Ecos do Paraíso
«Depois de provar o fruto proibido, Adão e Eva conheceram a vergonha e envergonharam-se da sua nudez. A vergonha foi criada pelo Diabo, e por isso Deus percebeu que eles tinham cometido pecado ao verem a sua vergonha. Pela sua desobediência, Deus expulsou-os do Paraíso, mas deixou-lhes o prazer como consolação. Ao copularem, Adão e Eva não sentiram vergonha e essa ausência de vergonha fazia-os recordar o tempo em que estavam no Paraíso. Os amantes é a mesma coisa - por não terem vergonha em frente um do outro encontram o paraíso. Mas o Diabo não descansou e criou a sociedade humana, rodeada por uma bola de vergonha.
Deus permitiu ao homem ter uma mulher, sabendo que o pecado das tremuras passaria, mas não lhe permitiu fornicar com qualquer mulher nova. O pecado revive e perdura graças à variedade de mulheres fornecidas pela sociedade. O ser humano é uma criação de Deus, e a sociedade humana é criação do Diabo.
Pela violação da proibição, Deus não só expulsou Adão e Eva do Paraíso, como também multiplicou as proibições para dez. Não se pode ir para o Paraíso se se violar apenas uma. Violei uma por fornicação e violarei a segunda quando me vir livre de D'Anthès.»
Puchkin, Diário Secreto (1836-1837)
Deus permitiu ao homem ter uma mulher, sabendo que o pecado das tremuras passaria, mas não lhe permitiu fornicar com qualquer mulher nova. O pecado revive e perdura graças à variedade de mulheres fornecidas pela sociedade. O ser humano é uma criação de Deus, e a sociedade humana é criação do Diabo.
Pela violação da proibição, Deus não só expulsou Adão e Eva do Paraíso, como também multiplicou as proibições para dez. Não se pode ir para o Paraíso se se violar apenas uma. Violei uma por fornicação e violarei a segunda quando me vir livre de D'Anthès.»
Puchkin, Diário Secreto (1836-1837)
13 Comments:
Resumindo e concluindo - entre alhos e bugalhos - vá o diabo e escolha! :P
Que risota! ALIBIIISSS!!!
Sempre Deus e o Diabo!... Sei!... ;)
Caro Ângulo,
De novo te saúdo.
Excerto bonito este e pouco ortodoxo: pelo amor dos amantes regressa-se ao paraíso, onde não havia vergonha, onde não nos afligiam os juízos do outro.
Contudo, não percebo a seguinte afirmação:
O ser humano é uma criação de Deus, e a sociedade humana é criação do Diabo.
Que ser humano é esse que Deus criou? Se tudo o que nos torna grandes precisamente enquanto seres humanos advém da sociedade: dos conflitos de interesses que travamos com ela, e por outro lado e ao mesmo tempo, pela necessidade que temos dela (quer seja por conservação ou expansão). Se o Diabo criou a sociedade, então criou o que nos torna distintos de outras espécies: a arte, a ciência, a filosofia, a religião.
Aguardo pela tua reflexão.
Cumprimentos,
Cara Papillon,
Em primeiro lugar, deves ficar a saber que o Ângulo é esquizofrénico e que, tal como Cérbero, tem várias cabeças. Esta dir-te-ia que a tua reflexão é sapiente, na medida em que esta passagem de Puchkin respira justamente o paradoxo, ou a tensão, que observaste. E de ironia também. Puchkin estava prestes a desafiar em duelo aquele com quem a sua mulher o teria traído (e que lhe havia de custar a vida). Cometer o pecado do assassínio para purgar o pecado da fornicação, que ele próprio havia cometido.
Interpretações e cosmologias à parte, esta cabeça dir-te-ia ainda que Deus é o nome da anterioridade radical, isto é, da sentença que diz que tudo já começou sempre, ou seja, que não há um ponto-zero da criação. Criação, se a há, é obra do Diabo, sendo este o nome da inadequação constitutiva de todo o ser e de todo o tempo – o mundo vai acontecendo porque, contra toda a teleologia, nunca se encontra a si mesmo (e é a sentença do fantasma do pai a Hamlet: “the time is out of joint”). De que lado estará então o Eros de que fala o teu Hípias Maior? Porventura, estaremos ainda aqui demasiado presos às dicotomias...
Mas quiçá outra cabeça te contaria uma outra fábula.
Afectuosamente, pois que “o que é belo é difícil”.
