O cão do Bruno
Ao terceiro dia, o cão do Bruno aprendeu a fazer penhoras.
Com a mão
direita segurei um osso e coloquei-o mesmo em frente ao seu nariz.
Dei-lhe o comando: “Penhora, cão!”, num tom de voz calmo e alegre, uma
única vez.
O cão hesitou, por isso, com a mão esquerda, segurei-lhe gentilmente uma
das patas, quase sem o magoar e empurrei-o em direcção do computador, onde o
laptop já estava preparado para inserir os dados necessários à penhora. Ao mesmo
tempo, enquanto o empurrava, ia colocando a minha mão direita para trás da
cabeça do animal, acompanhando o movimento do seu corpo.
O cão do Bruno sentou-se quase sem dificuldades e começou a trabalhar.
Para não o cansar muito, ensinei-o apenas a fazer penhoras de bens móveis
de pequena dimensão, motociclos e outras coisas de pouca importância para a
economia nacional. Ao fim de uma hora, o cão do Bruno abanava a cauda, em sinal
de contentamento.
Ao quinto dia, e quando o cão do Bruno já possuía os comandos básicos de
obediência, começou a penhorar bens móveis de maiores dimensões.
Esperei pelo momento em que ele se encontrava a dormir a sono solto para
que me aproximasse furtivamente. Delicadamente, e sem que ele notasse,
segurei-lhe as patinhas da frente e, acto contínuo, ergui o seu corpo até que
ele estivesse a cerca de dois metros do chão. Previamente, tinha aberto a
janela que dava para a rua. Levei o canito em direcção à janela e coloquei-o do
lado de fora, preso apenas pelas patas. O cão do Bruno olhou para baixo e deve
ter reparado que trabalhamos num andar bastante alto daquele edifício de
escritórios – mais precisamente, o 16º piso.
Com cuidado, para o não deixar cair, estabeleci contacto visual com o cão
do Bruno e disse-lhe, num tom firme, mas fraternal: então, vamos fazer penhoras
de bens móveis de maiores dimensões?
Foi um dia de trabalho muito produtivo, no qual o cão do Bruno aprendeu a
fazer penhoras de maiores dimensões – ao princípio automóveis, depois passámos
para os autocarros, os helicópteros, as aeronaves, os cacilheiros, torpedeiros,
submarinos e porta-aviões.
Ao fim de umas horas de exercício, o cão do Bruno abanava a cauda, em sinal
de contentamento.
Ao sexto dia, passámos paras as penhoras dos bens imóveis, nomeadamente,
prédios rústicos e urbanos e respectivas partes integrantes, bem como os
direitos inerentes àqueles prédios (artigo 204º, do Código Civil).
A educação do cão do Bruno começou a tornar-se um verdadeiro desafio. A
adrenalina constante com o desafio do trabalho obrigava-o a ficar sempre
alerta, sem adormecer. Por isso, o truque de lhe pegar nas patas da frente
enquanto ele dormia passou a ser ineficiente.
Ao sétimo dia, percebi que não devia obrigar o cão do Bruno a trabalhar.
Não é produtivo estar a forçar um trabalhador a fazer aquilo que não quer. O
melhor é tentar fazer passar a mensagem de que ele não tem outra alternativa.
E por isso, nada melhor do que expor as suas vulnerabilidades e mostrar-lhe
a sua incapacidade em sobreviver à terrível lei da selva do mundo exterior.
Por outro lado, as chefias deram-nos os mapas de objectivos, através dos
quais ficou bem claro que existe apenas uma margem de erro na ordem dos 0,008
por cento. Por isso, as directivas foram bem claras: temos de nos focar no
trabalho.
Recordo as palavras de ordem do presidente, na mensagem de ano novo: “nada
de brincadeiras, barulho e correrias.”
Tratei de adaptar o local de trabalho do cão do Bruno o melhor possível
para que ele pudesse alcançar as metas estabelecidas pela entidade patronal.
Lembrei-me dos meus tempos de estudante, horas mal gastas no meu quarto a
tentar estudar, mas sempre distraído com alguma particularidade do mundo
exterior.
