Perpetuum Mobile
Passei a abrir a porta com muito cuidado, para fazer pouco ruído.
Cumprimentava-os à pressa, dizia um "bom dia" tímido e quase imperceptível. O Senhor Imperador, nos melhores dias, limitava-se a um aceno de cabeça. A maior parte das vezes, contudo, ignorava os meus grunhidos.
Quando os outros se me dirigiam, eu respondia-lhes por monossílabos, hum hum, quando queria dizer sim.
Bebia o meu café de um só trago, e sempre preocupado com o barulho que a máquina fazia. De seguida, ia para a sala, para a minha secretária, acendia a luz do pequeno candeeiro e aí passava o resto do dia, fazendo os poucos trabalhos que ainda me mandavam. Ao fim do dia, colocava-os em cima da secretária do Senhor Imperador, depois de ele se ter ido embora. Não suportava o seu olhar, quando me perguntava alguma coisa começava a tremer, gaguejava e saía da sua sala, humilhado, incapaz de produzir qualquer vestígio de som.
Naqueles dias, ainda saía para almoçar. Ao regressar, cumpria o mesmo ritual, abria a porta muito devagar, sem fazer barulho, cumprimentava os meus colegas com os mesmos hum hums de sempre e sentava-me no lugar que me estava destinado.
Nas raras vezes em que me aventurava a sair da cadeira, evitava as outras pessoas. Se alguém aparecesse lá ao fundo, no corredor, escondia-me atrás de alguma porta ou armário.
Passaram-se vários meses, até que se tornou insuportável abrir aquela porta sabendo que havia gente lá dentro, esperando-me, espiando-me com aqueles olhos carregados de ódio e desprezo.
O Imperador já não respondia aos meus cumprimentos, mesmo quando esboçava um sorriso idiota. Os outros também deixaram de me dirigir a palavra.
Comecei a planear o meu horário de trabalho. Passei a chegar 10 minutos antes da primeira pessoa, a Dulcineia, que aparecia todos os dias, pontualmente, às 9 da manhã. Às 8.50 já eu lá estava, sentado na minha mesa. Saía do escritório depois da última pessoa, o Dr. Bucéfalo, que o abandonava sempre às 21 horas. 10 minutos depois, lá estava eu na rua.
Chegava a casa cansado e adormecia pouco depois. Ainda tinha de preparar a comida para o dia seguinte, pois já não me atrevia a sair à hora do almoço. E lá ia eu, todas as manhãs, com uma marmita na mão, mais o café, para beber durante o dia.
Foram-se esquecendo de mim, aos poucos. Deixei de ter trabalho. Agora, sento-me todos os dias à secretária, a ler o mesmo processo que está lá há pelo menos um ano.
Neste momento, sou incapaz de o terminar, por não suportar a ideia de o ter de colocar em cima da mesa do Senhor Imperador e de saber que ele o irá ler, lembrando-se da minha existência.
Desta forma, todos os dias acrescento pequenos apontamentos, que já vão em centenas de páginas. Sei que nunca entregarei estas páginas a ninguém, mas ocupam-me o tempo, pelo menos.
Há coisa de umas semanas, quando estava sentado, vi uma pessoa entrar na sala e sentar-se ao meu lado. Retirei os papeis e fui sentar-me na ponta oposta da mesa, mesmo junto à parede. O candeeiro deixou de me iluminar, mas não me queixei. Com esta luz escassa, é complicado escrever.
Nunca trocámos uma palavra que fosse e a minha presença passa-lhe despercebida. Tem sido assim todos os dias. Ele chega 20 minutos depois de mim e sai às 20.45. Não sei o seu nome, nem me interessa.
Anteontem, ao transportar uma chávena cheia de café, a ferver, tropeçou e despejou-a mesmo em cima da minha cara. Apesar da dor intensa e de ter ficado momentaneamente cego, eu nada disse. A minha presença seria denunciada. Ele voltou atrás e foi buscar outro café, calmamente, como se nada tivesse ocorrido.
Como uma bizarra lembrança de um passado distante, recebo ainda, pelo correio, pontualmente, todos os meses, um cheque endereçado em meu nome, com a mesma quantia de sempre.
Hoje de manhã, ao tentar entrar, ocorreu uma coisa bizarra: não consegui abrir a porta. Depois de diversas tentativas, concluí que tinham mudado a fechadura. Fiquei uns minutos atónito, sem saber o que fazer.
Escondi-me: a Dulcineia estava a chegar. Via-a entrar e a fechar a porta.
Reflecti durante uns minutos antes de tomar uma decisão. O Dr. André chega todos os dias às 11 horas. É quase cego e muito distraído. Vou entrar com ele, à pressa e depois correrei até à minha sala e até à secretária. Mas é um plano arriscado, as probabilidades de alguém me ver são bastante elevadas.
Escorre-me suor pela testa abaixo. Escondido, de cócoras, atrás deste enorme vaso de flores, aguardo apreensivamente a chegada do meu redentor.