Caro Ângulo,
Se tudo começou desde sempre, tudo é incriado, portanto sem princípio e não-teleológico, sem fim. Mas se o Diabo é constitutivo, é também desde sempre. Ou seja, segundo essa teoria, a teoria do paraíso e queda não cabe, que era a que Pushkin aludia - penso eu.
O Eros platónico é a força matriz. O Eros do meu hípias.blog é mundano e por isso estará de algum lado, ou de vários, mas nunca de todos.
Até breve :)
Cara Papillon
Uma vez mais lhe digo que, para mim, são a tensão e a ironia desesperada que sustentam o texto de Puchkin. Entre o mundano, e os seus acontecimentos, e a extrapolação para um princípio que os sustente e sobre o qual só podemos congeminar. Ou entre a imanência e a transcendência, se o preferir.
Quanto à questão do mito, repare que todos os mitos que sustentam as nossas estruturas através da crença, se referem sempre a um tempo originário, ou seja, anterior ao próprio tempo (antes do céu, da terra e do tempo): um “desde sempre”. Ou seja: mais do que explicar a origem, eles pretendem justificar o que existe. É o caso do mito judaico-cristão a que Puchkin se refere e que diz respeito à condição mundana do homem (judaico-cristão), é também o caso de quase todos os mitos criacionais (Egipto, Grécia, Escandinávia, Japão, etc.), mas é também o caso de muitos outros, aparentemente insuspeitos, como o mito do Big Bang ou o mito do contrato social, que explica a criação do Estado civil por oposição a um estado natural originário que nunca aconteceu.
Poder-se-ia objectar através da oposição clássica entre filosofia e mito, mas devo recordar também que poucas são as filosofias que não se baseiam em cosmologias (mais ou menos racionais), e que os filósofos mais afirmativos da vida não são excepção (Espinosa, Leibniz, Nietzsche) na criação de novas (e inventivas) cosmologias.
Quanto ao Eros platónico, ele é força motriz, mas é também o daimon que faz a mediação entre os homens e os deuses (Banquete), ou seja, a contaminação inevitável entre a imanência e a transcendência, entre o acontecer do sentido “aqui e agora” e a sua inscrição, que desfaz o instante e o projecta na eternidade. Concordo que o acontecer só pode ser local para ser singular (uma vez de cada vez, de uma vez por todas) e que também tem de ser em mais do que um lugar, posto que o mundo é múltiplo e é esta multiplicidade o que constitui. E que portanto não pode ser “em todos” (ao mesmo tempo), pelo que a omnipresença é justamente o primeiro atributo que haveria que retirar de “Deus”.
Afectuosamente, obrigado por mais uma visita.
Caríssimo Ângulo,
Agradeço-te por tantas palavras, não era minha intenção desencadear tamanho discurso. Apenas achei incongruente a teoria que expuseste da incriação com o mito judaico-cristão, ainda que em "tensão e ironia desesperada" referido por Pushkin. :)
Não tens que agradecer as minhas visitas, venho com gosto porque és um agradável anfitrião.
"Do que não podemos falar, devemos guardar silêncio..."
A posição do homem em face do seu "misterioso sócio" não é essencialmente diferente da do cão de Pavlov. O cão aprende rapidamente o "significado" do círculo e da elipse, e o seu mundo desmorona quando o experimentador subitamente destrói esse significado...
Para bom entendedor, meio macaco basta! AH!
cosmologia
feita
à
maneira
(à medida?)
é
como
queijo
numa
ratoeira
Hum
apeteceu-me
um
versinho
!
"sempre pensei que é uma injustiça para a mulher não ter estado nunca sozinha no mundo. Adão pode,por um tempo,muito ou pouco,caminhar sobre uma terra jovem e serena, entre os animais, na posse inteira da sua alma, e a maioria dos homens nasce ainda com a memória desse tempo. Mas a pobre Eva, essa,já o encontrou a ele,reclamando-a para si,no momento em que abriu os olhos para o mundo. E isto nunca a mulher perdoou ao Criador:ela sente-se com o direito a reaver para si propria esse tempo no Paraíso.Só que,para sua pouca sorte, ao perseguir-se um tempo já passado, sempre o apanhamos de raspão e pelo avesso."
Ok... Do "[...] Do que não podemos falar devemos guardar silêncio.", citado por Abelhuda Mor, eu desejo perguntar: ô, meu amor, vc leu "Pragmática da Comunicação Humana", de Watzlawick, Beavin & Jackson? É, porque esse livro contém essa citação de Russell, contida na Introdução ao Tractatus-Philosophicus..." de Wittgenstein. Parabéns... (sem ironia, claro)
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