Domingos e a pele, parte 2
Quando a minha mulher chegou a casa, pingava sucos
gástricos, enzimas, hemoglobinas, mitocôndrias, glândulas endócrinas, glóbulos
vermelhos e todo um cardápio de substâncias coloridas que me abstive de
catalogar. Tive de lhe apanhar o fígado, que caíra no patamar do primeiro
andar, pois a minha mulher carregava um manancial quase infinito de compras nas
mãos. A falta de pele não lhe tirara o apetite. Eu estava de pijama e de
comando da televisão, a ver o encontro de futebol da selecção.
“Querido, fazes-me um favor? Larga o que tens em mãos,
veste-te num instante e vai-me buscar o fígado ao primeiro andar. Rápido, antes
que os vizinhos tropecem nele.”
Era preciso ter cuidado com a Dona Adelaide, a
inquilina do 2º andar. O raio da velha não havia semana que não caísse no
patamar das escadas. Dito e feito. Ouvi um estrondo medonho, mal abri a porta
de casa. Era a Dona Adelaide a cair, mais a sua dentadura, que fazia plof plof
enquanto escorregava de andar em andar.
A dentadura da Dona Adelaide movia-se rapidamente
por entre as cascatas, rastos de matéria corporal que a minha mulher deixara
pelas escadas. Logo atrás, a Dona Adelaide, o rabo gordo a dificultar-lhe os
movimentos, mas a dar grande luta à dentadura.
A dentadura acabou por ganhar a corrida num sprint
final. Mas a Dona Adelaide terminou com mais estilo, deu um valente trambolhão
ao passar o último lanço de escadas e bateu com aquele rabo de proporções
mastodônticas nos pobres e indefesos ladrilhos centenários.
Desci as escadas a correr, mas sem tropeçar, a
corrida já havia terminado e não me parecia muito glorioso terminar logo depois
daquela velha badocha. Cheguei ao rés-do-chão e assustei-me, ao verificar que a
Dona Adelaide me lançava um olhar definitivamente hostil. Mal coloquei o pé em
piso térreo vociferou-me, em pleno mar alto de gafanhotos, que voavam livres sem
o entrave da dentadura:
“Está a ver a pouca vergonha? Anda tanta gente de
bem a passear durante o dia neste prédio, com crianças e tudo e está aqui a
menina a pavonear-se nestes preparos! Olhe que não tem nada a esconder! Há
bocadinho eu bem a vi a sair do prédio, com aquele casaco todo aberto a mostrar
os pulmões todinhos! Não deixou um único alvéolo de fora! Mais um bocadinho e
via-se também o diafragma. E com o meu Manel em casa. O meu Manel é muito boa
pessoa, mas é homem, é bem de ver. O meu Manel não parava de olhar para as artribulações
das pernas da menina e o Manel que já foi desportista em jovem, disse bem
entendido: “sim senhora! Isto é que são umas atribulações bem atribuídas! E as
coxas? Que belo naco!”Não bastava escorregar e bater com o rabo no chão do
prédio e ainda tenho de levar com o meu Manel a comer a vizinha com os olhos!
Isto é que é uma vida! No meu tempo não se via nada disso!”
Era a deixa de entrada do senhor Medeiros Farnelos.
Sempre que alguém dizia: “no meu tempo…”, aparecia num ápice, vindo de nenhures
o senhor Medeiros Farnelos, o mais vetusto vizinho de todo o bairro. Nunca se
soube se ele vivia no meu prédio ou no prédio ao lado ou no edifício de
esquina. Mas aparecia sempre que alguém mencionava, com um suspiro, os “velhos
tempos”, mesmo que estivesse a falar da equipa do Benfica da semana passada e
de como a equipa era boa nos bons velhos tempos, antes da lesão no tornozelo do
melhor defesa central, ocorrida durante o aquecimento do encontro do fim-de-semana.
Sempre odiei cruzar-me com os meus vizinhos, fosse à
entrada do prédio, fosse no vão ou no patamar das escadas. Esforçava um sorriso
largo e dizia-lhes: “Boa tarde, Dona Filomena, o seu netinho já saiu do
hospital? Já está melhor da broncopneumonia?”
Nem avaliava o conteúdo das respostas. “Ah, está
melhor da broncopneumonia, mas vai ter de fazer um transplante de fígado e
retirar um pulmão? Que chatice, Dona Filomena, olhe, tenho de voltar para casa,
que tenho um prato a cozinhar na Bimby.”
