quinta-feira, abril 05, 2007

Uma longa citação -2

A lei, o humor e a ironia

Há uma imagem clássica da lei. Platão deu-nos dela uma expressão perfeita, que se impôs no mundo cristão. Esta imagem determina um duplo estado da lei, do ponto de vista do seu princípio e do ponto de vista das suas consequências. Quanto ao princípio, a lei não é primeira. A lei não é senão um poder segundo e delegado, ela depende de um princípio mais elevado que é o Bem. Se os homens soubessem o que é o Bem, ou soubessem conformar-se a ele, não precisariam de lei. A lei não é senão o representante do Bem num mundo deixado por ele mais ou menos ao abandono. Se bem que, do ponto de vista das consequências, obedecer às leis é o “melhor”, o melhor sendo a imagem do Bem. O justo submete-se às leis, no país em que nasceu, no país em que vive. Ele contribui assim para o melhor, mesmo que guarde a liberdade de pensar – de pensar o Bem e pelo Bem.

Esta imagem, tão conformista em aparência, não deixa de comportar uma ironia e um humor que constituiriam as condições de uma filosofia política, uma dupla margem de reflexão, acima e abaixo do patamar da lei. A morte de Sócrates é quanto a isto exemplar. Eis que as leis colocam o seu destino entre as mãos do condenado e, através da sua submissão, exigem que ele lhes dê uma sanção reflexa. Há imensa ironia no esforço de erguer as leis a um Bem absoluto, como que a um princípio necessário que as funde. Há imenso humor no esforço de descer das leis para um Melhor relativo, necessário para nos persuadir a obedecer-lhes. O mesmo é dizer que a noção de lei não se sustenta por si mesma, a não ser através da força, e que ela precisa idealmente de um princípio mais elevado, assim como de uma consequência mais remota. Talvez seja por isto que, a partir de um texto misterioso do Fédon, os discípulos não consigam assistir à morte de Sócrates sem rir. A ironia e o humor formam essencialmente o pensamento da lei. É por relação com a lei que se exercem e que encontram o seu sentido. A ironia é o jogo de um pensamento que se permite fundar a lei sobre um Bem infinitamente superior; o humor é o jogo desse pensamento que se permite sancionar por um Melhor infinitamente mais justo.

Se nos perguntarmos sob que influências a imagem clássica da lei foi invertida e destruída, é certo que a resposta não será a descoberta de uma relatividade, de uma variabilidade das leis. Porque esta relatividade era plenamente conhecida e estava plenamente incluída na imagem clássica; fazia necessariamente parte dela. A verdadeira razão encontra-se noutro lugar. Encontraremos o enunciado mais rigoroso na Crítica da razão prática de Kant. O próprio Kant diz que a novidade do seu método é que nele a lei já não depende do Bem mas, pelo contrário, é o Bem que depende da lei. Isto significa que a lei já não tem de se fundar, já não se pode fundar sobre um princípio superior do qual retiraria o seu direito. Isto significa que a lei deve valer por si mesma e fundar-se sobre si mesma, que não tem portanto outro recurso que a sua própria forma. É a primeira vez, desde logo, que se pode, que se deve falar d’A LEI, sem outra especificação, sem indicar um objecto. A imagem clássica não conhecia senão as leis, específicas como tais ou tais, a partir dos domínios do Bem e das circunstâncias do Melhor. Quando Kant, pelo contrário, fala d’ “a” lei moral, a palavra moral designa apenas a determinação do que permanece absolutamente indeterminado: a lei moral é a representação de uma pura forma, independente de um conteúdo e de um objecto, de um domínio e de circunstâncias. A lei moral significa A LEI, a forma da lei, como que excluindo todo o princípio superior capaz de a fundar. Neste sentido, Kant é um dos primeiros que rompem com a imagem clássica da lei e que nos abrem uma imagem propriamente moderna. A revolução copernicana de Kant na Crítica da razão pura consistia em fazer girar os objectos do conhecimento em torno do sujeito; mas a da Razão prática, que consiste em fazer girar o Bem em torno da Lei, é sem dúvida muito mais importante. Sem dúvida também que ela exprime as últimas consequências de um retorno à fé judaica para lá do mundo cristão; talvez anuncie mesmo o retorno a uma concepção pré-socrática (edipiana) da lei, para lá do mundo platónico. Fica que, ao fazer da LEI um fundamento último, Kant dotava o pensamento moderno de uma das suas dimensões principais: o objecto da lei furta-se essencialmente.

