sexta-feira, outubro 07, 2011

As minhas memórias do colchão - Partes I a V

Parte I: O sentido da vida

Vivo num bairro histórico da cidade, daqueles com muitos turistas em bando, com máquinas fotográficas a tiracolo e mapas na mão, que se misturam com a populaça local, sempre à espreita de novidades e com o calão bem afinado em trocas de galhardetes entre matronas gordas e os bêbados da esquina. Moro no primeiro andar e sou acordado todos os dias pelos gritos da Dona Lúcia, que apregoa em voz bem alta as rifas semanais com o sempre prometido prémio de um belo enxoval para o casamento ou um conjunto de faqueiros de cozinha de fazer inveja às japonesas Ginsu, anunciadas em grandes parangonas nos anúncios da TV Shop. Levanto-me ao som da sua voz e no momento em que ela diz pela décima vez “olha a rifa!” já estou no banho a ensaboar-me.

Melhor do que viver num bairro histórico da cidade é viver num prédio recuperado do bairro histórico da cidade, com elevador ultra moderno incluído no pacote, onde não faltam os painéis electrónicos azuis a marcar os andares, tudo num magnífico requinte de equilíbrio entre a traça original antiga e as mordomias próprias de imóvel do século XXI.

Parte II: Descrição do meio humano circundante

Mas a qualidade tem um preço e para pagar o meu quarto com vista para o rio tenho de dividir com outros dois mancebos a coabitação neste imóvel t3 de tamanho reduzido.

Eu durmo no quarto do meio, no lado direito de quem entra pela casa está o quarto do Giovanni, o italiano e do lado esquerdo de quem entra encontra-se o quarto do Filipe, o atarracado e virgem estudante universitário de um curso esquisito do qual já me esqueci do nome.

Os três quartos ficam todos de seguida, paredes meias uns com os outros, mas as paredes estão lá só para darem presença física e para mostrar que estamos num edifício t3, isto porque as paredes não isolam o som, cá para mim se fossem feitas de esferovite ou até de papel de embrulho conseguiam isolar melhor os gritos das namoradas do Giovanni, o atraente estudante italiano de mestrado, digo estudante porque é isso é que ele me conta que está cá a fazer – estudar, mas disso eu pouco sei, o que sei é que o Giovanni passa os dias em casa e digo isso não por me meter na vida dele, porque isso pouco me importa, estão sempre a entrar miúdas cá em casa e isso também pouco me importa, importa-me um pouco mais quando fazem aqueles barulhos todos durante a noite e ai como gemem as namoradas do Giovanni e ele também geme, quando mistura aqueles impropérios em italiano com palavras que entretanto aprendeu em português, provavelmente nas suas aulas de mestrado.

Oiço durante toda a noite o Giovanni a bater contra a parede divisória do nosso quarto, imagino-o vestido de gondoleiro com aquelas camisas de risquinhas azuis e brancas, a conduzir a sua gôndola veneziana e a bater eternamente contra o raio da parede que não isola os sons, mais as miúdas a gritar que nem umas porcas na hora de irem para a matança. Um encanto, como devem imaginar.

Parte III: Tensão subjacente

Mas aqui o Luís Pedro queixa-se disso? Qual quê! O Luís Pedro, numa clara demonstração de simpatia, até empresta comida ao Giovanni - fatias de pão, queijo, leite e sei lá que mais e o tipo só diz grazie ou gracias ou o raio e nunca compra nada para a despensa, nem lava o fogão nem o chão, nem recicla o lixo. Deve pensar que ainda está em Nápoles.

Eu estou-me pouco lixando e não digo nada. Não se metam é na minha vida. Por isso é que o menino Filipe está marcado para sempre na minha lista negra.

Tenho lá eu culpa que ele não possua um único amigo, também com aquelas trombas cheias de acne e aquele amor pelas músicas do Tony Carreira, como é que ele se pode safar? Quero lá saber que o Filipe seja um “deslocado”, que veio de uma pequena aldeia na província para obter um canudo na cidade e que se sinta “engolido” pelo frenesim da multidão, que chore quando vai à casa de banho para que eu não o oiça e que a única vez que viu uma mulher nua na vida foi no preciso instante em que a minha namorada ocasional saiu da casa de banho sem roupa e se cruzou acidentalmente com o menino Filipe.

