sexta-feira, maio 23, 2008

ACTO I

1ª CENA

Foco de luz ilumina o Estômago (sentado com ar sofrido) e o (soberbo e austero).

: Ouvi dizer que não andas muito bem, ó Estômago.
Estômago: Pois, é esta azia constante, não deve ser nada, não sei... nunca sei muito bem...
: Ele nunca sabe dizer. Nunca nos quer informar. De qualquer modo, não creio que seja alguma coisa grave.
Estômago: Pois, também acho o mesmo. Mas eu é que pago sempre as favas. As leguminosas no geral. Aquela reacção doentia que ele tem com ela. Submete-se a todos os seus desejos.
: A ela e àquele amiguinho dele, o Coração. Quem é que o convenceu de que eram irmãos? Não consigo perceber tanta falta de senso. Eu, que vos carrego a todos sem me queixar.
Estômago: Mas andas outra vez com dores, ó Pé?
: Qual quê! O meu mote é andar, andar sempre. É como me sinto em forma, é como consigo escapar à sua maldita influência, que só vos faz ficar assim, prostrados como tu. Eu cá sinto-me em forma. Só odeio quando ele me manda ficar quieto. Aí, sim, começo a sentir dores, mas a maioria das vezes é porque ele não me muda de sapatos.
Estômago: Pronto, deixa-te disso. Sei que és chato, mas acalma-te. Afinal, não me sinto assim por gosto.
: Pois, acredito, desculpa. Não o percebo, a sério.
Estômago: Está sempre isolado, o problema é esse. Ela, aquela Boquinha atrevida, e o Coração só se aproveitam disso. Têm mais influência do que todos nós juntos, quer-me parecer.
: Mas, com tanto isolamento, com tanta reflexão, como é que ele se deixa ir assim?
Estômago: Se calhar devíamos ir falar com ele. O pior é que sempre que tento fazê-lo, ele se põe nervoso e a minha situação só piora. Qualquer dia aparece-me uma úlcera.
: Pois, também tenho medo que lhe dê mais neura e que decida outra vez que não vamos sair da cama. Como naquela altura em que o Cabelo resolveu começar a cair, lembras-te?
Estômago: Claro! Nessa altura sofri imenso mas foi de privação de comida. Dessa vez, por acaso, até foi ela que nos salvou, com os seus apetites insaciáveis...
: Sim, talvez. Mas é sempre pelas piores razões. Já não sei o que fazer. É que vocês todos, quando começam a entrar nesses processos estranhos, parece que ganham peso. E o meu caminhar torna-se lento e aborrecido. Perco a alegria toda.
Estômago: O que diz o teu irmão de tudo isto?
: O mesmo que eu. Está é menos preocupado. Eu, que sou o destro, tenho mais sonhos, mais actividades que gostava de pôr em prática, mais potencial para ser realizado. Ele compreende-me e diz que gostava de me apoiar, mas não se interessa tanto.
Estômago: Também gostava de ter um irmão. Sinto-me só.

O Intestino começa a falar em voz off.

Intestino: Pouco barulho, que já se faz tarde! Não descansas, ficas sem energia para digerir as coisas como deve ser e, depois, quem se lixa sou eu!
Estômago: Estava eu a queixar-me da solidão e vem-me agora este palerma retorcido do Intestino chatear-me outra vez. Vamos falar mais baixo.
: Mas qual é o problema deste, agora?
Estômago: Ele já sabe que quando há algum problema comigo, não tarde a passar para ele também. Se estou com azia, como agora, passados uns dias, está ele com cólicas. Se estou em baixo e não digiro bem os alimentos, o trabalho dele duplica. E como é grande e sinuoso, acha que o sofrimento dele tem mais valor. Mas eu não tenho culpa, não fui eu que escolhi esta organização.
: Chega! Daqui a pouco vais parecer ele a falar. Não quero ouvir mais, fiquemos por aqui. No fundo, continuo a achar que vocês são todos uns fracos cheios de auto comiseração. Há que fazer as coisas com dignidade. Mantermo-nos de pé. Adeus, vamo-nos vendo, infelizmente.

9 Comments:

Anonymous Anónimo said...

O corpo é um sistema, trabalha ou funciona em conjunto... e há orgãos que são vitais e têm muitos quereres... mas suponho que seja a isso que designamos de vida.
Não há vida sem desejo, não há corpo sem vida, parece-me... Isto é, só se forem zombies e tal...

5/23/2008  
Anonymous Anónimo said...

... Mas não era isto que queria dizer... acho era que devia cortar as unhas dos pés - faz bem à ambivalência corporal. Também há uma poção muito boa, mas não posso dizer - é segredo.

5/23/2008  
Anonymous Anónimo said...

Ao que parece que não somos senhores das nossas próprias casas. Talvez a(s) chave(s) do(s) enigma(s) esteja(m) no(s) sotão(s), que é onde guardamos as coisas muito antigas, algumas ancestrais... Heranças, provavelmente, e alguns segredos.
Ainda bem que me lembra, vou já abrir as janelas para sair o pó e entrar alguma claridade.

5/23/2008  
Anonymous Anónimo said...

"Ao que parece não somos senhores...", corrijo.
Ah, demência!

5/23/2008  
Anonymous Anónimo said...

Oh, o meu bom amigo está, hmmmm, a precisar de um pomar!
Sim, de muito sumo anti-oxidante.
De uma boca que seja um morango, de um par de olhos que sejam duas uvas violeta; umas mamas tal e qual dois pêssegos a rebentarem de nectar... E depois... Depois um ombro que É uma maçã.
Ai a maçã, a maçã...Fruta da discórdia, da sabedoria e da tentação!
Um ombro que é uma maçã; uma maçã que é um ombro e/ou outra coisa qualquer...

5/23/2008  
Anonymous Anónimo said...

"um dia haverá barcos e seremos livres".

5/23/2008  
Blogger E. A. said...

A causa e a raiz (archê) de todo o bem (agathon) é o prazer do estômago. Mesmo a sabedoria (sophia) e a cultura devem ser referidos a isto.

Ainda bem que o estômago não sabe ler, senão apelaria à autoridade de Epicuro! ;)

5/23/2008  
Blogger Boécio said...

Cara Pluma: justamente há órgãos que são vitais e têm muitos quereres, daí a elegia Artaud/Deleuze: "Por que é que tenho órgãos?";

Caro Damásio: eu gosto de sótãos, mas só dos desarrumados;

Caro Adão: pode dar-me a direcção de esse maravilhoso pomar, por favor?

Cara Lili: bem vinda, uma vez mais; e para além de barcos também há aviões que atravessam oceanos;

Cara Papi: mais um excelente comentário; lembrar que Eros, o arrebatamento, vem à mesa de Platão num certo banquete.

5/23/2008  
Anonymous Anónimo said...

Se meter voos, então, prefiro outra experiência aeronáutica que não seja a de andar avião.

5/24/2008  

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