Aparece uma outra dimensão. A questão não é a do equilíbrio que Kant deu à sua descoberta no seu próprio sistema (e do modo como ele salva o Bem). Trata-se antes de uma outra descoberta, correlativa, complementar da anterior. Ao mesmo tempo que a lei já não se pode fundar sobre um princípio superior, também já não pode fazer-se sancionar pelo Melhor como boa vontade do justo. Porque o mais claro é que A LEI, definida pela sua pura forma, sem matéria e sem objecto, sem especificação, é tal que não se sabe o que ela é, e não se pode sabê-lo. Ela age sem ser conhecida. Ela define um domínio de errância no qual já se é culpado, isto é, no qual se transgrediu já os limites antes de saber o que ela é: assim Édipo. E a culpabilidade e o castigo não nos fazem sequer conhecer o que é a lei, mas deixam-na nessa indeterminação mesma, que corresponde como tal à precisão extrema do castigo. Kafka soube descrever este mundo. E não se trata de colocar Kant ao lado de Kafka, mas apenas de resgatar dois pólos que formam o pensamento moderno da lei.

Com efeito, se a lei não se funda mais sobre um Bem prévio e superior, se vale pela sua própria forma que deixa o conteúdo inteiramente indeterminado, torna-se impossível dizer que o justo obedece à lei pelo melhor. Ou antes: aquele que obedece à lei não é ou não se sente justo por causa disso. Pelo contrário, ele sente-se culpado, é culpado de antemão, e tanto mais culpado quanto mais estritamente obedece. É através da mesma operação que a lei se manifesta enquanto lei pura, e nos constitui como culpados. As duas proposições que formavam a imagem clássica afundar-se-iam ao mesmo tempo, a do princípio e a das consequências, a da fundação pelo Bem e a da sanção pelo justo. Foi Freud quem resgatou este fantástico paradoxo da consciência moral: longe de nos sentirmos tanto mais justos quanto nos submetemos à lei, esta «comporta-se com tanta mais severidade e manifesta uma desconfiança tanto maior quanto mais virtuoso é o sujeito... Rigor tão extraordinário da consciência moral em ser-se o melhor e o mais dócil...» (Freud, Mal-estar na civilização).

Mas, mais ainda, pertence a Freud ter dado a explicação analítica do paradoxo: não é a renúncia às pulsões que deriva da consciência moral, pelo contrário, é a consciência moral que nasce da renúncia. Logo, quanto mais forte e rigorosa é a renúncia, mais a consciência moral, herdeira das pulsões, é forte e se exerce com rigor. («A acção exercida sobre a consciência pela renúncia é tal que toda a fracção de agressividade que nos abstemos de satisfazer é recuperada pelo super-ego e acentua a sua própria agressividade contra o ego.») Revela-se agora, então, o outro paradoxo, que diz respeito ao carácter fundamentalmente indeterminado da lei. Tal como diz Lacan, a lei é a mesma coisa que o desejo recalcado. Ela não poderia determinar sem contradição o seu objecto ou definir-se por um conteúdo sem erguer o recalcamento sobre o qual repousa. O objecto da lei e o objecto do desejo não são senão um, e furtam-se simultaneamente. Quando Freud mostra que a identidade do objecto reenvia à mãe e que a própria identidade do desejo e da lei ao pai, não pretende simplesmente restaurar um conteúdo determinado da lei mas, quase que pelo contrário, mostrar como a lei, em virtude da sua fonte edipiana, não pode senão furtar necessariamente o seu conteúdo, para valer como pura forma nascida de uma dupla renúncia ao objecto como ao sujeito (mãe e pai).

A ironia e o humor clássicos, tal como tinham sido empregues por Platão, tal como tinham dominado o pensamento das leis, encontram-se portanto invertidos. A dupla margem, representada pela fundação da lei sobre o Bem e pela aprovação do sábio em função do Melhor, encontra-se reduzida a nada. Nada mais há do que a indeterminação da lei de um lado, e a precisão do castigo do outro. Mas por causa disto, a ironia e o humor tomam uma nova figura, moderna. Continuam a ser um pensamento da lei, mas pensam-na na indeterminação do seu conteúdo, tal como na culpabilidade daquele que se submete a ela. É evidente que Kafka dá ao humor e à ironia valores propriamente modernos na sua relação com a mudança de estatuto da lei. Max Brod recorda que quando Kafka leu O Processo, os ouvintes desataram a rir às gargalhadas, tal como o próprio Kafka. Riso tão misterioso quanto aquele que acolhe a morte de Sócrates. O pseudo-sentido do trágico é imbecil; quantos autores não deformamos à força de substituirmos a potência agressiva cómica do pensamento que os anima por um sentimento trágico pueril. Nunca houve senão uma maneira de pensar a lei, um cómico do pensamento, feito de ironia e de humor.

