domingo, junho 01, 2008

2ª CENA

O Coração olha para o infinito, com o semblante carregado de melancolia. É gordo e parece um maltrapilho. Entra o Fígado, furioso e amarelado.

Fígado: Coração, preciso de falar contigo já!
Coração: Agora não, Fígado, estou cheio de mágoas.
Fígado: Pois, é por isso mesmo. Ele acaba de me mandar produzir outra vez a bílis negra para se carregar de melancolia. E a culpa, como sempre, é toda tua!
Coração: Já te disse que não estou em condições.
Fígado: Por isso é que estás cada vez mais gordo! Sempre cheio de mágoas. E quando não são mágoas, são paixões, ou afectos, ou seja lá o que for. Ainda não aprendeste a fazer dieta?!
Coração: Desculpa, mas não vou aceitar sugestões, e muito menos insultos, de órgãos menores. Ainda para mais, eu sou o sustento de todos vocês, se um dia desaparecer, desaparecem todos.
Fígado: Ai é? Pois experimentemos viver sem fígado, verás quanto tempo nos aguentamos sem filtrar toxinas.
Coração: Deixa-me em paz. Já te disse que estou cheio.
Fígado: Gordo e miserável. Devias ter vergonha. As roupas esfanicadas, a barba por fazer, falta de banho e cicatrizes por todo o lado. Que degredo!
Coração: Cala-te.

Entra a Boca, de mãos na anca, nariz empinado e pose afectada.

Boca: Já ouviste, deixa-o em paz! Ele foi muito maltratado. E qualquer desatenção pode ser a gota de água.
Fígado: E eu? Cada vez que ele se resolve encher do que quer que seja, lá sou eu forçado a produzir bílis negra até à náusea. E tu és a mesma coisa, ó Boca, quando andas muito juntinha com ele, aparecem-te sempre uns apetites especiais, como o da vinhaça, e eu é que me lixo. Há alturas em que ando tão inchado que pareço um peru pronto a virar foie gras. Um dia destes aparece-me mesmo uma cirrose e depois queixem-se se parecerem os líderes do pelotão, amarelinhos que nem uns pintos.
Boca: Eu com as tuas impertinências posso bem, mas deixa o Coração em paz. Qualquer dia dá-lhe um colapso e vamos todos desta para melhor!
Fígado: Mas ele não se sabe defender, é? Não tem boca?
Boca (ainda mais afectada): Ah, ah, ah, que piadinha. Volta mas é para o teu cantinho, sim?
Fígado: Eu já disse que estou farto disto. Ele passa o tempo ali fechado [o Fígado aponta para o canto do palco, onde se acende um foco que ilumina o Cérebro, sentado à secretária num gabinete minúsculo, com a cabeça apoiada nas mãos], isto está tudo um caos, já nenhum órgão percebe bem a sua função, cada um à mercê dos caprichos dele, e vocês os dois a aproveitarem-se da situação. O Coração para se encher de tudo o que lhe apetece, engordar até mais não poder e ficar naquele estado deprimente. E tu, para veres satisfeitos todos os teus desejos mais desbragados. Os outros que se lixem, que paguem a factura.
Boca (histérica): Recuso-me a ouvir mais! Sou caprichosa, sim, e então? Sou uma boca maravilhosa, capaz de providenciar os mais nobres discursos, adornada com uns lábios carnudos e sensuais e com dentes brancos e perfeitos. Acho que mereço ser bem recompensada. Já tu, órgão horroroso e mesquinho, tens mais é que comer e calar.
Fígado: Seja, eu avisei. E tu não te vais ficar a rir por muito tempo. Não tarda nada os teus dentes branquinhos vão começar a apodrecer e a cair. E, caso não tenhas notado, andas a cheirar mal. Pudera, com o que atiras ao Estômago! Coitado, ele já nem se queixa. Mas eu sei que lhe está a nascer uma úlcera. E toda aquela azia vai subindo, subindo, até te pôr a tresandar.
Boca (cheira-se com um ar preocupado): Ora, isso é inveja, não cheiro nada mal... Sou maravilhosa. Maravilhosa, ouviste!
Fígado: Eu não digo mais nada. Adeus, vamo-nos vendo, infelizmente.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Essa boca é minha, pá!

6/01/2008  

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