Cumprimentava-os à pressa, dizia um "bom dia" tímido e quase imperceptível. O Senhor Imperador, nos melhores dias, limitava-se a um aceno de cabeça. A maior parte das vezes, contudo, ignorava os meus grunhidos.
Quando os outros se me dirigiam, eu respondia-lhes por monossílabos, hum hum, quando queria dizer sim.
Bebia o meu café de um só trago, e sempre preocupado com o barulho que a máquina fazia. De seguida, ia para a sala, para a minha secretária, acendia a luz do pequeno candeeiro e aí passava o resto do dia, fazendo os poucos trabalhos que ainda me mandavam. Ao fim do dia, colocava-os em cima da secretária do Senhor Imperador, depois de ele se ter ido embora. Não suportava o seu olhar, quando me perguntava alguma coisa começava a tremer, gaguejava e saía da sua sala, humilhado, incapaz de produzir qualquer vestígio de som.
Naqueles dias, ainda saía para almoçar. Ao regressar, cumpria o mesmo ritual, abria a porta muito devagar, sem fazer barulho, cumprimentava os meus colegas com os mesmos hum hums de sempre e sentava-me no lugar que me estava destinado.
Nas raras vezes em que me aventurava a sair da cadeira, evitava as outras pessoas. Se alguém aparecesse lá ao fundo, no corredor, escondia-me atrás de alguma porta ou armário.
Passaram-se vários meses, até que se tornou insuportável abrir aquela porta sabendo que havia gente lá dentro, esperando-me, espiando-me com aqueles olhos carregados de ódio e desprezo.
O Imperador já não respondia aos meus cumprimentos, mesmo quando esboçava um sorriso idiota. Os outros também deixaram de me dirigir a palavra.
Comecei a planear o meu horário de trabalho. Passei a chegar 10 minutos antes da primeira pessoa, a Dulcineia, que aparecia todos os dias, pontualmente, às 9 da manhã. Às 8.50 já eu lá estava, sentado na minha mesa. Saía do escritório depois da última pessoa, o Dr. Bucéfalo, que o abandonava sempre às 21 horas. 10 minutos depois, lá estava eu na rua.
Chegava a casa cansado e adormecia pouco depois. Ainda tinha de preparar a comida para o dia seguinte, pois já não me atrevia a sair à hora do almoço. E lá ia eu, todas as manhãs, com uma marmita na mão, mais o café, para beber durante o dia.
Foram-se esquecendo de mim, aos poucos. Deixei de ter trabalho. Agora, sento-me todos os dias à secretária, a ler o mesmo processo que está lá há pelo menos um ano.
Neste momento, sou incapaz de o terminar, por não suportar a ideia de o ter de colocar em cima da mesa do Senhor Imperador e de saber que ele o irá ler, lembrando-se da minha existência.
Desta forma, todos os dias acrescento pequenos apontamentos, que já vão em centenas de páginas. Sei que nunca entregarei estas páginas a ninguém, mas ocupam-me o tempo, pelo menos.
Há coisa de umas semanas, quando estava sentado, vi uma pessoa entrar na sala e sentar-se ao meu lado. Retirei os papeis e fui sentar-me na ponta oposta da mesa, mesmo junto à parede. O candeeiro deixou de me iluminar, mas não me queixei. Com esta luz escassa, é complicado escrever.
Nunca trocámos uma palavra que fosse e a minha presença passa-lhe despercebida. Tem sido assim todos os dias. Ele chega 20 minutos depois de mim e sai às 20.45. Não sei o seu nome, nem me interessa.
Anteontem, ao transportar uma chávena cheia de café, a ferver, tropeçou e despejou-a mesmo em cima da minha cara. Apesar da dor intensa e de ter ficado momentaneamente cego, eu nada disse. A minha presença seria denunciada. Ele voltou atrás e foi buscar outro café, calmamente, como se nada tivesse ocorrido.
Como uma bizarra lembrança de um passado distante, recebo ainda, pelo correio, pontualmente, todos os meses, um cheque endereçado em meu nome, com a mesma quantia de sempre.
Hoje de manhã, ao tentar entrar, ocorreu uma coisa bizarra: não consegui abrir a porta. Depois de diversas tentativas, concluí que tinham mudado a fechadura. Fiquei uns minutos atónito, sem saber o que fazer.
Escondi-me: a Dulcineia estava a chegar. Via-a entrar e a fechar a porta.
Reflecti durante uns minutos antes de tomar uma decisão. O Dr. André chega todos os dias às 11 horas. É quase cego e muito distraído. Vou entrar com ele, à pressa e depois correrei até à minha sala e até à secretária. Mas é um plano arriscado, as probabilidades de alguém me ver são bastante elevadas.
Escorre-me suor pela testa abaixo. Escondido, de cócoras, atrás deste enorme vaso de flores, aguardo apreensivamente a chegada do meu redentor.
1 Comments:
You might believe the world is sweet and fine as sugar candy, but i myself believe in whatever comes in handy...
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