terça-feira, maio 01, 2012

Guião Operativo de Habilitação de Progenitores -1


CAPÍTULO 1 – ANUNCIAÇÃO

Luís Nunes é um Homem Médio, com todos os defeitos do Homem Médio e com algumas virtudes prévias:

. Conta bancária.

. Vontade de trabalhar.

. Razoável falta de rumo, mas uma vontade indomável de dar a volta à situação, mas sempre com uma bondosa e saudável resignação.

Numa manhã de sábado, quando Luís Nunes tem à volta de trinta primaveras no seu currículo vital, tocam-lhe à porta insistentemente.
Luís não faz caso. Uma chuva suave molha tolos, aliada a uma ressaca de proporções consideráveis, advinda de uma noite simpaticamente prolongada, convidam a uma estadia no fundo do vale dos lençóis.
O seu sonho reparador é acordado por um TRIMMMM muito estridente, que se transforma em TRIMMMM TRIMMMM TRIMMMM quando se demora a levantar da cama para abrir a porta a tão incómodas visitas matinais.

Decide-se a levantar da cama, não sem antes se espreguiçar muito lentamente, o que leva a que os TRIMMM se multipliquem mais umas quantas vezes.
“Já vai, já vai”
Luís levanta-se da cama nos mesmos preparos com que se deitara, ou seja, sem preparos e sem roupa no corpo.
Não pretende estar com grandes cerimónias, pensa tratar-se do mesmo trio de sempre de velhas senhoras Jeovás, que o presenteia com um salmo e uma interpretação da Bíblia a um ritmo semanal.
Abre a porta.
“Ó Dona Odete, Dona Natércia e Dona Lucinda, desta vez vieram mais cedo do que o costume. Qual é o salmo do dia e qual….”

Luís não acaba a frase, pois encontra-se frente a frente com um senhor de bigodes farfalhudos. Depressa se apercebe do erro cometido. O homem de bigode em nada se assemelha a um membro de grupo de propagação matinal da palavra do Senhor.
Luís tenta manter a compostura exigível para ocasião tão solene. Tossica, para aclarar a voz e num tom que pretende ser um tanto ou quanto ríspido e indiferente, mas que se concretiza num falsete pouco convincente, dispara numa nota fora de escala:
- Pois não. Queira desculpar-me pelo atraso com que demorei a abrir a porta. O que deseja?

O seu interlocutor entrega-lhe um impresso para as mãos e responde num nem sucedido tom ríspido e indiferente:
- Encomenda para o 3º B. Luís Nunes. Estou a falar com Luís Nunes?
“Então é isso”, pensa Luís para com os seus botões. Serviço de entregas. As peças do puzzle começam a encaixar-se e pode compreender finalmente porque é que o senhor que se lhe apresenta pela frente naquele sábado matinal enverga uma camisola vermelha, com letras brancas garrafais, que dizem “Serviço de Entregas”. O seu raciocínio lógico chega ao corolário definitivo quando repara num enorme embrulho que se encontra pousado ao lado do funcionário do “Serviço de Entregas”. 

Luís é assaz curioso e gosta muito de prendas. Por isso, não consegue disfarçar o seu falsete desengonçado:
- Sim, sou o Luís Nunes…Uma encomenda? De que se trata?
O seu interlocutor responde, um pouco impaciente:
- De que se haveria de tratar? É o carrinho.

O carrinho. Pois claro. Então não haveria de ser o carrinho. Mas que carrinho? Estes pensamentos invadem o cérebro de Luís, por isso exterioriza-os:
- O carrinho. Pois claro. Então não haveria de ser o carrinho. Mas que carrinho?
O interlocutor responde, sem se intimidar com a pergunta e assumindo uma postura um tanto ou quanto mais impaciente:
- Que carrinho haveria de ser? É o carrinho do bebé, obviamente.
Obviamente. Olhando para o embrulho, Luís facilmente se apercebe de que o funcionário do “Serviço de Entregas” está a falar toda a verdade. É que o embrulho tem mesmo a forma de carrinho de bebé. Quer dizer, não é o embrulho que tem a forma de carrinho de bebé, os embrulhos não assumem, por regra, a forma de carrinho de bebé e este não é excepção, nem sequer tem desenhos de carrinhos de bebé. Trata-se de um embrulho simples, todo vermelho. Mas o objecto que se esconde por dentro do embrulho corresponde perfeitamente à imagem mental que o Homem Médio associaria a um carrinho de bebé.
Até aqui tudo bem. Há um senhor com um uniforme a dizer “Serviço de Entregas” e que acaba de comunicar a Luís que tem uma entrega para fazer. Depois salienta que se trata de um carrinho de bebé e o objecto embrulhado tem, de facto, a aparência de um carrinho de bebé.