Mas eis que, com o pensamento moderno, se viria a abrir a possibilidade de uma nova ironia e de um novo humor. A ironia e o humor estão agora dirigidos para uma inversão da lei. Encontraremos Sade e Masoch. Sade e Masoch representam os dois grandes empreendimentos de uma contestação, de uma inversão radical da lei. Chamamos sempre ironia ao movimento que consiste em superar a lei na direcção de um princípio mais elevado, para não reconhecer na lei senão um princípio segundo. Mas, precisamente, o que se passa quando o princípio superior já não existe, já não pode ser um Bem capaz de fundar a lei e de justificar o poder que lhe delega? Sade mostra-nos. A lei em todas as suas formas (natural, moral, política) é a regra de uma natureza segunda, sempre ligada a exigências de conservação, e que usurpa a verdadeira soberania. Importa pouco que, seguindo uma alternativa bem conhecida, a lei seja concebida como exprimindo a força sobranceira do mais forte ou, pelo contrário, como a união protectora dos fracos. Porque estes senhores e estes escravos, estes fortes e estes fracos pertencem inteiramente à natureza segunda; é a união dos fracos que favorece e suscita o tirano, é o tirano que precisa deste união para ser. De qualquer das formas, a lei é a mistificação, não o poder delegado mas o poder usurpado, na abominável cumplicidade entre os escravos e os seus senhores. Sublinhe-se até que ponto Sade denuncia o regime da lei como sendo simultaneamente o dos tiranizados e o dos tiranos. Com efeito, não se tiraniza senão através da lei: «As paixões do meu vizinho são infinitamente menos temíveis que a injustiça da lei, porque as paixões do meu vizinho estão contidas pelas minhas, enquanto que nada pára, nada contém as injustiças da lei.» Mas também, e sobretudo, não se é tirano senão através da lei: o tirano não floresce senão com a lei, e, como diz Chigi em Juliette: «Não é nunca na anarquia que os tiranos nascem, não os vejais erguer-se senão à sombra das leis ou autorizando-se delas.» Isto é o essencial do pensamento de Sade: este ódio ao tirano, a maneira como mostra que a lei torna o tirano possível. O tirano fala a linguagem das leis e não possui outra linguagem. Ele precisa da «sombra das leis»; e os heróis de Sade encontram-se investidos de uma estranha anti-tirania, falando como nenhum tirano poderia falar, como nenhum tirano alguma vez falou, instituindo uma contra-linguagem.

A lei é portanto superada na direcção de um princípio mais elevado, mas este princípio já não é um Bem que a funda; é, pelo contrário, a Ideia de um Mal, Ser supremo em malevolência, que a inverte. Inversão do platonismo e inversão da própria lei. A superação da lei implica a descoberta de uma natureza primeira, que se opõe em todos os pontos às exigências e aos reinos da natureza segunda. É por isto que a Ideia do mal absoluto, tal como é incarnada nesta natureza primeira, não se confunde nem com a tirania, que pressupõe ainda as leis, nem mesmo com uma composição dos caprichos e das arbitrariedades. O seu modelo superior e impessoal está antes nas instituições anárquicas do movimento perpétuo e da revolução permanente. Sade lembra-o frequentemente: a lei não pode ser superada senão na direcção da anarquia como instituição. E que a anarquia não possa ser instituída senão entre dois regimes de leis, um antigo regime que ela abole e um novo regime que ela engendra, não impede que esse curto momento divino, quase reduzido a zero, possa testemunhar a sua diferença de natureza em relação a todas as leis. «O reino das leis é vicioso; é inferior ao da anarquia; a maior prova do que afirmo reside na obrigação com que cada governo se depara de mergulhar ele próprio na anarquia quando quer refazer a sua constituição.» Não há superação da lei senão num princípio que a inverte e que nega assim o seu poder.

