Guião Operativo de Habilitação de Progenitores -1
CAPÍTULO 1 – ANUNCIAÇÃO
Luís
Nunes é um Homem Médio, com todos os defeitos do
Homem Médio e com algumas virtudes prévias:
. Conta bancária.
. Vontade de trabalhar.
. Razoável falta de rumo, mas uma vontade indomável de dar a
volta à situação, mas sempre com uma bondosa e saudável resignação.
Numa manhã de sábado, quando Luís Nunes tem à volta de
trinta primaveras no seu currículo vital, tocam-lhe à porta insistentemente.
Luís não faz caso. Uma chuva suave molha tolos, aliada a uma
ressaca de proporções consideráveis, advinda de uma noite simpaticamente
prolongada, convidam a uma estadia no fundo do vale dos lençóis.
O seu sonho reparador é acordado por um TRIMMMM muito
estridente, que se transforma em TRIMMMM TRIMMMM TRIMMMM
quando se demora a levantar da cama para abrir a porta a tão incómodas visitas
matinais.
Decide-se a levantar da cama, não sem antes se espreguiçar
muito lentamente, o que leva a que os TRIMMM se multipliquem mais umas quantas
vezes.
“Já vai, já vai”
Luís levanta-se da cama nos mesmos preparos com que se
deitara, ou seja, sem preparos e sem roupa no corpo.
Não pretende estar com grandes cerimónias, pensa tratar-se
do mesmo trio de sempre de velhas senhoras Jeovás, que o presenteia com um
salmo e uma interpretação da Bíblia a um ritmo semanal.
Abre a porta.
“Ó Dona Odete, Dona Natércia e Dona Lucinda, desta vez
vieram mais cedo do que o costume. Qual é o salmo do dia e qual….”
Luís não acaba a frase, pois encontra-se frente a frente com
um senhor de bigodes farfalhudos. Depressa se apercebe do erro cometido. O
homem de bigode em nada se assemelha a um membro de grupo de propagação matinal
da palavra do Senhor.
Luís tenta manter a compostura exigível para ocasião tão
solene. Tossica, para aclarar a voz e num tom que pretende ser um tanto ou
quanto ríspido e indiferente, mas que se concretiza num falsete pouco convincente,
dispara numa nota fora de escala:
- Pois não. Queira desculpar-me pelo atraso com que demorei
a abrir a porta. O que deseja?
O seu interlocutor entrega-lhe um impresso para as mãos e
responde num nem sucedido tom ríspido e indiferente:
- Encomenda para o 3º B. Luís Nunes. Estou a falar com Luís Nunes?
“Então é isso”, pensa Luís para com os seus botões. Serviço
de entregas. As peças do puzzle começam a encaixar-se e pode compreender
finalmente porque é que o senhor que se lhe apresenta pela frente naquele
sábado matinal enverga uma camisola vermelha, com letras brancas garrafais, que
dizem “Serviço de Entregas”. O seu raciocínio lógico chega ao corolário
definitivo quando repara num enorme embrulho que se encontra pousado ao lado do
funcionário do “Serviço de Entregas”.
Luís é assaz curioso e gosta muito de prendas. Por isso, não
consegue disfarçar o seu falsete desengonçado:
- Sim, sou o Luís
Nunes…Uma encomenda? De que se trata?
O seu interlocutor responde, um pouco impaciente:
- De que se haveria de tratar? É o carrinho.
O carrinho. Pois claro. Então não haveria de ser o carrinho.
Mas que carrinho? Estes pensamentos invadem o cérebro de Luís, por isso
exterioriza-os:
- O carrinho. Pois claro. Então não haveria de ser o
carrinho. Mas que carrinho?
O interlocutor responde, sem se intimidar com a pergunta e
assumindo uma postura um tanto ou quanto mais impaciente:
- Que carrinho haveria de ser? É o carrinho do bebé,
obviamente.
Obviamente. Olhando para o embrulho, Luís facilmente se apercebe
de que o funcionário do “Serviço de Entregas” está a falar toda a verdade. É
que o embrulho tem mesmo a forma de carrinho de bebé. Quer dizer, não é o
embrulho que tem a forma de carrinho de bebé, os embrulhos não assumem, por
regra, a forma de carrinho de bebé e este não é excepção, nem sequer tem
desenhos de carrinhos de bebé. Trata-se de um embrulho simples, todo vermelho.
Mas o objecto que se esconde por dentro do embrulho corresponde perfeitamente à
imagem mental que o Homem Médio associaria a um carrinho de bebé.
Até aqui tudo bem. Há um senhor com um uniforme a dizer “Serviço
de Entregas” e que acaba de comunicar a Luís que tem uma entrega para fazer.
Depois salienta que se trata de um carrinho de bebé e o objecto embrulhado tem,
de facto, a aparência de um carrinho de bebé.
Mas algo não bate certo, pensa Luís, que não consegue
disfarçar uma certa perplexidade perante o rumo dos acontecimentos. Afinal,
pensa em voz alta, “eu não encomendei nenhum carrinho de bebé”. Tenta fazer
valer esta alteração substancial de factos mas a sua retórica esbarra contra a
parede de betão pragmática do seu interlocutor, que responde fleumático:
- Como é que não encomendou o carrinho? Veja a nota de
encomenda:
Carrinho
de Bebé modelo “Flash Supreme Baby – RX 350”
Dimensões Carrinho aberto: 95 x 55 x 105 cm
Dimensões Carrinho fechado: 41/46 x 34 x 96 cm
peso 10,7 kg
Idade adequada: do nascimento aos 36 meses (até 15 kg de peso).
