sexta-feira, dezembro 15, 2006

Cluedo

«Scholem escreveu um dia que há qualquer coisa de infinitamente desconsolador na doutrina da ausência de objecto do conhecimento supremo, tal como é ensinada nas primeiras páginas do Zohar, e que constitui, de resto, a lição última de toda a mística. Nessas páginas, no limite extremo do conhecimento, aparece o pronome interrogativo O quê? (Mah), para lá do qual não há já resposta possível: “Quando um homem interroga, procurando discernir e conhecer, grau após grau até ao último, atinge o Quê?, ou seja: Entendeste o quê? Viste o quê? Buscaste o quê? Mas tudo continua tão impenetrável como ao princípio.” Mais íntimo e oculto é, no entanto, segundo o Zohar, o outro pronome interrogativo, que assinala o limite superior dos céus: Quem? (Mi). Se o Quê? é a pergunta que interroga a coisa (o quid da filosofia medieval), o Quem? é a pergunta que se dirige ao nome: “O impenetrável, o Antigo, criaram isso. E quem é isso? É o Quem?... Como é, a um tempo, objecto de pergunta e indesvendável e fechado, chama‑se‑lhe Quem? Para lá dele não há mais perguntas... Existente e inexistente, impenetrável e fechado no nome, não tem outro nome senão Quem?, aspiração a ser desvendável, a ser chamado por um nome.”
É certo que o pensamento, uma vez atingido o limite do Quem?, deixa de ter objecto, chega à experiência da ausência de objecto último. Mas isto não é desconsolador, ou melhor, é-o apenas para um pensamento que, tomando uma pergunta por outra, continua a perguntar Quem?, lá onde não só já não há respostas, como também não há perguntas. Verdadeiramente desconsolador seria o conhecimento último ter ainda a forma da objectualidade. É precisamente a ausência de um objecto último do conhecimento que nos salva da tristeza sem remédio das coisas. Toda a verdade última formulável num discurso objectivante, ainda que na aparência feliz, teria necessariamente um carácter destinal de condenação, de um ser condenado à verdade. A deriva em direcção a este definitivo fechamento da verdade é uma tendência presente em todas as línguas históricas, a que a filosofia e a poesia obstinadamente se opõem, e na qual encontram alimento, tanto o poder significante das linguagens humanas, como a sua inelutável morte. A verdade, a abertura que, segundo um oros platónico, é própria da alma, fixa-se, através da linguagem e na linguagem, num último e imutável estado de coisas, num destino.
Nietzsche tentou escapar a este pensamento pela ideia do eterno retorno, pelo sim dito ao instante mais atroz, quando a verdade parece fechar-se para sempre num mundo de coisas. O eterno retorno é, de facto, uma última coisa, mas ao mesmo tempo também a impossibilidade de uma última coisa: a eterna repetição do fechamento da verdade num estado de coisas é, enquanto repetição, também a impossibilidade desse fechamento. Na formulação insuperável de Nietzsche, o amor fati, o amor do destino.
Esse monstruoso compromisso entre destino e memória, no qual aquilo que só pode ser objecto de recordação (o retorno do idêntico) é vivido todas as vezes como um destino, é a imagem distorcida da verdade, que o nosso tempo não consegue dominar. Porque a abertura da alma – a verdade – não se abre sobre o abismo de um destino infinito, nem se fecha na eterna repetição de um estado de coisas, mas, abrindo-se num nome, ilumina apenas a coisa e, fechando-se sobre ela, apreende ainda a sua própria aparência, recorda-se do nome. Este difícil cruzamento entre dom e memória, entre uma abertura sem objecto e aquilo que não pode ser senão objecto, é a verdade na qual, segundo o autor do Zohar, o justo encontra a sua morada: “O Quem? é o limite superior do céu, o Quê? o limite inferior. Jacob recebe-os a ambos em herança, foge de um limite para o outro, do limite inicial Quem? para o limite final Quê?, e mantém-se no meio.”»

(Giorgio Agamben, "Ideia da verdade" in Ideia da prosa)

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Como?
Quem?
Onde?
Porquê?

12/18/2006  

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