quarta-feira, março 10, 2010

Não te prendas a uma onda qualquer

Nunca tive jeito para a música, pelo menos, no que toca à parte da execução.

Quer dizer, de certa forma, até tenho, se aplicarmos outros sentidos à palavra “execução”. Expliquemos um pouco melhor: a minha relação com um instrumento musical pode ser exemplificada nesta frase: “executo muito bem este piano. Ele faleceu depois de muitas horas de sofrimento”.

E não estou a falar em termos abstractos. Eu executei, de facto, o piano da minha avó, quando tinha 12 anos, no momento em que a última tecla que ainda emitia algum som se calou para sempre, depois de meses de maus tratos permanentes.

Igual sorte tiveram as guitarras, flautas, ou instrumentos de percussão em que tentei tocar, que de tanto sofrerem às minhas mãos, acabaram por se quebrar, e ir parar à tumba.
Por isso, não será de estranhar que tenha desenvolvido, desde o início, uma relação um pouco tumultuosa com a zurna, instrumento que me foi apresentado durante a minha última visita a um país islâmico.


Dizem os entendidos que a “zurna deve ser tocada utilizando uma respiração circular”.
Confesso que não compreendi o significado desta expressão. Seja como for, e depois de várias dezenas de tentativas, não consegui extrair da zurna o mais remoto resquício de algo a que se pudesse assemelhar a um vestígio de som.
Pensei, obviamente, para com os meus botões: mais um instrumento falecido prematuramente às minhas mãos.
Fiquei desapontado, e atirei a zurna para cima de uma estante, na sala, onde ficou a repousar durante um bom par de meses.


A história ficar-se-ia por aqui, caso não tivesse encontrado, num alfarrabista, um exemplar, Já muito velhinho, das “50 Pautas das Melhores Canções Revolucionárias”, saída nas (já extintas) Edições Omba – Hong.

Comprei, entusiasmado, o livro, mas ao chegar a casa, lembrei-me que não possuía nenhum instrumento musical, desde que tentara tocar, com ferrinhos, o hino da Eurovisão (nessa ocasião, os ferrinhos partiram-se ao meio, à entrada da terceira nota da canção).

De repente, lembrei-me da zurna. Retirei-a de cima da estante, limpei-a (a exposição prolongada à atmosfera da minha sala oferece, a todos os objectos que por lá permanecem, uma boa quantidade de pó), e comecei a tocar o “Hasta Siempre Comandante”, do Carlos Puebla.

Ao princípio, nada de novo. Da zurna, continuavam a sair sons inaudíveis.
Mas insisti, e resolvi tocar a música até ao fim.
A partir da segunda quadra (Aquí se queda la clara,la entrañable transparencia,de tu querida presencia /Comandante Che Guevara), comecei a ouvir uns ruídos, quase indistintos, de início, mas que começavam a ganhar vigor, e intensidade, à medida que avançava pela canção.
Eram ruídos secos, e fortes, que se assemelhavam a instrumentos de percussão. Pensei: “não estou a tocar bem, a zurna tem um som agudo, quase esganiçado. E este barulho que agora oiço, não corresponde às notas do “Hasta Siempre Comandante”.


De repente, olhei em volta, e deparei-me com um cenário insólito. Descobri que o ruído não provinha da zurna. Também não provinha de outros instrumentos musicais. Essas batidas secas, intensas, fortes, e vigorosas tinham origem nas cadeiras da sala, que se agitavam, freneticamente. E não se agitavam devido a um terramoto, ou a alguma catástrofe natural: as cadeiras da minha sala, dançavam, simplesmente, ao som do “Hasta Siempre Comandante”.
Quando parei, as cadeiras imobilizaram-se.


Experimentei tocar outras canções: “A las barricadas”; “Bandiera Rossa”; “No Pasarán”; ou “The Red Flag”. Todas foram acompanhadas, entusiasticamente, pelas cadeiras.
Depois, experimentei tocar outras músicas, com um conteúdo lírico menos politizado, como o “Summertime”, o “Nikita”, ou alguns êxitos da Madonna, Cat Stevens, ou Tina Turner. Mas as cadeiras mantiveram-se imóveis (se bem que eu tenha notado um tímido bater de pé da minha cadeira de baloiço, ao som do hino gay “Freedom”, do George Michael).


