quinta-feira, abril 17, 2008

Contos de Embalar: 1- A Barata

Tendo voltado tarde para casa, esmaguei uma barata que, no corredor, me escapava entre os pés (ficou lá, preta, no ladrilho). Depois, entrei no quarto.
Ela dormia, deitei-me ao seu lado, apaguei a luz, da janela aberta via um pedaço de parede e o céu. Estava calor, não conseguia dormir, velhas histórias renasciam dentro de mim, dúvidas também, uma genérica desconfiança no amanhã. Ela soltou um pequeno lamento. “O que foi?”, perguntei. Ela abriu um olho, grande, sem me ver, e murmurou: “Tenho medo de morrer”. “Medo de quê?? Porquê?”. Respondeu: “Tive um sonho...”. Aproximou-se um pouco. “Mas o que é que tu sonhaste?” “Sonhei que estava no campo, estava sentada na margem de um rio e ouvi gritos ao longe....E eu devia morrer.” “Na margem de um rio?” “Sim.”, respondeu, “ouvia as rãs..faziam crac...crac..” “Bem, dorme, já são quase duas horas.” “Duas horas?”, mas já não consegui ouvir mais nada, ela voltou a adormecer.

Apaguei a luz e ouvi alguém no pátio. Depois, surgiu o latido de um cão, agudo e longo; parecia lamentar-se. Depois, abriu-se uma persiana (ou fechou-se?). Longe, muito longe, mas talvez eu me enganasse, uma criança pôs-se a chorar. Depois, novamente o ulular do cão, longo, como antes. Eu não conseguia dormir.

Vozes de homens vieram de alguma outra janela. Eram baixas, como murmuradas entre o sono.
No andar de baixo, ouvi um bater de asas e um chilrear.
“Florio!”, ouviu-se chamar de repente, devia ser duas ou três casas mais adiante.
“Florio!”, parecia uma mulher, mulher angustiada, que tivesse perdido o filho.

Mas porque é que o canário do andar de baixo acordara? O que havia? Com um rangido lamentoso, como se fosse empurrada devagarinho por alguém que não queria fazer-se ouvir, uma porta abriu-se num qualquer lugar da casa. Tanta gente acordada a esta hora, pensei. Estranho, a esta hora.

“Tenho medo, tenho medo”, queixou-se ela, procurando-me com o braço. “Oh Maria”, perguntei. “O que é que tu tens?”. Respondeu com voz ténue: “Tenho medo de morrer.” “Tu sonhaste de novo?” Anuiu, devagarinho, com a cabeça. “De novo, com aqueles gritos?” Fez sinal que sim. “E tu ias morrer?” Sim, sim, indicava, procurando olhar-me, com as pálpebras grudadas pelo sono.

Passa-se alguma coisa, pensei: ela sonha, o cão uiva, o canário acorda, as pessoas levantam-se e falam, ela sonha com a morte, como se todos tivessem sentido alguma coisa, uma presença. Oh, o sono não vinha e as estrelas passavam. Ouvi distintamente no pátio o ruído de um fósforo aceso. Porque é que alguém se punha a fumar às 3 horas da manhã? Então, senti sede, levantei-me e saí do quarto para beber água. A triste lâmpada do corredor estava acesa, reparei vagamente na mancha preta no ladrilho e parei, assustado. Olhei: a mancha preta movia-se. Ou melhor, movia-se um pedacinho (ela sonha que vai morrer, o cão uiva, o canário acorda, pessoas levantam-se, uma mãe chama o filho, as portas rangem, alguém fuma, e há talvez um choro de criança).

Durante duas horas e meia, dentro da noite- senti um calafrio- , o imundo insecto grudado no ladrilho pelas suas próprias mucilagens viscerais, durante duas horas e meia continuara a morrer e ainda não acabara.
Continuava, maravilhosamente, a morrer, transmitindo, com a última patinha, a sua mensagem. Mas quem a podia colher às três da manhã, na escuridão do corredor de uma pensão desconhecida? Duas horas e meia, pensei, continuamente para cima e para baixo, a última porção de vida na perninha sobrevivente, para invocar justiça. O pranto de uma criança- lera um dia- basta para envenenar o mundo. No seu coração, Deus omnipotente quisera que certas coisas não acontecessem, mas não pôde impedi-lo, porque por ele mesmo foi decidido. Mas uma sombra jaz ainda sobre nós. Esmaguei o insecto com o chinelo e, esfregando no chão, esmigalhei-o num longo rasto cinza.

Então, finalmente, o cão calou-se, ela, no sono, acalmou-se e quase parecia sorrir, as vozes apagaram-se, calou-se a mãe, não se percebeu mais nenhum sintoma de sobressalto no canário, a noite recomeçava a passar sobre a casa cansada, a morte fora inchar a sua inquietude noutras partes do mundo.

(Dino Buzzati)



3 Comments:

Blogger Então oh coisinha? said...

Senti a quimica entre ele e a barata....."perninha", "patinha"..

4/17/2008  
Anonymous Anónimo said...

Mas que posta tão clarividente, Lugones!
Nem de propósito, hein?

4/17/2008  
Anonymous Anónimo said...

"A barata diz que tem sapatinho de veludo. É mentira da barata, ela tem o pé peludo..."

4/19/2008  

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