E eu fiquei chateado com isso? Quero lá saber! Até me ri, fiquei feliz com o Filipe, que correu para a casa de banho corado e escandalizado e se trancou durante meia hora, provavelmente para gratinar a sua beringela pronta a ser estreada há 25 anos.

Falo agora da minha namorada ocasional. Nem sequer é namorada. Por isso, só lhe assenta bem o epíteto de ocasional. E é ocasional porque só aterra na minha casa muito de vez em quando, umas duas vezes por semana, de resto nada sei da sua vida. Diz-me que mora com os pais nos subúrbios e quem sou para duvidar? Não sou polícia, até me posso dar por contente com as duas noites por semana que me dedica. Gosto dela, gosto que ela fique a dormir comigo durante essas tais duas noites semanais.

Até tive o cuidado de avisar o Filipe, disse-lhe que se ele achasse que eu andava a fazer muito barulho que batesse na parede três vezes, assim eu ficava avisado e faria as coisas de um modo mais suave.

Parte IV: A senhora marquesa apresenta-se aos súbditos

Por isso é que fiquei lixado quando a marquesa tocou à porta naquela manhã, chamo-a marquesa não porque seja marquesa, pois acho que não é, mas pelo seu timbre de voz de tia afectada com os males de todo o mundo e porque tem um apelido que demora meia hora a ser soletrado, a marquesa é a minha senhoria e a dona de todo o prédio e dos dois prédios em redor. Raramente aparece e por isso estranhei, estranhei mais ainda quando lhe abri a porta, estava sozinho em casa, o Giovanni ainda não tinha aparecido da sua noitada e o Filipe tinha ido para as aulas e ela entrou em casa de rompante, sem me cumprimentar e a falar num tom de voz agressivo, “olhe Luís Pedro tá a ver, nós precisamos de falar, tá a ver, o seu colega de casa, o Filipe ou lá como se chama telefonou-me muuuito incomodado, tá a ver, a fazer queixas de si, a dizer que o Luís Filipe leva amigas para casa todas as noites e aquilo é uma pouca-vergonha, faz uma barulheira que nem se pode tá a ver e o Filipe não consegue dormir, coitadiiinho, até porque tem aulas de manhã e já está cansadíssimo e telefonou-me desesperadíssimo tá a ver, e eu fiquei muuito perturbada com o tefenema tá a ver, porque eu sou a proprietária de metade deste bairro, tenho todo o cuidado em seleccionar pessoas que ache que possam manter isto tudo compostinho, até que de repente me vêm dizer que o Luis Pedro mete pessoas mais que duvidosas cá em casa e começa a fazer coisas esquisitas, olhe que eu não sou puritana tá a ver, mas tenho de manter o meu bom nome e as pessoas começam a falar e é uma vergonha…”

Depois de cinco tentativas, consegui interromper-lhe um pouco o fio do raciocínio: “eu nunca trago para cá ninguém, quer dizer, trouxe uma amiga umas duas ou três vezes e essa amiga é da máxima confiança, tivemos sempre todo o cuidado em fazer pouco barulho e….”

“Não interessa”, respondeu-me a marquesa. “Isto não é uma casa de passe, eu estou a arrendar o quarto a si, não quero que venham para cá meninas, parece impossível, uns rapazes solteiros estarem a trazer engates da noite….”

“Mas olhe que o outro vizinho de casa já tem trazido umas amigas…”

A marquesa começou a rir-se: “está a falar do Giovanni? Oh Luís Pedro, mas o Giovanni é italiano, é suposto trazer miúdas, não é? E percebe-se tá a ver? O Giovanni é o máximo, tem aquele timbre de voz que parece que tá a cantar uma coisa romântica ao ouvido tá a ver, parece o Eros Ramazzotti, o Giovanni tem charme e só se dá com pessoas de classe. Deixe o rapaz em paz, tá a ver, coitadinho, não basta viver longe de casa, dos pais dele, já está a receber acusações? Já agora, o Giovanni está em casa? Eu trouxe-lhe uns pastelinhos de Belém…”

A marquesa abriu sorrateiramente a porta do quarto do italiano e pareceu desapontada quando não viu ninguém.