Achava terrível ter de perder tempo com conversas
inúteis e medíocres. Perdi a pouca paciência que me restava a partir do momento
em que a minha mulher deixou de usar pele. As conversas desembocavam sempre nos
mesmos assuntos. Quando eu subia as escadas concentrado, com medo de perder
alguma ideia pelo caminho, aparecia-me a Dona Adelaide a falar das vestimentas
da minha mulher ou o senhor Medeiros Farnelos, que surgia de rompante no escuro
patamar do 2º andar e me dizia, com aquela voz ancestral:
“Há bocadinho vi o retículo endoplasmático da sua
esposa! Está tão crescido. Como é que eu não haveria de estar velho? No meu
tempo, os retículos endoplasmáticos não tinham nada a ver…”
Abri aqui um parêntesis sobre a vizinhança que já se
prolonga em demasia. A escrita deste texto não é completamente linear. Debito estas
linhas ao sabor da maré de pensamentos que ainda subsiste na minha cabeça.
Tenho cada vez menos tempo para a introspecção e a memória já não me permite
fazer exercícios de divagação nostálgica. Já não me recordo, por exemplo, do
que escrevi há uns dias, no início deste texto. Por isso, agora divago sobre os
poucos temas com que me sinto à vontade para falar. Como o tema da vizinhança.
É importante manter relações cordiais com a
vizinhança. A partir daquele dia, acostumei-me a fazer de homem-vassoura,
sempre que a minha mulher entrava e saía do prédio, não fosse cair algum naco
da sua preciosa carne em mãos sequiosas de atribulações de atribuídas, mas que
principiavam a ficar gastas com tanta exposição solar.
O meu stock de vestuário esgotava-se e não dava
vazão para tanta solicitação. Se,por exemplo, a minha mulher quisesse tomar
banho não convinha que metade do corpo lhe caísse pelo ralo. Oferecia-lhe os
meus roupões, os lençóis de enxoval, camisolas, camisas, casacos, sem qualquer
critério de escolha, tudo servia como camada alternativa de protecção corporal.
E quando íamos à praia? Nesses casos, a minha mulher
ajudava-me com os critérios.
“Estás maluco? Vais emprestar-me esse Pólo preto?
Com o calor que está? Às duas da tarde? Tens de me arranjar uma roupa com um
factor protector mais forte!”
Percebi que as roupas serviam de factor protector. E
havia grupos de risco. Tal como as pessoas com a pele muito branca têm maior
propensão para apanhar doenças advindas das radiações solares, o grupo de risco
das pessoas sem pele situa-se naquelas que usam roupas escuras.
Emprestei-lhe a camisa havaiana. O resultado ficou
um tanto ou quanto bizarro, uma mancha colorida a proteger-lhe o corpo das
radiações solares, mas que não tapava uma enorme extensão de intestino delgado,
que se arrastava pela praia, coberto de areia. Parecia uma daquelas tentativas
de bater o recorde do Guinness – a maior alheira do mundo, patrocinada por uma
cadeia de supermercados.
Não sei se a minha mulher ficou com a mesma
impressão. Não conseguia pôr-me na sua pele. Já não conseguia, sequer,
colocar-me na minha pele. Deixei de me reconhecer. A minha roupa, todos os sinais
exteriores que salientavam a individualidade da minha personalidade foram
sacrificadas em prol do seu bem-estar. Os sacrifícios tocavam a todos. O poeta
dizia: “fica com a tua pele, que é tua”. Mas a minha mulher não tinha pele onde
habitar. Só lhe restava aquela enorme lacuna existencial. Havia que preenche-la
a todo o custo.
Não estou apenas a falar da sua aparência exterior.
A minha mulher mudava de personalidade, de gostos e de memórias com a mesma frequência
com que os seus glocorticóides sujavam as minhas camisas de linho.
3 Comments:
Tens que dizer ao jovem que há umas gases/ligaduras porreiras e esterilizadas à venda nas farmácias. Nada como fazer uma boa múmia!
Estou a gostar deveras desta tonteria!
Já dizio o outro:"o mais profundo é a pele".
Podes continuar.
Onde raio foste desencantar os glocorticóides? Acho que isso não existe. Se foi de propósito, há que felicitar-te pela veia criativa!
No primeiro impulso, responderia que queria dizer glicocorticóides e, por algum motivo, enganei-me a escrever.
Mas pensando melhor, responderei que foi sempre minha intenção escrever glocorticóides, depois de um súbito assomo de grande inspiração criativa!
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