, noutros termos, o delito original, o assassinato incessante da infância pelas forças despóticas do Capital, de um Capital que há milhares de anos que nos cultivava, educava e governava. A história da humanidade não era senão um episódio da história do Capital.

No princípio era o Capital, o corpo pleno dos desertos, movia-se veloz como um vento despótico sobre todas as partes. Da Casa fez o deserto, da Luz fez o ouro, da Fome fez o homem, e dos três nasceu o corpo anárca – a Moeda (in God we trust).

[...]

Quando Esopo escreveu a fábula d’A Cigarra e da Formiga, sem que o soubesse, estava a inaugurar a grande narrativa do Capital, a contar a história em função da qual todas as outras narrativas se vinham constituindo. O Capital expandiu-se e aliou-se. Reencarnou todas as formas no tempo e no espaço, o seu corpo era pleno e a sua força indómita. Trouxe os homens à existência, multiplicou-os e governou-os. Aliou-se a Deus e fez dele o seu Soldado Desconhecido, “In God we trust” foi tatuado no corpo incarnado do Capital, multiplicado e propagado pela terra.
Porém, uma outra força deslocava-se a velocidades infinitas no Universo. O Deserto Anárca, o elemento da assolação, por essência, sem corpo nem forma, estendendo-se a todas as partes e renascendo em todas as coisas como um vento de morte, um sopro estépico sob o anelo da falência. Aonde o Capital fez viver, o Deserto fez morrer, sob a lei entrópica da estiolação.
O mundo era um precipitado excrescente de duas forças cegas que se gladiavam num Universo remetido a um eterno silêncio de estrelas mortas. Haveria que acontecer um apocalipse, mas que nada tivesse que ver com o fim, mas sim com um começo. O mundo, como o representávamos para nós próprios, jamais iria acabar, porque também nunca tinha verdadeiramente começado. O Universo nunca tinha deixado de ser nocturno e o mundo uma fulguração onírica de uma guerra invisível. O que havia de acontecer não era o fim desta guerra, mas a aliança e o ajustamento das forças que a compunham. E depois expandir, expandir essas grandes forças pela vida adentro, direccionar a guerra para vida, tomar de vez o espaço vital até à anulação absoluta, a consumação do fim absoluto, a consagração do Exício.
Tanto o Capital Despótico como o Deserto Anárca atingiam o máximo de poder, o máximo de vulnerabilidade e o máximo de resiliência. Impossibilitadas de derrotar a força que se lhes opunha, a grande revelação da era posterior a Esopo seria, então, a fusão do corpo do Capital com o sopro do Deserto, a narrativa do Capital e as leis da Entropia. Uma a reencarnar na outra, num incessante coito de penetrações infinitas. Através de um movimento inédito, as duas forças cruzaram-se num movimento simultâneo e o lado que lhes pertencia deixado penetrar pelo outro, que agora se constituía também como o seu. Um movimento de dupla penetração simultânea onde cada uma das partes insemina e é inseminada pela parte que inseminou, renascendo como pai e filho cada uma das partes de um corpo só. O Capital tornara-se filho do Deserto, e este filho daquele. Nenhum perde nem modifica forças, somente as compatibiliza, tornando-as familiares pelo matrimónio.
O Capital encontrava a sua força gémea, o Deserto ou horto da extinção. Do pó fizera a carne e do petróleo o sangue, do delírio fizera a lei e a sede era a sua sentença. Condenou o homem a passar e a não ficar e condenou o exilado a ficar e a não passar.

[...]

O Corpo Despótico tinha cativado as forças celestes e as forças da vida, o Deus de Moisés – o guerrilheiro – e o Trabalho como fonte de calor. Do mesmo modo, o Sopro Anárca desintegrava as forças celestes e soprava forças da morte: Alá, o deus da desolação e da Entropia, o sopro frio da fadiga.
As mutações, as alianças e as reencarnações das forças ocorreram no espaço cronológico, mas a essência das suas forças, a sua origem e o seu propósito não estão no espaço cronológico, mas num espaço infinito e num tempo imobilizado, num espaço que se alastra a todos os tempos, num tempo que se alastra a todos os espaços. Um espaço infinito, aonde as coisas resplandecem no seu presente, no seu passado e no seu futuro, num tempo único formando um ponto que é a sua imagem espacial, o ponto infinito, um lugar matemático, soberano e impossível: o limite. O limite aonde todas as coisas antes de serem já são, aonde o princípio e o fim coincidem, o limite aonde entram em constelação infinitos pontos prefigurando constelações de forças que se unem ou desassociam segundo as leis básicas da atracção ou da repulsão, constituindo alianças, corpos plenos, ventos, que depois reencarnam na moeda, na fome e no espírito, originando o Capital Despótico, o Deserto Anárca e a Vida, motivando a História, encarnando o mundo. Aqui estamos na margem extrema do mundo, fora dele, aonde não existe mais o raciocínio nem a inteligência, somente movimentos velozes e imperceptíveis, movimentos peristálticos, imobilidades, intensidades, um deserto repleto de ventos, corpos nocturnos, espasmos.

[...]

REPTÍLIA OU AXIOMAS DE VIDA SOFISTICADA:

Axioma 1: Ecotrópica
Proposição Arterial: a Economia deve proteger o Trabalho das forças do corpo Despótico.
Proposição Venosa: as forças do Capital subtraem despoticamente as forças de vida.
Proposição Marcial: Calor versus Capital

Axioma 2: Biotrópica
Proposição Arterial: A Ecologia deve reciclar o desperdício por via a retardar os efeitos da Entropia.
Proposição Venosa: as forças do Deserto dividem anarquicamente as forças de vida.
Proposição Marcial: Excremento versus Corpo Anárca

Axioma 3: Heliotrópica
Proposição Arterial: A redenção das Trevas pela Luz.
Proposição Venosa: as forças do Mal anulam as forças da vida.
Proposição Marcial: o Sol Negro do Meio-Dia versus Exício.

Síntese Nervosa 1: axioma 1, axioma 2 e axioma 3 são sofisticadas forças de vida que se alargam a todos os espaços e a todos os tempos. Movem-se a velocidades infinitas no espaço infinito, tal como as que a elas se opõem.
Síntese Nervosa 2: os axiomas descritos incarnados no corpo da vida produzem Liberdade.
Síntese Nervosa 3: Todo o corpo livre é um corpo Alegre, todo o corpo alegre é um corpo livre.

(I.D.L.C., Heliotrópica 3. A Oração do Exício)

2 Comments:

Blogger Maria Ostra said...

formiguinhas trabalhadeiras - puta que-as-pariu!
(mas lá que tem que ser!Ohhhhh!! :/)

2/21/2007  
Blogger Maria Ostra said...

p.s.: sempre disse que o deserto era para os camelos! ;)

2/21/2007  

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