Romualdo decide emigrar
Romualdo decide juntar-se ao contingente da emigração.
Enche a mala de viagem à pressa, com as primeiras coisas que
lhe aparecem pela frente, não vá mudar de ideias. Pares de peúgas
desemparelhadas, camisas de riscas, calças aos quadrados, chapéus-de-chuva,
óculos de sol, uma cana de pesca e um gorro para a neve, é tudo misturado
compactamente, como os alimentos numa Bimby. Senta-se em cima da mala, conta
trinta segundos muito lentamente; fecha a mala num golpe rápido e descansa
durante um minuto.
Romualdo sai de casa, mas não compra bilhetes de transporte
para um lugar distante, pois não gosta de andar de avião, tem fobia a comboios,
os autocarros provocam-lhe náuseas, não tem carro nem carta e não vai pedir
boleia – os pais sempre o ensinaram a não falar com estranhos. De qualquer
forma, não tem dinheiro nem conhece ninguém no estrangeiro. É um viajante e vai
à aventura. Começa a sua caminhada.
Mas Romualdo sente vertigens quando anda muito a pé e
custa-lhe afastar-se de casa. Basta andar dez metros e já lança um adeus
choroso à sua bela e amada casa, situada num prédio velhote e a necessitar de
obras urgentes.
Começa a andar ao pé-cochinho muito lentamente. Ao pescoço,
leva uma placa que diz “Trabalho por comida/ Will work for food”…e em mais dez
línguas, afinal Romualdo é um emigrante qualificado, teve estudos, toca piano e
sabe falar francês e grego antigo.
Sobe a rua e vira numa perpendicular à direita. Continua a
andar ao pé-cochinho e chega a uma travessa, segue em frente e vira na terceira
ou quarta rua à esquerda. Sobe uma ladeira íngreme e vira na segunda rua à
direita.
Está calor, sente-se cansado. É um viajante, mas tem fome e
sede e começa a sentir dores no pé direito, aquele pé que suporta o peso todo
do seu corpo e da sua mala. Chega a uma rua comprida e estreita. Pára. Olha
atentamente em todas as direcções e fica agradado com o que vê. Sabe
instintivamente que chegou ao seu país de destino.
Romualdo continua com muita fome e não lhe apetece abrir a
mala. Lá dentro escondem-se duas bananas, mas suspeita que nesta altura já se
mesclaram com a gabardine amarela.
Entra num estabelecimento comercial, vai ao balcão,
dirige-se ao dono do estabelecimento e, com grandes gestos, aponta para a placa
que tem pendurada ao pescoço.
O homem fita Romualdo sem saber em que língua falar e
pergunta-lhe por gestos se está mesmo disposto a trabalhar em troca de comida.
Romualdo acena com a cabeça em sinal de assentimento e
esboça-se, nesse mesmo instante, um enorme sorriso na cara do dono do
estabelecimento. Sem dizer palavras, entrega a Romualdo uma farda de trabalho.
A partir desse
instante, começa a trabalhar seis dias por semana das 9 às 19, em troca de
comida., que ingere avidamente durante a pausa de dez minutos de que dispõe
para almoçar.
Por cima do estabelecimento vive uma velhota que arrenda
quartos. Fazem um acordo gestual, no qual fica estabelecido que Romualdo poderá
dormir de graça numa minúscula divisão que se encontra livre, nas águas
furtadas.
Romualdo tem apenas de fazer as limpezas gerais do prédio
todo, o que inclui tarefas tão díspares, como encerar as escadas ou limpar e
desentupir as sanitas.
A nova vida é dura, mas não se queixa, deita-se satisfeito a
olhar pela janela das águas furtadas do seu novo país, enquanto mata os
percevejos que passeiam no colchão. A rua fica no sopé de uma elevação e
Romualdo consegue ver, bem lá ao fundo, a sua antiga casa.
Nunca se deita antes das duas da manhã. Diverte-se a
escrever no Facebook uma coluna diária a que dá o nome de “as peripécias de um
emigrante”.
Os amigos acham-lhe muita graça.
Aos domingos tem a folga semanal e aproveita-a para conhecer
a pátria de acolhimento.
Como as dimensões são muito reduzidas (resumem-se a uma
longa e comprida rua), Romualdo percorre-a muito lentamente, a fazer o pino.
Isso dá-lhe tempo de olhar com pormenor para cada uma das pequeníssimas
idiossincrasias do seu país de acolhimento:
Ontem, postou a seguinte foto no Facebook, com a legenda:
“As bizarras ementas dos restaurantes locais”
Foi um sucesso retumbante – 60 likes, 40 comentários e 15
pedidos de amizade. Os amigos consideram-no um caso de sucesso. Trabalha muito,
é empreendedor e ajuda a espalhar o bom nome da terra-mãe.
Também é bastante popular no país de acolhimento. Agrada ao
dono do estabelecimento, que lhe enaltece o abnegado espírito de sacrifício e
agrada à velhota arrendatária. Desde que se mudou para o seu edifício, o número
de percevejos decaiu drasticamente.
Romualdo agrada aos restantes habitantes do país. Tornou-se
uma celebridade desde que começou a calcorrear as ruas fazendo o pino. A fama
espalhou-se e já são muitos os turistas que vêm especialmente para o ver, das
ruas em redor, o que é bastante bom para o negócio.
Hoje, um casal amigo passeia nas imediações. A rapariga
pergunta, a certa altura:
- Olha lá, aquele não é o Romualdo?
Romualdo, que está de pernas para o ar, a fazer as suas
deambulações domingueiras, também os vê, mas não pode acenar de volta.
O rapaz comenta para a namorada:
- Não é nada! Então não tens visto os textos dele? O
Romualdo está a viver no estrangeiro! Para além disso, aquele rapaz anda de uma
forma esquisita.
Riem-se.
A rapariga concorda:
- É verdade, que estupidez a minha! Vamos mandar uma
mensagem de Facebook ao Romualdo, a dizer que encontrámos um rapaz muito
parecido com ele a andar de pernas para o ar.
Ao que o rapaz responde:
- Achas? O Romualdo tem mais que fazer do que ler essas
parvoíces. Não tens visto as histórias dele? São coisas muito mais giras e
mirabolantes. Anda! Vamos para casa. Aqui não se passa nada.
Afastam-se.
Romualdo fica a olhar para o casal de amigos, que se afasta.
Sorri de contentamento.
Diz entredentes:
- Quando souberam que eu vi os seus clones exactos, mas com
cara de turistas apatetados a passearem feitos domingueiros, vão-se partir a
rir!
Com estes pensamentos em mente, apressa o passo manual, que
se tornou bastante hábil com a prática diária.
Sobe as escadas do prédio a grande velocidade, matando dois
percevejos pelo caminho.
1 Comments:
andamos todos enganados.
como diz o ditado: enganadetes, mas alegretes. :p
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