quarta-feira, abril 04, 2007

Fragmentos de um chá no deserto - 2

Algazel: Sabes por que me tornei místico?

Homem Gargalhada: Suspeito. Mas podes dizer-mo, se o desejares.

A.: Antes eu tive tudo, conheci todas as coisas, amei a diversidade da vida, saboreei o pão, o vinho, a água e a saliva humanos. Toquei e trinquei peles, ora queimadas, ora virgens. Distinguia no paladar a amada desejada, via uma luz atravessar os corpos desconhecidos e interpretava os sinais com uma presciência quase divina. Correr ou estar parado eram para mim uma mesma natureza em estados diferentes. A aventura era o destino natural da minha vida, tal como é o da tua. Até que um dia... bem, não foi num dia exacto, não foi mesmo num momento decisivo, não houve um instante, houve sim qualquer coisa, qualquer coisa que eu não consigo dizer em palavras e que demorou milhões de anos a surgir, ou talvez tempo nenhum, que veio ter comigo, apareceu, mas não me apareceu aos sentidos, eu não a vi, não a ouvi nem sequer toquei, mas senti-a e ela abraçou-me. Alguns chamam-lhe loucura [o Homem-Gargalhada, que segue com a máxima atenção e tristeza as palavras de Algazel move subtilmente a cabeça e fixa os olhos no vazio como que a convencer-se de que esses que lhe chamam loucura nada sabem do mundo…], chamam-lhe loucura porque aqui tudo tem que ter um nome, mas essa coisa que me abraçou não tem nome e só quem a conhece sabe porque tem de ser assim.

H.G.: (um suspiro finíssimo, é tudo o que o Homem-Gargalhada tem a dizer)

A.: Agora tenho a areia do deserto, o céu, um ou outro oásis, e isso chega-me, tal como basta a Deus possuir o Universo todo…

H.G.: Os místicos, quer-me parecer, são os supremos apaixonados, supremamente desencantados.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

"...tal como basta a Deus possuir o Universo todo..." - Deus sofre de Mania, é bem verdade...

4/13/2007  

Enviar um comentário

<< Home