Em compensação, seria insuficiente apresentar o herói masoquista como submetido às leis e contentando-se por estar. Assinala-se, por vezes, todo o escárnio que haveria na submissão masoquista, e a provocação, a potência crítica, dessa aparente mansidão. Simplesmente, o masoquista ataca a lei por outro lado. Chamamos humor já não ao movimento que ergue a lei a um princípio mais elevado, mas àquele que desce da lei para as consequências. Conhecemos todas as maneiras de contornar a lei por excesso de zelo: é através de uma escrupulosa aplicação que se pretende então mostrar o seu absurdo, esperando precisamente pela desordem que ela supostamente interdita e conjura. Toma-se a lei à palavra, à letra; não se lhe contesta o carácter último ou primeiro; faz-se como se, em virtude desse carácter, a lei reservasse para si os prazeres que nos interdita. Desde logo, é a força de observar a lei, de desposar a lei, que se pode saborear alguma coisa desses prazeres. A lei já não está ironicamente invertida, por estar erguida a um princípio, mas contornada humoristicamente, obliquamente, por aprofundamento das consequências. Ora, cada vez que se considera um fantasma ou um rito masoquista, é-se marcado pelo seguinte: a aplicação mais estrita da lei tem nele o efeito oposto àquele que seria normalmente esperado (por exemplo, as chicotadas, longe de punir ou de prevenir uma erecção, provocam-na, asseguram-na). É uma demonstração de absurdo. Encarando a lei como processo punitivo, o masoquista começa por se submeter à aplicação da punição; e nessa punição sofrida, ele encontra paradoxalmente uma razão que o autoriza, e que o manda mesmo experimentar o prazer que a lei supostamente lhe interditava. O humor masoquista é o seguinte: a mesma lei que me interdita realizar um desejo sob pena de uma punição consequente é agora uma lei que coloca a punição no início e que, como consequência, me ordena satisfazer o desejo. Theodor Reik, ainda, soube analisar bem este processo: o masoquismo não é prazer na dor, nem mesmo na punição. Na melhor das hipóteses, o masoquista encontrará na punição e na dor um prazer preliminar; mas o seu verdadeiro prazer, ele encontra-o a seguir, naquilo que a aplicação da punição torna possível. O masoquista deve sofrer a punição antes de experimentar o prazer. Seria lamentável confundir esta sucessão temporal com uma causalidade lógica: o sofrimento não é causa do prazer, mas condição prévia indispensável para a vinda do prazer. «A inversão no tempo indica uma inversão do conteúdo... O Tu não deves fazer isto foi transformado em Tu deves fazer isto... Uma demonstração do absurdo da punição é obtida mostrando que tal punição para um prazer proibido condiciona precisamente esse mesmo prazer.» (Th. Reik, O Masoquismo: «O masoquista exibe o castigo e a sua falência; é certo que mostra a sua submissão, mas também a sua revolta invencível, provando que obtém o seu prazer apesar do sofrimento... Ele não pode ser quebrado desde o exterior, pois tem uma capacidade infinita de suportar uma punição, sabendo subconscientemente que não foi vencido».) Este procedimento reflecte-se nas outras determinações do masoquismo, denegação, suspense, fantasma, que formam outras tantas figuras do humor. Eis o masoquista insolente em obsequiosidade, revoltado em submissão: em suma, o humorista, o lógico das consequências, tal como o ironista sádico era o lógico dos princípios.

Partindo da ideia de que a lei não pode ser fundada pelo Bem, mas deve repousar sobre a sua forma, o herói sádico inventa uma nova maneira de erguer a lei a um princípio superior; mas esse princípio é o elemento informal de uma natureza primeira destruidora das leis. Partindo da outra descoberta moderna, que a lei alimenta a culpabilidade daquele que lhe obedece, o herói masoquista inventa uma nova maneira de descer da lei para as suas consequências: ele “contorna” a culpabilidade, fazendo do castigo uma condição que torna possível o prazer proibido. Através disto, o masoquista não inverte menos a lei que o sádico, ainda que faça de uma outra maneira. Vimos como estas duas maneiras procedem, ideologicamente: tudo se passa como se o conteúdo edipiano, sempre furtado, sofresse uma dupla transformação – como se a complementaridade mãe‑pai fosse quebrada duas vezes, sem simetria. No caso do sadismo, é o pai que é colocado acima da lei, princípio superior que toma a mãe como vítima por excelência. No caso do masoquismo, a totalidade da lei é reportada à mãe, que expulsa o pai da esfera simbólica.

(in Gilles Deleuze, Présentation de Sacher-Masoch)

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Perdi-me a meio, mas sei que vou ter muitos pesadelos...

4/09/2007  
Anonymous Anónimo said...

Whip me good! Eheheheh!

4/09/2007  

Enviar um comentário

<< Home