segunda-feira, dezembro 07, 2009

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O andar debaixo do meu, está vago. No andar de cima, mora o Serial Killer. Não o conheço bem, mas sei que se mudou para aqui cerca de dois anos depois de mim. Ambos temos um feitio reservado. Eu, pouco sei da vida dos restantes habitantes da rua, e suspeito que o meu vizinho, até devido à sua ocupação, incorra pelo mesmo caminho.

Tenho a vaga ideia de que trabalha para um qualquer, e obscuro, Departamento do Estado. Para mim, nem é novidade, sou filho de Funcionários Públicos.
Não nos falamos, aparte os formais, e ocasionais cumprimentos de ocasião, quando nos cruzamos nas escadas. Apesar disso, considero que temos uma boa relação.

O meu vizinho é muito calado. Nunca mete música (pelo menos, que se oiça), não ouve televisão, e não fala alto, nem ao telefone, nem com qualquer visita que receba. Suspeito que a primeira coisa que faça, quando chega a casa, seja tirar os sapatos, e calçar umas pantufas. Os seus passos são suaves, indistintos. O quarto do meu vizinho é mesmo em cima do meu, e o nosso prédio, muito antigo, e com soalho em madeira, é bastante propício à ocorrência da propagação do som.

Todavia, e mesmo quando está a cometer um homicídio, o meu vizinho nunca deixa de ser bastante cuidadoso. Nunca ouvi ninguém gritar, quando muito, distingo um suave murmúrio, ou gemido, quando estou deitado, na cama, sem conseguir dormir. Isto é espantoso, e louvável, pois suspeito que o meu vizinho cometa os seus homicídios no quarto, para onde atrai as vítimas, já bastante bebidas, depois de uma noite intensa de copos. Penso que as matará sem derramamento de sangue (talvez por asfixia?). Digo isto, porque o soalho contém algumas frinchas, e seria bem possível que alguma gota caísse para o meu quarto.
Contudo, posso estar apenas com conjecturas. Se calhar, ele até coloca, previamente, um lençol no chão, para que o sangue da vítima fique localizado, e não se propague.


Os meus amigos gostam particularmente do vizinho de cima. Há, todos os fins-de-semana, enormes jantaradas, em minha casa, para as quais não convido nunca menos de trinta pessoas. Bebemos bem, e fazemos o máximo de barulho possível. Às vezes, organizamos um jantar temático, a que damos o nome de “Jantar – Mistério”: a cada pessoa é dado um papel, com o personagem que tem de desempenhar, e indicações, a que tem de obedecer. Existe um homicídio, e algum dos presentes é o culpado. Os outros, terão de adivinhar o móbil do crime, a arma, e, claro, o autor do crime. Quando adivinhamos quem matou quem, abrimos garrafas de vinho, e bebemos, efusivamente.
Há sempre vários DJ Sets, e nunca acabamos as nossas festas antes das 6 da manhã. Escusado será dizer que o meu vizinho nunca se queixa do barulho. Desconfio que até lhe agradem estas festas (sempre está mais à vontade, nas suas próprias actividades). Se eu não soubesse que ele tem um feitio reservado, até o convidaria, uma noite, para jantar cá em casa.

Deve aturar muito barulho, que lhe será, obviamente, incómodo. Durante a semana, gosto de praticar no Trompete, e sinto-me mais inspirado a tocar por volta das duas da manhã. Ora, sabendo (como sei) que o meu vizinho sai de casa, antes das oito da manhã, para trabalhar, apenas me posso sentir grato por nunca me ter dito nada (honra lhe seja feita).

O meu vizinho é prestável. Os funcionários da Câmara Municipal (numa excelente iniciativa, que aproveito para louvar, e aplaudir) distribuem, gratuitamente, todos os meses, e em todas as casas do bairro, sacos pretos, para deitar o lixo. Graças a isso, quando vou ao supermercado, nunca tenho de comprar sacos de plásticos. Do mesmo modo, em casa, tenho sempre dezenas de sacos de reserva, caso venha a precisar. Quando ficam cheios de lixo, abro a porta da rua, que dá para as escadas, e pouso os sacos no patamar de acesso à casa. Isto porque os contentores mais próximos ficam a uns bons 500 metros e, muitas vezes, não tenho paciência para sair à rua.

E o que faz o meu vizinho? Todas as manhãs, e sem eu lhe pedir, recolhe os meus sacos, e desembaraça-se deles. Porquê? Não sei bem. Talvez para misturar, e camuflar, os bocados dos corpos das vítimas, que desmembrará, previamente, em casa.
Uma vez, quando deitei fora um recipiente cheio de lulas à Sevilhana, que deixara azedar, por descuido, pensei, por instantes que, daí a umas horas, as lulas poderiam estar a fazer companhia, no mesmo saco, à cabeça de alguma pobre vítima. Pensamentos tolos, não? Eheh.

O meu vizinho é muito asseado. Às vezes, espreito pelo ralo da porta, e vejo-o a fazer limpezas, nas escadas. Ele lava a sua casa, constantemente e, pelas frinchas do soalho, entra-me sempre um suave odor, indefinível, mas agradável, que me recorda, nem sei bem porquê, a minha casa de infância.

