sexta-feira, abril 03, 2009

O Ângulo, Secção "A minha cidade". Volume 1- A cidade de Pandrabombagrad

Vou-lhe falar agora da minha cidade, Pandrabombagrad.
Em Pandrabombagrad, os seres humanos não se relacionam uns com os outros. Ou melhor, os seres humanos definem-se pela roupa que usam cada dia, e as relações desenvolvem-se com base nas roupas. O meu melhor amigo, por exemplo, é um fato castanho, com uma camisa às riscas azuis, e uma gravata com desenhos de tartarugas. Chamo-lhe o “Zé”. Contudo, só por acaso é que as roupas que formam a “personalidade” do meu amigo “Zé” são sempre usadas pela mesma pessoa. Já me aconteceu, por exemplo, encontrar o “Zé” na rua, incorporado por um senhor de bigodes grisalhos, ou incorporado por um indivíduo louro gordo, de trejeitos efeminados.
A roupa que corresponde ao “Zé” determina, todos os dias, a personalidade do “indivíduo” que a veste (coloco a palavra indivíduo entre parêntesis porque na nossa cidade discute-se se o ser humano destituído de roupa tem uma personalidade definida).
Quando abordo os diferentes “Zés”, estes mostram, por vezes, surpresa, durante alguns segundos. Mas depois desenvolvemos a conversa como se nada de anormal se passasse.
A minha primeira mulher chamava-se “Madalena”, nome correspondente a um vestido de noiva branco Cai-Cai, com um corpino com suave drapeado, faixa em veludo em torno da cintura, rematada com um pregador de brilhantes e uma saia em tule com pequenos panos cortados em bico, que adornava um belo corpo louro, feminino e voluptuoso, que conheci uma vez à porta de uma igreja. Na manhã seguinte à noite de núpcias, cada um de nós se vestiu com outras roupas e foi à sua vida.
De vez em quando, encontro em restaurantes, ou a festejar o Copo de Água, ou à porta de outras igrejas, ou dentro de um carro com as inscrições “casados de fresco”, o vestido de noiva branco Cai-Cai, com um corpino com suave drapeado, uma faixa em veludo em torno da cintura, rematada com pregador de brilhantes e uma saia em tule com pequenos panos cortados em bico, e que corresponde à minha noiva “Madalena”. Nessas alturas, e quando me apetece, mostro aos presentes a minha foto de casamento, pego na “Madalena” e satisfazemo-nos no próprio local, ou numa pensão próxima. Depois, cada um vai para seu lado.
Costumo andar com uma mala de roupa, que levo para todo o lado. Nunca sei onde acordarei. Hoje de manhã, por exemplo, resolvi vestir umas calças pretas de ganga, uns ténis Allstar, e uma tshirt do “Super-Homem”, e fui abordado, só de manhã, por duas roupas femininas diferentes (Umas calças jeans azuis claras com cintura baixa, com uma camiseta em meia-malha cinza, a quem dei o nome de “Isabel”; umas calças jeans, de cor cinza, com brilho, e uma blusa com manga longa preta, a quem dei o nome de “Maria Rita”, cada uma reclamando ser eu o seu namorado).
Mas nem tudo foi positivo, pois um homem com cabelo oxigenado, e umas leggings apertadas aproximou-se, com um ar lascivo, e tive de fugir durante um bom bocado.
À tarde, tive de ir trabalhar, pois um senhor engravatado, e com ar de poucos amigos, chamado “Senhor Silva”, chamou-me de um restaurante, perguntando quando é que eu ia levantar as mesas.
Como vê, estabelecemos relações humanas diferentes, todos os dias. Não sei, todavia, se o termo “relações humanas” estará correcto, uma vez que as mesmas estão em constante mutação.
Também se pode levantar a questão do livre arbítrio. Mas, como disse atrás, se discutimos se um corpo despido de roupa é destituído de personalidade, só podemos falar de livre arbítrio no momento em que temos alguma roupa vestida (daí o facto de haver muitas pessoas, na nossa cidade, que fazem sexo de meias vestidas, para não perderem a personalidade).
Mas chega de conversas. Hoje vou dormir a casa da “Isabel”. Amanhã, talvez vista o meu casaco de cabedal preto, as minhas calças azuis, e a minha camisa vermelha. Talvez encontre a “Ana Li”, um vestido azul, às bolinhas brancas que, quando esteve incorporado numa morena escultural, me chamou de “meu tigrão”, e que me levou no seu descapotável vermelho, rumo aos limites orientais de Pandrabombagrad, a cidade onde os seres humanos se definem pela roupa que usam cada dia e a personalidade está, literalmente, à flor da pele.

1 Comments:

Anonymous stay sick said...

Em Pandrabombagrad, (hummm, donde é que eu conheço este prefixo?), o hábito (é que) faz o monge?

4/03/2009  

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