“Não está? Pobrezinho, já foi trabalhar…”

“Não foi trabalhar, ainda não voltou da noitada”, respondi-lhe.

“Pois, coitadito, tem de se distrair…Mas olhe, estamos conversados, não quero cá mais meninas, se eu souber que volta a meter aqui alguém…”

Até que lhe perguntei:

“Como é que sabe que o Filipe não está a mentir? Se calhar, embirrou comigo e só está a fazer essas acusações torpes e infundadas para me colocar mal e para me mandar embora…”

A marquesa respondeu-me enigmaticamente:

“Isso é fácil de tirar a limpo. Vamos perguntar ao colchão”.

“Ao colchão?”

“Sim, ao colchão”

“Mas que colchão?”

“Que patetice de conversa, Luís Pedro. Que colchão é que havia de ser? É claro que estou a falar do colchão do Luís Pedro”.

“Aaaah….e acha que o meu colchão tem uma palavra a dizer sobre o assunto?”

“Mas é claro que tem muitas palavras a dizer sobre o assunto! O Luís Pedro sabe que dorme num colchão de memória?”

“Eu sabia que o colchão era de espuma, agora quanto à memória…”

“Pois bem, o colchão é de espuma de memória. Isso quer dizer que se lembra de tudo o que ocorre debaixo dos lençóis da cama. Vá, vamos falar com ele. O Luís Pedro está sozinho ou no quarto ou tem lá alguma das suas…amigas?”

A conversa estava a parecer-me um pouco absurda, mas não me apeteceu contradizer a marquesa. Encaminhei-a para o quarto.

“Esteja descansada, não está ninguém no quarto. Quer dizer, para além do seu amigo colchão.”

Não consegui disfarçar uma risada, que foi ignorada pela marquesa.

“Muito bem, vamos lá”.

Parte V – O colchão de memória

O meu quarto estava relativamente arrumado, tivera o cuidado de atirar a roupa suja para dentro de um saco de plástico. As roupas da minha namorada ocasional estavam metidas dentro da terceira gaveta da cómoda.

A marquesa dirigiu-se para o pé da minha cama e começou a falar:

“Bom dia, senhor colchão! Está com bom aspecto!”

Para minha surpresa, o colchão respondeu-lhe, com um leve sotaque transmontano:

“Que agradável surpresa, minha senhora! Está cada vez mais bonita e encantadora! Há muito tempo que não a via!”

A marquesa pareceu ficar agradada com o elogio:

“Muito obrigado, é sempre tão cavalheiro! “

O colchão continuou com a conversa melosa:

“Não tem nada de agradecer, a senhora sabe que só digo as verdades e só estou a dizer o que penso, quando muito, o meu elogio empalidece face à visão magnífica da minha cara senhora…”

“Oh colchão, deixa-me corada com tanto elogio! Olhe, tá a ver, vim aqui para lhe pedir um grande favor!”

“Diga, minha senhora. As suas palavras são suaves melodias de encantar e purificam cada recanto dos meus tímpanos à medida que neles penetram suavemente”

“Ah, deixa-me sem palavras, amigo colchão…”

“Sem palavras fico eu para a tentar descrever. Dizem que uma imagem vale mais que mil palavras, mas mil imagens nada valem comparadas com a simples palavra que menciona o seu nome”

“ Pois, colchão, muito obrigado, mas vamos ao que interessa. Tá a ver, o que acha do Luís Pedro?”

“Está a falar do rapaz que dorme por cima de mim? É boa pessoa, obviamente não se compara com a unha do dedo mindinho da minha cara senhora, de todo o modo ele não é um mau indivíduo, podia ter um bocado mais de cuidado com a higiene pessoal, às vezes deita-se com a t-shirt que levou para sair à noite, empestada de tabaco, não costuma tirar as meias, que usa sempre com aqueles sapatos malcheirosos…”

Fiquei indignado, pois claro:

“Sapatos malcheirosos? Custaram-me 150 euros e meto pó de talco para afastar o mau cheiro…”

A marquesa retorquiu:

“Deixemo-nos de ninharia! Eu queria falar de coisas mais sérias…tá a ver, colchão, diga-me, o Luís Pedro costuma trazer….companhia?

“Está a falar de companhias do sexo feminino?”

“Pois claro! O Luís Pedro recebe visitas?