Coloquei uma variadíssima panóplia de armadilhas ao lado da cadeira onde o
cão do Bruno se senta. Isso impedia-o de se levantar a meio de um trabalho.
Está explicado, no ponto 5.2 do normativo interno, que “um funcionário que se
levanta da cadeira a meio do horário de expediente tem uma probabilidade maior
na ordem dos 18,67 % de se enganar.
O cão do Bruno revelava, ao oitavo dia, uma relativa imaturidade, o que
explica o facto de ter ficado com algumas mazelas permanentes que poderia ser
facilmente evitáveis.
Uma das patas do cão do Bruno foi arrancada numa armadilha especializada
para imobilizar doninhas com febre de dengue e a sua cauda ficou dilacerada ao
passar junto ao “detector de movimentos em horário de expediente”, instalado no
meio da sala, que é activado e deita imediatamente um jacto de ácido sulfúrico
para cima do incauto funcionário que passeie durante as horas de trabalho.
Não há mal que não venha por bem. Sem cauda e sem uma pata, o cão de Bruno
percebeu que não arranja outro trabalho lá fora. Percebeu que também não deve
levantar problemas. O mais seguro é ficar sentado na sua cadeira, a fazer
penhoras.
Será o cão do Bruno feliz?
No índice de felicidade apresentado trimestralmente pela empresa, o cão do
Bruno, ao fim de dez dias de trabalho, ficou com uma média ponderada de 4,33
valores. Ao lado do gráfico, uma anotação, que dizia: “satisfatório. Mas pode
melhorar em alguns índices” A chefia não explica em que índices deverá o cão do
Bruno melhorar.
Não devemos fazer-lhe festas. A chefia desincentiva contactos corporais. O
cão do Bruno começou a rosnar ao ouvir a palavra “festas”.
O cão do Bruno especializou-se em penhoras de direitos. A penhora de
direitos abrange igualmente, em regra os respectivos frutos civis.
O cão do Bruno não interioriza conceitos. O cão do Bruno começou a penhorar todo o tipo
de direitos, indiscriminadamente e a fazer uma amálgama onde cabem lá dentro
frutos civis e direitos civis.
A chefia ficou muito agradada e a sua média ponderada já subiu para 4,54 e
ofereceram-lhe um boné com o logótipo da empresa. Também lhe ofereceram um
jornal, que serve para lhe cobrir o corpo durante as frias noites de inverno,
enquanto faz penhoras pela noite dentro.
O cão do Bruno começou a penhorar testamentos e últimas vontades, incluindo
as missas pelas almas dos futuros defuntos. O Governador mandou um telegrama a
felicitar o cão do Bruno pelas inovações em matérias de penhora introduzidas
nos últimos dias, que permitem poupar na ordem dos 8,39765
O índice de felicidade do país é de
6,73
O índice de felicidade da empresa é de 5,834
O cão do Bruno penhora os funcionários que se juntam em grupos de mais de 3
pessoas à hora do almoço. A chefia obriga-os, ao fim do dia, a deixarem o
cartão de identificação à entrada, para não mais voltarem.
O cão do Bruno está a planear penhorar a memória futura de 95% da população
nacional não activa
Hoje, há 30 jornais espalhados pelo chão da sala, para darem as boas vindas
aos 30 novos cãezitos do Bruno, que acabaram de nascer.
Fiquei aqui sentado, durante a noite, a planear o longo dia de trabalho e
as acções de formação para os novos funcionários. Têm de aprender depressa,
logo no primeiro dia. Há 500.000 penhoras pendentes de bens móveis. 1.500,00 de
bens móveis. 3.000.000 de direitos. 5.000.000 penhoras de memórias futuras.
Com a mão direita, seguro o osso, e
coloco-o mesmo em frente ao meu nariz. Distraído, digo maquinalmente, num tom
de voz calma e alegre, “penhora, cão”!
4 Comments:
Vida de Cãomando é dura. E não têm direito a greves.
Pá..., adorei o teu conto. Continua o bom trabalho.
Stay sick, Greve, só se for um simulacro de greve, organizado pelas chefias do cão do Bruno :)
Obrigado pelas palavras simpáticas, Frederico!
Ou um simulacro de manifestação...
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