Cheguei à conclusão de que as cadeiras dançavam apenas ao som de canções de teor revolucionário.

Cheguei, igualmente, à conclusão de que as cadeiras executavam diversos tipos de dança, conforme as canções – o bolero, o samba, ou o tango eram escolhidos, geralmente, para temas sul-americanos.
A polka era mais utilizada para canções revolucionárias russas, por exemplo.
Mas esta divisão entre tipo de dança, e origem geográfica da canção não era absolutamente estanque. Cheguei a ouvir, por exemplo, o “Grândola Vila Morena”, acompanhada por um animado Fox Trot, ou a “Marselhesa” acompanhada pela Dança Mexicana do Chapéu, ou pelo Fandango.


Fiquei muito animado, e cedo percebi o enorme potencial comercial deste fenómeno.
Ao princípio, convidava os meus amigos, para assistirem aos eventos. Depois, comecei a cobrar-lhes entrada. Passado pouco tempo, os meus amigos falavam aos seus amigos das fabulosas danças das cadeiras a que haviam assistido.


O efeito do “palavra passa palavra”, aliado à publicidade gerada nas redes sociais do Facebook, ou do Myspace, que anunciavam os espectáculos, levou a que, passado poucas semanas, a “Dança das Cadeiras” se tivesse tornado num enorme fenómeno popular, e de massas.

Com o sucesso, surgiram centenas de ofertas, a requisitar os serviços das incríveis cadeiras. Eu, como manager, tomei a decisão mais sensata: aceitei todos os pedidos e, em breve, a minha agenda ficou preenchida com todo o tipo de trabalhos. Vou recordar alguns dos mais marcantes:
1- Os anúncios da Moviflor, cujo plot obedecia sempre à seguinte ideia: “Compre aqui todos os seus artigos para a casa. As suas mobílias dançarão de alegria”.
2- O filme “A verdadeira história da queda de Salazar”, onde se contava que a sua queda da cadeira não se tratara de um mero acidente, mas sim de uma conspiração levada a cabo pelo KGB, e pelos “Panteras Negras”, que utilizavam cadeiras (que funcionavam como seus agentes duplos) para perpetrarem uma série de atentados.
3- O programa de debates “A cadeira do poder” – todas as semanas eram colocados, frente a frente, dois políticos, que tinham de responder a uma série de questões. O político que perdesse o debate era atirado da sua cadeira. O político vencedor manter-se-ia na cadeira, até à semana seguinte, altura em que lhe impunham outro adversário, para um novo frente-a-frente.
4- O programa de Entretenimento “Dança Comigo”, adaptado a cadeiras (várias celebridades tinham de dançar com cadeiras).


E tantos outros…
Ganhei muito dinheiro, nos meses seguintes.
Todavia, talvez devido à sobrecarga de trabalho, muitas cadeiras ressentiram-se do esforço, e começaram a partir-se. Tentei comprar nova mobília, mas cedo compreendi que apenas as cadeiras originais da minha casa conseguiam dançar. Por isso, apenas me restou tentar consertá-las, o melhor possível.
Mas as cadeiras começaram a perder elasticidade, e não dançavam tão bem quanto antes. Para além disso, esgotaram o seu repertório de danças. As minhas tentativas de lhes ensinar “Break Dance”, “Hip Hop”, “Sapateado” ou “Table Dance” resultaram em rotundos fracassos.


O interesse do público também se ressentiu desse facto. Os críticos queixaram-se da “repetição e falta de frescura” dos espectáculos, e as salas começaram a esvaziar-se. Em poucos meses, passámos de um Pavilhão Atlântico esgotado, e de um estatuto de Cabeças de Cartaz no Rock In Rio, para figurantes em peças do Filipe La Feria, e pequenas salas semi-vazias em localidades de província, como Lamego.

Até que um dia, cheguei a casa, para preparar um ensaio geral, e deparei-me com um papel, escrito a lápis, e colado à zurna. O papel dizia o seguinte:

Que força é essa que trazes nos braços,
Que só te serve para obedecer
Que só te manda obedecer
Que força é essa, amigo
Que te põe de bem com outros e de mal contigo
Que força é essa, amigo?

Não compreendi o significado do texto. Rasguei o papel, e comecei a tocar na zurma. Mas as cadeiras continuaram imóveis, como se de cadeiras se tratassem.