“Deixe-me cá ver…ora bem, o senhor Luís traz, de facto, uma companhia de sexo feminino para o seu quarto. Aparece, regra geral, depois de jantar. A companhia de sexo feminino é bonita, não tanto como a senhora, é claro, mas em comparação com a senhora ninguém é bonito. Costumo dizer para com os meus botões que Deus criou o mundo em sete dias, mas demorou vários milhares de anos para criar a senhora e…”

“Chega, colchão! Gosto muito dos seus elogios, mas vamos ao que interessa! Seja sucinto e telegráfico!”

“As suas palavras são ordens, minha senhora! Eis então os factos:

. O arrendatário Luís Pedro recebe nos seus aposentos uma jovem mulher;

. Com uma periodicidade máxima de duas vezes por semana;

. A jovem mulher pernoita nos aposentos;

. E sai logo de manhã. Já ouvi dizer que ela conta aos pais que vai dormir a casa de uma amiga;

. Na verdade, tem relações sexuais com o Luís Pedro;

. Às vezes, sem preservativo;

. Costumam falar um pouco;

. Parece-me que as conversas da jovem mulher enfastiam um pouco Luís Pedro, que se mostra bastante interessado em desenvolver relações mais íntimas com a mesma. Digo isso porque o pénis de Luís Pedro aumenta logo em 50% aquando do primeiro beijo que dá à jovem mulher;

. A jovem mulher começa a falar do seu dia de aulas, num volume baixo, entre 30 a 40 decibéis;

. O Luís Pedro ouve-a quase em silêncio ou faz um ruído de assentimento, semelhante ao ruído das folhas das árvores quando há um pouco de vento, com cerca de 10 decibéis;

. A jovem mulher pergunta ao Luís Pedro se o está a maçar e se ele já não gosta dela;

. O Luís Pedro fica um pouco sobressaltado e responde-lhe: “claro que gosto, querida!”, num volume de som com cerca de 60 decibéis;

. Acto seguido, passam a uns rápidos preliminares, que antecedem os actos sexuais de relevo, que atingem volumes que podem chegar perto dos 100 decibéis, ou seja, semelhantes ao ruído de um camião a passar e superior ao ruído médio de uma fábrica, por exemplo.

. Se a senhora quiser, posso especificar melhor as posições sexuais mais utilizadas e o tempo de duração do coito….

A marquesa interrompeu a exposição do colchão:

“Já chega! Não quero saber pormenores da vida sórdida do Luís Pedro! Tá a ver, já sei o que me interessa! A partir de hoje, não quero que essa jovem senhora ou que mais alguém entre no quarto do Luís Pedro com intenções pecaminosas! Isso quer dizer que até podem entrar cá colegas de escola, desde que não suceda o mesmo que nos filmes pornográficos, onde os colegas de escola levam os cadernos para os quartos uns dos outros, começam a ler os livros de estudo, mas quando chegam à terceira página já estão todos nus e a lamberem-se todos uns aos outros! Ou seja, em suma: podem entrar no quarto do Luís Pedro colegas de escola, mas têm de se comportar convenientemente, tá a ver, sem tirar roupas e sem se atirarem para cima do meu amigo colchão e muito menos sem produzirem os tais ruídos que se comparam ao barulho de um camião. Estamos entendidos?”

Tive de concordar:

“Sim, estamos entendidos”.

A marquesa pareceu ficar satisfeita:

“Muito bem! Agora, tenho de me ir embora, ainda vou passar pelo quarto do Giovanni…”

A marquesa saiu e fiquei sozinho no quarto com o colchão. Este disse-me em surdina:

“Pronto, lá vai aquela badalhoca falar com o colchão de espuma do quarto do italiano. O desgraçado tem de lhe fazer uma exposição global de tudo o que acontece durante todos os dias e todas as noites. Coitado. Tem uma sorte pior que a Sherazade”.

Não respondi. Sentei-me na cadeira, a pensar.

(Fim da Parte V. A continuação segue dentro de momentos).

1 Comments:

Anonymous stay sick said...

podes continuar! :D
fartei-me de gargalhar!
muito engenhoso e divertido. gostei bastante da parte em que o colchão descreve a(s) noite(s) de Luis Pedro.

10/10/2011  

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