quinta-feira, abril 19, 2007

Uma brecha

O Ângulo abre uma brecha para falar da “actualidade”. Não que ao Ângulo a “actualidade” (esta expressão mereceria um post de tal forma longo que deixaria de fazer sentido inseri-lo aqui) não interesse; simplesmente não é esse o seu lugar de partilhas, estilhaços ou reflexões breves. Mas o Ângulo abre hoje, através de uma pequena brecha, uma excepção.

Virginia Tech Massacre já tem entrada na Wikipedia. O acontecimento (porque tem esse carácter, o de algo imprevisível) não é aparentemente singular, visto ter sido precedido de outros semelhantes, a não ser quiçá devido às proporções atingidas. A questão imediatamente política que levanta não pode ser, uma vez mais, senão a da famosa “Segunda Emenda” à Constituição Americana, que promove declaradamente o direito (senão mesmo a obrigação) da posse de armas por parte da população civil. O debate já deu azo a comentários mais ou menos sensatos na nosso cantinho blogosférico – trata-se, sem dúvida, de uma questão valiosa, fracturante até certo ponto na sociedade americana, mas que não esgota de todo o significado deste tipo de acontecimentos. Ao Ângulo interessou-lhe outra: a da ausência de significado e, por conseguinte, a da total impotência hermenêutica a que este acontecimento nos abandona. Não há aqui qualquer razão aparente: nada de reivindicações, impulsos revolucionários, cruzadas religiosas ou sequer mensagens subliminares. É esta aparente banalização do mal que nos deixa atónitos e sem resposta possível. Mas a banalização do mal (tal como a entende Hannah Arendt) é o resultado extremo do aperfeiçoamento técnico (τέχνη) de uma utopia (os campos de extermínio nazis seriam o exemplo mais famoso). Ora, é este teleologismo invertido que se encontra, à partida, ausente nos “school massacres”: só através de uma retórica muito enviesada é que se poderia concluir que estes configurariam a banalização do mal dentro de um sistema de ensino formatado que visa a produção massificada de “conhecimentos”, e que estaria intimamente ligado a uma tecno-sociedade altamente especializada. Por isso é que o grande filme sobre o massacre de Columbine não é “Bowling for Columbine” de Michael Moore (e não unicamente devido dos excessos demagógicos do realizador), mas sim “Elephant” de Gus Van Sant: o retrato em tempo real de um fragmento de harmonia aparente, quase onírica, que é interrompida pela brutalidade de um instante, também ele “onírico” na sua falta de densidade significante. A ordem quotidiana, hipnotizante de tão harmoniosa até mesmo nos seus supostos contra-tempos, reflecte, ela mesma, a sua própria fragilidade radical – quando a força titânica assola à superfície, é nos estilhaços que deixa que faz a sua aparição. E isto não só porque todo o acesso possível aos acontecimentos se dá através da imagem: o que se passa é que o próprio acontecimento mimetiza a sua representação. Pode ler-se este fechamento como o fim de um ciclo ou como a assunção transparente de uma verdade ontológica. Seja como for, não devemos ceder nunca à lógica messiânica da revelação, pois o fechamento não significa senão isto: não há significado transcendental. Há sim a luta incessante contra aquilo mesmo que nos configura e que não pode senão exceder-nos no seu carácter monstruoso – o Capitão Abab frente a Moby Dick e o hipnotismo das belas formas apolíneas na sua fragilidade radical. É este o encantamento que Van Sant soube captar.

6 Comments:

Blogger José Gomes André said...

Grande, grande texto! E totalmente de acordo: Elephant é "o" filme sobre Columbine, sobre Virginia Tech, e sobre os que hão-de vir. O grande filme sobre o indizível - que é, afinal de contas, justamente do que se trata: o silêncio de Deus e o espanto dos homens perante um monstro que (des)conhece e a sua própria fragilidade.

Forte abraço!

4/19/2007  
Anonymous Anónimo said...

Teatralização do horror?

4/19/2007  
Anonymous Anónimo said...

Uma sociedade paranoica gera monstrinhos...
matem-se!
esfolem-se!
mas não se aleijem!

4/19/2007  
Blogger Fabiana said...

Não vi o filme. Ainda mais uma razão para não perder...

4/23/2007  
Blogger Mónica said...

deu-me a brecha: não sei o que é "hermenêutica" e muito menos com impotência

5/12/2007  
Blogger E. A. said...

Caríssimo Ângulo,

Hoje em digressão virtual cheguei ao teu blog e estacionei no teu texto – uma brecha para respirar, porque o labirinto bloguístico é cansativo...

O “encantamento” em Elephant é verdadeiro. Toma-nos do princípio ao fim por uma força e não um motivo, que não existe. A razão é devastada por uma força grandiosa.
Mas se a razão for sã, depois da desgraça procurará justificação. O filme do Moore é um significado de ordem imanente – como modernos que somos. Não deixa de ser interessante por isso, e por tendencioso que seja.

De facto, não são os jogos de computador violentos, nem a facilidade na aquisição de armas que fez Columbine ou Virginia, mas a sociedade cria leis e regras para travar as calamidades e é possível elas (leis) serem revistas e melhoradas. Depois do terror e da piedade é o que há para fazer.

Até breve.

5/15/2007  

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