segunda-feira, abril 16, 2007

Interrupção para uma gargalhada lancinante

«Há muito que lhe não escrevo, Frau Milena, e mesmo hoje estou a escrever só em consequência de um incidente. Não tenho de me desculpar pelo meu silêncio, pois bem sabe como detesto cartas. Todas as desgraças da minha vida - não o afirmo para me queixar, mas sim para daí retirar uma lição de interesse mais geral - resultam, digamos, de cartas ou da possibilidade de as escrever. Nunca fui, por assim dizer, enganado pelos homens, mas pelas cartas sempre; e, na realidade, não só pelas de outras pessoas, mas pelas minhas. No que me diz respeito, há aqui um desgosto pessoal sobre o qual nada mais direi, mas há também uma desgraça geral. A grande facilidade de escrever cartas deve ter introduzido no mundo - do ponto de vista puramente teórico - uma terrível desintegração das almas. É, de facto, uma relação com fantasmas, não só com o fantasma do destinatário, mas também com o nosso próprio fantasma, o qual cresce entre as linhas da carta que se escreve e, sobretudo, numa sequência de cartas onde uma corrobora a outra e a refere como testemunha. Como poderá ter surgido a ideia de que as pessoas podem comunicar umas com as outras através de uma carta? Pode-se pensar numa pessoa distante, pode-se ir ter com uma pessoa que esteja próxima - tudo o mais está para além da força humana. Escrever cartas significa despirmo-nos diante dos fantasmas, e eles aguardam avidamente este gesto. Beijos escritos não chegam ao destino, os fantasmas bebem-nos pelo caminho. É graças a este alimento abundante que eles se multiplicam enormemente. A humanidade sente-o e luta contra ele; e para tentar eliminar o mais possível o elemento fantasmático entre as pessoas e criar uma comunicação natural, restaurando a paz das almas, inventou o caminho-de-ferro, o automóvel, o aeroplano. Mas isso já não serve de nada, pois estas são, evidentemente, invenções feitas no momento da queda. O adversário é de tal maneira mais calmo e mais forte: depois do serviço postal, ele inventou o telégrafo, o telefone, a telegrafia sem fios, [a internet]. Os fantasmas não morrerão à fome, mas nós, nós pereceremos.»

(Extracto de uma carta de Kafka a Milena Jesenská)

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Pois, não dá...mesmo as lágrimas, alguém as bebe pelo caminho. E são muito revitalizantes para fantasmas.São tipo gurosan, têm sais minerais indespensáveis ao bom funcionamento cardíaco. Para não falar que são hidratantes... Há quem se alimente de lágrimas. Não das suas, das dos outos...Para ficarem mais fortes...
E poderem ver a ultima sessão, eheheheh...

4/16/2007  
Anonymous Anónimo said...

inscreve
a
letra
no
corpo
que
o
fantasma
aparece
buh
!

4/16/2007  
Blogger Maria Ostra said...

Já ninguém pega na caneta para escrever, não é?
É uma relação em vias de extinção...

4/16/2007  

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