Agora, e mudando um pouco de assunto: não sei se vais conhecer a minha mulher. Ontem à noite, estava a fazer o jantar. Já era um pouco tarde e, enquanto preparava uma salada, lembrei-me que não tínhamos vinagre balsâmico. Distraído, disse à minha mulher para ir bater à porta do vizinho, e perguntar-lhe se ele não teria um pouco de vinagre, que pudesse disponibilizar.

Já se passaram umas horas, e ela ainda não voltou. Entretanto, comi uma lata de atum, para enganar a fome, e desisti da salada. Podem estar apenas a conversar, um com o outro (ainda não te contei, mas o meu vizinho tem uma aparência agradável, é alto, com um corpo atlético). De qualquer forma, as minhas últimas duas namoradas, a quem eu mandara, igualmente, fazer um pedido ao vizinho, nunca voltaram.O Paul Simon tem uma música em que diz: "There must be 50 ways to leave your lover". Eu só conheço uma. Mandá-las pedir vinagre balsâmico.

Seja como for, enquanto comia, às garfadas, o atum de lata, deu-me aquele spleen, que costumo sentir nos domingos à noite, especialmente durante os meses de Inverno, e pus-me a tocar no Trompete uma música do disco Chet Baker Sings, “There will never be another you”. Fiquei melhor, e ainda fiz algumas partidas de poker, na net. Agora, vou-me deitar, tenho de me levantar cedo, amanhã.

Chegas às 18 horas, não é? A cidade tem duas estações de comboio, sais na PRIMEIRA. Depois, ou apanhas um táxi, ou vais de metro, pois há uma estação mesmo ao lado. Segues pela linha VERDE, e sais na QUINTA estação. A minha rua fica mesmo junto à saída.
Não tens de agradecer, é um prazer acolher-te em minha casa durante alguns dias. Amanhã, contas-me melhor o que tens feito nestes últimos meses. Se tiveres alguma dúvida, liga-me para o telemóvel.
Ah, o número do meu Prédio é o 120.

Quando chegares, toca à porta. Não te esqueças, é o segundo andar. O andar debaixo do meu está vago. No andar de cima, mora o Serial Killer.

8 Comments:

Anonymous stay sick said...

Bates Motel, no 3º andar;
Cabaret Voltaire, no 2º...Hmmmm, temos que arranjar qualquer coisinha para o 1º...
:p

12/08/2009  
Anonymous cat biscates said...

No outro dia fui visitar um amigo que mora no 2º andar do nº 120. Tínhamos combinado fazer uma jam às 5 da manhã, ele no trompete, eu na guitarra. O meu amigo é uma granda nabiça no trompete mas isso agora não interessa nada.
Quando cheguei ao nº120, toquei, por engano, para o 3º andar! O serial killer veio à janela e olhou para mim com a indiferença de quem mora no último andar. Depois desapareceu e eu fiquei especada à porta. Parece que o serial killer não abre a porta a estranhos. O que não é de estranhar, tendo em conta as perigosidades que povoam aquele bairro. Ainda há bem pouco tempo, andava um doidivanas qualquer a ameaçar a vizinhança com poderosas facas de cortar o pão. Mas quando me disseram que o tal maluco vivia no 2º andar do nº120, percebi logo que se tratava de um boato.

12/12/2009  
Anonymous stay sick said...

Ah ah ah! :D Cat Biscates, mas já se fala do estranho caso do Dr.Galo/Mr.Pereira, do nº120!...
Ao que parece, o sujeito em causa sofre de dupla personalidade encarnando, alternadamente, a pele de um dotado geek que é um gig, e que vive no 2ºandar, e/ou de um psicopata tresloucado, que vive no 3º.
O prédio todo está por conta dele.
Ele não pode é subir as escadas...

12/14/2009  
Anonymous cat biscates said...

Cara Stay Sick, proponho um levantamento mais profundo das patologias do nº 120 ;)
Quero saber ao certo que raio de sítio é aquele que ando a frequentar!

12/14/2009  
Blogger Lugones said...

Aquela rua é uma loucura! Porém, uma fonte não-oficial contou-me que o doidivanas das facas de cozinha mora algures entre os nºs 102 e 106. Dizem que anda rodeado por uma trupe terrível, onde se inclui um tipo que o incita a dar com martelos na cabeça do pessoal, e uma delinquente que leva os Astrólogos à loucura, ao dar-lhes indicações erradas acerca do seu ascendente.

12/15/2009  
Anonymous Tantra :p said...

Do que me escapei, senhores!!

Cataninho, que a net não me tem deixado vir aqui pôr o meu humor negro em dia!

;)

Beijos e abraços

12/24/2009  
Blogger Madame Bovary said...

Se não é indiscrição, onde é que o senhor mora? Estou à procura de casa e tenho uma preferência por andares baixos e casas asseadas. Já que o andar inferior do seu prédio está vago e que o seu vizinho é limpinho, estou bastante interessada em ir visitá-lo… E olhe que eu tenho sempre em casa vinagre balsâmico! No entanto, as suas indicações no final do seu texto (onde muda um pouco de assunto) não me são muito úteis, pois, desconhecendo a proveniência do seu convidado, não sei determinar com exactidão qual é a primeira estação de comboio de que fala.

1/17/2010  
Blogger Sara França said...

gostaria de saber se o vinagre balsâmico é de Modena.

2/21/2010  

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