Breve confissão aos meus caros colegas, que não me deixaram ficar sem tempo
Creio que todas as pessoas têm uma representação mental do tempo, isto é, que quando pensam na passagem dos dias, dos meses e dos anos lhe associam uma determinada imagem. A minha é decalcada de um livro infantil que continha um desenho de duas páginas onde o ano era representado como uma espécie de tabuleiro circular de jogo de dados, parecido com o do Monopólio, em que os meses eram casas ilustradas (a de Agosto tinha ilustração de uma família a ir para a praia, a de Dezembro uma árvore de Natal, etc.) que se percorriam no sentido oposto ao dos ponteiros de um relógio. A passagem de ano encontrava-se no extremo direito, os meses de Inverno em cima, os da primavera do lado esquerdo e os do verão em baixo. Esta imagem nunca mais me abandonou e ainda hoje não sou capaz de representar a passagem do tempo de outra forma. Quando penso num compromisso que tenho no mês de Abril, por exemplo, situo-o mentalmente no círculo descendente do lado esquerdo, enquanto me imagino a caminhar numa outra casa. Esta representação tem ainda uma outra peculiaridade: os meses de Outubro, Novembro e Dezembro constituem uma ascensão, ao passo que os meses de Abril, Maio e Junho, um descenso, o que coincide com uma outra concepção minha, que é a de conceber o início de cada ano no final do verão. Esta ideia é sem dúvida uma herança da organização dos anos escolares, mas corresponde em geral ao funcionamento da máquina social (as instituições, as empresas, o campeonato de futebol), que abranda no verão para retomar o fôlego necessário para um nova temporada. O final do verão é para mim a passagem de ano, essa época de avaliação e de projecção, mas também de celebração da abertura de um tempo fora do tempo quotidiano. A noção de um tempo circular implica essa realização de ritos que reactualizem a própria passagem do tempo, ou seja, de acções periodicamente repetidas com o intuito de fazer com que a realidade mantenha o seu modo de funcionamento regular. Um exemplo curioso é o da Mesopotâmia (mais concretamente na sua versão Assírio Babilónica): no primeiro dia do ano, as câmaras dos templos eram cuidadosamente preparadas pelos sacerdotes para a vinda das divindades, então, depois de um banquete sagrado e de uma procissão acompanhada de cânticos e hinos, o grande sacerdote (o rei da cidade) e a grande sacerdotisa praticavam um acto sexual em representação do deus e da sua esposa, no cimo do zigurate (a torre do templo), sendo que esta cópula divina representava o acto originário da geração da vida, que perpetua as espécies, fecunda a terra e origina as estações. Para explicar o que mantém as entidades cósmicas e os fenómenos culturais contínua e harmoniosamente em acção, sem conflito, os nossos antepassados mesopotâmicos criaram a entidade metafísica me, que é à partida um substantivo, mas que funciona igualmente como o verbo que designa, nas línguas latinas, ser, existir e estar. Algumas traduções possíveis serão: “potência sagrada”, “força divina”, “ordenação divina de curso eterno e imutável” “modelo normativo”, “decreto divino”, “força dinâmica”, “potências impessoais e eternas, que se materializam nas instituições, nas coisas, nos seres, nos sentimentos”. Um dos antigos poetas sumérios redigiu uma lista dos me relacionados com a cultura, dividindo a civilização, segundo o conhecimento que dela tinha, numa centena de elementos. Os me eram pertença do deus Enki, a divindade das águas subterrâneas, situadas sob a crosta terrestre e donde brotou a vida, mas também da agricultura e da sabedoria, a quem foram confiados os pormenores práticos e a execução dos planos universais. Existe um relato em que a deusa Inana (ou Istar para os Assírios, paradoxalmente a deusa do amor e da guerra, cujo animal heráldico era o leão na sua força bruta) se tenta apoderar dos me, de modo a fazer da sua cidade Uruk o centro da civilização; para tal, embebeda Enki e este vai-lhe oferecendo os me; Inanna leva para a sua barca do céu a realeza, as suas insígnias, o sacerdócio, a sexualidade, a arte, a água, a paz, todas as profissões existentes, o julgamento, as árvores, as plantas, o gado, a verdade e a mentira, etc.: tudo isso é me. Os acádicos traduzirão me por parsu, que quer dizer “ritual”. No fundo, os rituais tinham como função reactualizarem anualmente os elementos que constituem e sustentam o mundo.
1 Comments:
Caro Boécio, alegra-me tê-lo de volta, com um belo texto!
E criou uma bela desculpa para explicar a sua ausência. O Boécio escreve mais nos meses de ascensão ou de descenso?
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