Dimensões Carrinho aberto: 95 x 55 x 105 cm
Dimensões Carrinho fechado: 41/46 x 34 x 96 cm
peso 10,7 kg
Idade adequada: do nascimento aos 36 meses (até 15 kg de peso).
Inclui:
Berço dobrável tipo guarda-chuva.
Bassinet dupla altura.
Duas rodas com freio para facilitarem o transporte.
Bolsa de transporte, colchão e arco de jogos.
Berço dobrável tipo guarda-chuva.
Bassinet dupla altura.
Duas rodas com freio para facilitarem o transporte.
Bolsa de transporte, colchão e arco de jogos.
Está:
Conforme a normativa Europeia UNE-EN 72341/2:2010, EN 71:2015/1/25.
Conforme a normativa Europeia UNE-EN 72341/2:2010, EN 71:2015/1/25.
Luís fica impressionado com as magníficas qualidade técnicas
do produto que se lhe apresenta bem embrulhado mesmo à frente dos seus pés, mas
consegue, mesmo assim, esboçar o seguinte argumento:
- Tudo isto é muito bonito, mas não invalida o facto de eu
não ter encomendado um carrinho de bebé. Olhe, talvez se tenha enganado na
morada. Se calhar, a encomenda era para a minha vizinha do andar de baixo, ela
está sempre a encomendar coisas pelo correio, ainda ontem foi um carregamento
de três sacos só com vinagre balsâmico, talvez hoje lhe tenha apetecido comprar
um carrinho de bebé.
Mas o empregado do “Serviço de Entregas”, na sua
argumentação, corta o fio de pensamento de Luís:
- Na nota de encomenda está escrito 3º B. Este é o 3º andar.
Como acabou de dizer, a sua vizinha do andar de baixo mora no andar debaixo deste.
Se tal não sucedesse, não seria a sua vizinha do andar de baixo. Como tal, tudo
o que está abaixo do 3º andar não pode corresponder ao 3º andar. Certo? Quando
muito (e isso posso conceder), a sua vizinha residirá no patamar entre o 2º e o
3º andar, mas nunca residirá no 3º andar. Depois, há a questão da letra B.
Repare no letreiro que se encontra aqui, mesmo por cima da sua porta: B. Não é
a letra A, nem a C. Por isso, se a encomenda fosse da sua vizinha, não
poderíamos falar de uma vizinha do andar debaixo do seu nem sequer de uma
vizinha da porta ao lado. Poderia ser uma vizinha de casa. Certo. No entanto,
há um problema: na nota de encomenda, para além de estar bem explícito que o
destinatário reside no 3º andar B, está bem explícito o nome do destinatário da
encomenda: Luís Nunes. Como o senhor bem me disse há pouco, chama-se Luís
Nunes. A menos que me diga que tem uma vizinha de casa que se chama igualmente Luís Nunes, o que eu acho
deveras improvável.
Luís
Nunes fica aturdido com a capacidade argumentativa do
seu interlocutor e apenas consegue balbuciar:
- Mas eu não encomendei carrinhos de bebé. Eu nem sequer
tenho bebés. Nem sequer tenho namorada.
O interlocutor responde, com fleumática calma:
- Isso é lá consigo, meu amigo. Não tenho nada a ver com
isso. Eu só entrego encomendas. Neste caso, um carrinho de bebés. E olhe que é
um bom carrinho. Com uma boa lista de produtos associados. Deixe que lhe diga
que se comprar produtos associados com o valor de 5.000 euros no prazo de um mês
terá direito a 10% de desconto. Mas isso está tudo no Guião Operativo…olhe…tem
alguma caneta à mão para assinar a nota de encomenda?
Luís continua com a mesma ausência de indumentária que
caracterizara a sua indumentária nos minutos precedentes. Por isso, não tem
qualquer caneta à mão. O seu interlocutor, notando perspicazmente este facto,
profere as seguintes palavras:
- Deixe estar. Eu empresto-lhe a minha caneta. Assine aí,
sim aí mesmo nessa linha que diz “assinatura do progenitor”.
- Não sabia que era progenitor.
- Então…acabo de lhe entregar um carrinho de bebé. Mas não
nos vamos incomodar a fazer uma nota de incidente. Provavelmente trata-se de um
CLIPJUT54.
Enquanto assina a nota de progenitura, Luís pergunta de
um modo que pretende ser casual:
- Ah, é um CLIPJUT 54…bem me parecia…olhe..hum…o que é um
CLIPJUT54?
O seu interlocutor volta a fazer o costumeiro ar impaciente:
- Não me cabe a mim responder. Como deve calcular, o seu
caso consta certamente do FORMJEST. Tem de aceder à plataforma do utilizador que
está inserida no modo SAFERIST. Mas olhe…como eu até estou de bom humor, tome
um exemplar do Guião Operativo. Eu guardo sempre uns quantos na mala. Tenha um
bom dia e não se constipe. Não há nada pior do que cuidar de um carrinho de
bebés estando constipado.
Com estas palavras, o funcionário do Serviço de Entregas dá
a Luís um calhamaço de centenas de páginas fotocopiadas, letra Bernard
MT Condensed, tamanho 8.
“Não vou ler esta treta”, pensa Luís. Vou mas é para a
cama.
Luís pega no embrulho, que é bem pesado e
leva-o para dentro de casa.
1 Comments:
ah ah ah :D
beware, Luis Nunes: é assim que começam os...pesadelos?
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