Insisti. Toquei o antigo repertório, adicionei novas músicas revolucionárias, como alguns temas do Valete, ou do Sam the Kid, mas nada se passou. As cadeiras mantiveram-se estáticas.
No dia seguinte, tentei fazer um novo ensaio, mas os resultados foram os mesmos (nulos) -Toquei todo o repertório que conhecia, de músicas revolucionárias. Depois, tentei tocar alguns êxitos de música pop, canções dos Beatles, Coldpay, U2, ou alguns êxitos da Madonna, Cat Stevens, ou Tina Turner. Mas as cadeiras mantiveram-se imóveis (se bem que eu tenha notado um tímido bater de pé da minha cadeira de baloiço, ao som do hino gay “Freedom”, do George Michael).


Tive de cancelar os espectáculos e anunciar o fim das magníficas cadeiras dançantes. À imprensa, não contei o sucedido (talvez na esperança de uma recuperação das Artistas), falando, apenas, em “divergências criativas”, que teriam culminado numa “separação amigável”.

E acabou-se aqui a história. Aprendi a fazer uso da respiração circular, e passei a tocar zurna, no metro, ou na rua (trabalho, geralmente, na zona do Chiado, ao pé do Café “A Brasileira”). De vez em quando, para matar saudades, toco uma ou outra canção revolucionária.

Quanto às minhas anteriores parceiras artísticas, não voltaram a dar sinais de vida. Mas não as deitei fora. Continuam espalhadas, pela sala, semi-partidas, e com um pouco de pó, a acumular-se-lhes em cima. Como não tenho coragem para me sentar em cima delas (talvez por pudor?), sento-me no chão frio da sala, enquanto vejo na RTP memória as reposições dos antigos espectáculos das cadeiras.

Depois, vou-me deitar. A meio da noite, oiço, de vez em quando, ruídos secos, e fortes, que se assemelham a instrumentos de percussão. Levanto-me, sobressaltado, e com uma súbita esperança na ressurreição das minhas velhas companheiras.

Mas vou à sala, e nada vejo. Reparo que o barulho tem origem no andar de cima, e lembro-me, de repente, que deve ser o meu vizinho (não é o serial killer, é o outro), que costuma partir a cama do seu quarto, enquanto pratica actos sexuais de relevo.

Deito-me, de novo. Revejo, mentalmente, as músicas que terei de tocar, no dia seguinte, no metro, logo de manhã, à hora de ponta. E fico preocupado. Não é um emprego que me agrade, verdadeiramente.
Afinal, nunca tive jeito para a música, pelo menos, no que toca à parte da execução.


Adormeço, com uma canção a ecoar-me, aos ouvidos:
“Aprende a nadar, companheiro….”


5 Comments:

Anonymous stay sick said...

As Cadeiras Revolucionárias estão com uma Grande Depressão, o que as priva da sua essência de cadeirade revolucionária.
Pensamentos sombrios povoam os seus tampos, deixando-as macambuzias e sem pingo de energia.
Não terás desiludido as suas expectativas?
Usado e abusado da sua confiança?
Onde já se viu usar cadeiras revolucionárias para benefícios pessoais?
Sá após uma minuciosa autoscopia poderás encontrar a solução para este descadeirado problema e cantar a cantiga sem palavras, a qual nunca pára jamais, mas que tocará profundo no carunchoso coração das tuas companheiras!
:D

3/11/2010  
Blogger Alberto Colima said...

Gostei;)

3/11/2010  
Blogger Fräulein Else said...

Que giro, eu tb bato o pé com a "Freedom", sobretudo se vejo a Linda Evangelista.
Tb gostei, Lugones, deste novo tom revolucionário, cuja coda pode ser entendida como um chamamento.
Assim seja. :)

3/11/2010  
Blogger Lugones said...

Obrigado pelos comentários, caros amigos?
Que digo? Amigos, nada. Camaradas!

Que texto bonito e poético, Stay Sick! Sim senhora :)

Agora, vou bater o pé, e ver o teledisco do Freedom. Apetece-me rever a Linda Evangelista!

3/12/2010  
Anonymous Ninguém said...

Estava a ver que não colocavas aqui o S.G. O nosso, entenda-se! ;)

E agora vou-me deitar que estou descadeiradinha de todo!
Traz as amigas dançantes, as de madeira, claro, para a festa do bicho carpinteiro, neste sábado! :D

3/16/2010  

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