Mas algo não bate certo, pensa Luís, que não consegue disfarçar uma certa perplexidade perante o rumo dos acontecimentos. Afinal, pensa em voz alta, “eu não encomendei nenhum carrinho de bebé”. Tenta fazer valer esta alteração substancial de factos mas a sua retórica esbarra contra a parede de betão pragmática do seu interlocutor, que responde fleumático:

- Como é que não encomendou o carrinho? Veja a nota de encomenda:

Carrinho de Bebé modelo “Flash Supreme Baby – RX 350”
Dimensões Carrinho aberto: 95 x 55 x 105 cm
Dimensões Carrinho fechado: 41/46 x 34 x 96 cm
peso 10,7 kg
Idade adequada: do nascimento aos 36 meses (até 15 kg de peso).
Inclui:
Berço dobrável tipo guarda-chuva.
Bassinet dupla altura.
Duas rodas com freio para facilitarem o transporte.
Bolsa de transporte, colchão e arco de jogos.
Está:
Conforme a normativa Europeia UNE-EN 72341/2:2010, EN 71:2015/1/25.

Luís fica impressionado com as magníficas qualidade técnicas do produto que se lhe apresenta bem embrulhado mesmo à frente dos seus pés, mas consegue, mesmo assim, esboçar o seguinte argumento:
- Tudo isto é muito bonito, mas não invalida o facto de eu não ter encomendado um carrinho de bebé. Olhe, talvez se tenha enganado na morada. Se calhar, a encomenda era para a minha vizinha do andar de baixo, ela está sempre a encomendar coisas pelo correio, ainda ontem foi um carregamento de três sacos só com vinagre balsâmico, talvez hoje lhe tenha apetecido comprar um carrinho de bebé.

Mas o empregado do “Serviço de Entregas”, na sua argumentação, corta o fio de pensamento de Luís:
- Na nota de encomenda está escrito 3º B. Este é o 3º andar. Como acabou de dizer, a sua vizinha do andar de baixo mora no andar debaixo deste. Se tal não sucedesse, não seria a sua vizinha do andar de baixo. Como tal, tudo o que está abaixo do 3º andar não pode corresponder ao 3º andar. Certo? Quando muito (e isso posso conceder), a sua vizinha residirá no patamar entre o 2º e o 3º andar, mas nunca residirá no 3º andar. Depois, há a questão da letra B. Repare no letreiro que se encontra aqui, mesmo por cima da sua porta: B. Não é a letra A, nem a C. Por isso, se a encomenda fosse da sua vizinha, não poderíamos falar de uma vizinha do andar debaixo do seu nem sequer de uma vizinha da porta ao lado. Poderia ser uma vizinha de casa. Certo. No entanto, há um problema: na nota de encomenda, para além de estar bem explícito que o destinatário reside no 3º andar B, está bem explícito o nome do destinatário da encomenda: Luís Nunes. Como o senhor bem me disse há pouco, chama-se Luís Nunes. A menos que me diga que tem uma vizinha de casa que se chama igualmente Luís Nunes, o que eu acho deveras improvável.

Luís Nunes fica aturdido com a capacidade argumentativa do seu interlocutor e apenas consegue balbuciar:
- Mas eu não encomendei carrinhos de bebé. Eu nem sequer tenho bebés. Nem sequer tenho namorada.
O interlocutor responde, com fleumática calma:
- Isso é lá consigo, meu amigo. Não tenho nada a ver com isso. Eu só entrego encomendas. Neste caso, um carrinho de bebés. E olhe que é um bom carrinho. Com uma boa lista de produtos associados. Deixe que lhe diga que se comprar produtos associados com o valor de 5.000 euros no prazo de um mês terá direito a 10% de desconto. Mas isso está tudo no Guião Operativo…olhe…tem alguma caneta à mão para assinar a nota de encomenda?

Luís continua com a mesma ausência de indumentária que caracterizara a sua indumentária nos minutos precedentes. Por isso, não tem qualquer caneta à mão. O seu interlocutor, notando perspicazmente este facto, profere as seguintes palavras:
- Deixe estar. Eu empresto-lhe a minha caneta. Assine aí, sim aí mesmo nessa linha que diz “assinatura do progenitor”.
- Não sabia que era progenitor.
- Então…acabo de lhe entregar um carrinho de bebé. Mas não nos vamos incomodar a fazer uma nota de incidente. Provavelmente trata-se de um CLIPJUT54.
Enquanto assina a nota de progenitura, Luís pergunta de um modo que pretende ser casual:
- Ah, é um CLIPJUT 54…bem me parecia…olhe..hum…o que é um CLIPJUT54?
O seu interlocutor volta a fazer o costumeiro ar impaciente:
- Não me cabe a mim responder. Como deve calcular, o seu caso consta certamente do FORMJEST. Tem de aceder à plataforma do utilizador que está inserida no modo SAFERIST. Mas olhe…como eu até estou de bom humor, tome um exemplar do Guião Operativo. Eu guardo sempre uns quantos na mala. Tenha um bom dia e não se constipe. Não há nada pior do que cuidar de um carrinho de bebés estando constipado.

Com estas palavras, o funcionário do Serviço de Entregas dá a Luís um calhamaço de centenas de páginas fotocopiadas, letra Bernard MT Condensed, tamanho 8.
“Não vou ler esta treta”, pensa Luís. Vou mas é para a cama.

Luís pega no embrulho, que é bem pesado e leva-o para dentro de casa.

 




1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

ah ah ah :D
beware, Luis Nunes: é assim que começam os...pesadelos?

5/02/2012  

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