quinta-feira, março 18, 2010

Agenda Cultura - Crítica de Música

O público começa a chegar ao recinto por volta da hora do almoço, muito antes do início do espectáculo. Segundo nos explica uma jovem adolescente, vestida a preceito, “todos queremos estar lá à frente, para estarmos mais perto deles”. Às 20 horas, em ponto, abrem-se as portas do Pavilhão, e a multidão entra, em polvorosa, e impaciente.

Às 21.15, começa o Concerto. O Pavilhão “rebenta pelas costuras”, como se costuma dizer nestas ocasiões, e o público parece estar a gostar, pois entoa a primeira canção, em uníssono.

Mas o espectáculo está apenas no início. Em palco, vemos uma vulgar banda “da moda”, com os instrumentos do costume – guitarras, um baixo, teclas, bateria, voz. Está tudo pintado com tonalidades escuras. Há um pano, por detrás do palco, com o ridículo logótipo do grupo – um dragão alado, com uma guitarra. O vocalista puxa pelo público, o guitarrista parece encadear-se com toda a parafernália visual, instalada em volta do palco – vários holofotes, ecrãs gigantes, fumos, luzes multicolores, e a mascote oficial da banda – um porco, insuflado.

Vou buscar uma cerveja, para tentar combater o tédio. Volto a meio da terceira “canção”, a tempo de ver o que interessa, ou seja, o verdadeiro início do concerto.

Ninguém parece estar à espera do que se irá passar. As adolescentes continuam a fotografar, e filmar o palco, com os seus telemóveis, prontas para meter tudo nas redes sociais, mal cheguem a casa.

Os seguranças estão tranquilos, mãos nos bolsos. Afinal, trata-se de um público maioritariamente jovem, supostamente pacato, e que não se quer meter, propriamente, em confusões.

Até que eles chegam, pelas zonas laterais do palco. São cerca de 12 elementos, e estão com a cara tapada. O público não os aplaude, a sua entrada parece ter apanhado todos de surpresa.

O Porta-voz do Colectivo chega ao proscénio, dá um murro ao vocalista da banda, afastando-o do microfone, e anuncia:
- Boa noite, nós somos o Colectivo “A Arma é uma Canção”. Sejam bem-vindos, e espero que gostem!

Depois, o Colectivo, sem mais delongas, começa a disparar sobre todos os presentes, indiscriminadamente.
Trata-se do tema de abertura, “Uma morte singular é uma tragédia, um milhão é uma estatística”, e é recebida com um coro de gritos.

A introdução do tema (execução sumária de todos os elementos da banda, em palco), é feita na perfeição. O vocalista é morto com um único tiro, na cabeça, entre os olhos.
O baterista é morto com um tiro de bazooka. A violência do estrondo faz com que o seu corpo se desloque alguns metros, e fique colado ao fundo do palco, junto ao logótipo da banda, que começa a ficar inundado de sangue.
O baixista é degolado, com uma catana, e o seu corpo, sem cabeça, parece manter-se de pé, durante alguns segundos (ou terá sido ilusão de óptica?)
O resto do grupo é morto, igualmente, com requintes de mestre.

A verdade emocional, por contraponto à verdade conceptual, é o motor criativo subjacente à produção da “Arma é uma Cantiga”. Num primeiro contacto visual com as suas performances, sobressai, desde logo, uma energia luminosa fornecida pelos desequilíbrios cromáticos, e pela tensão entre as diversas cores.

Isto nota-se particularmente bem a partir do momento em que o palco se encontra totalmente repleto das mais diversas tonalidades de cores avermelhadas, provenientes dos corpos dos elementos da banda que estava a tocar, aquando da invasão de palco, e dos seguranças, que tentaram intervir, logo quando tomaram conta do que se passava.

O público parece dividir-se. Uns, ficam estáticos, extasiados, transidos de medo. Outros, reagem de outra forma, correm para o fundo do Pavilhão, pois foram acordados da sua dormência, da sua pequena segurança de um entretenimento fútil, e tentam fugir.

Compreende-se. Estão habituados a uma violência televisionada, servida à hora do jantar, entre dentadas da sua Happy Meal empacotada, e o espectáculo que lhes é oferecido (uma violência quase erótica, com altas temperaturas, e onde se sente a proximidade vulcânica de uma violência latenta) repugna-os, estarrece-os.

Correm para o fundo do Pavilhão, mas – Oh, sem que isso de nada lhes sirva. Isto porque são, de imediato, fuzilados, e os seus corpos são, depois, expostos em ganchos de talho (trata-se de um paralelismo com o processo de admiração, morte e embalagem dos animais, mas usando adolescentes em substituição dos animais, criando um paralelismo entre a maneira desapaixonado como se abatem animais para consumo e a imagem dos jovens como objecto descartável de desejo, tal como é nos apresentada nos dias que correm em todos os medias).
Mas o mundo é um lugar violento, e a arte também, e a vida, o sangue, os corpos, a morte…

Quando chega o hit do grupo “A liberdade política está na ponta da espingarda”, já foram dizimadas mais de metade das pessoas que estavam presentes, inicialmente, no recinto.
Talvez isso explique a estranha calma com que foi recebido o tema. Mas este foi tocado na perfeição, com o seu coro de serras eléctricas, a sobressair, por entre um acompanhamento com zagalotes.

Apesar de todo o aparato visual, e sonoro, que acompanha todos os espectáculos de “A arma é uma cantiga”, poderemos dizer que se tratou de uma performance pragmática e eficaz. Os artistas limitaram-se a dizer o nome dos temas, e quase nada acrescentaram, para além dos normais agradecimentos.

Talvez se tenha perdido algum envolvimento emocional entre palco e plateia, mas ganhou-se uma solenidade salutar, só interrompida quando algum elemento da assistência se exaltava, em demasia, na hora da sua morte, e começava a berrar, pedindo clemência.
Os próprios arranjos das canções contribuíram para essa sensação de sobriedade: de fora ficaram os arranjos mais grandiosos, feitos por instrumentos, como o canhão, a G3, ou os Lança-chamas.

O espectáculo ganhou com isso. As canções ficaram mais vulneráveis, e próximas de todos nós.
Tudo terminou por volta das 23 horas, depois de terem sido tocados os temas “O perigo mortal é um antídoto eficaz para as ideias fixas”; “Não são os neutrais ou os indiferentes que fazem a História”; “Criar dois, três, muitos Vietnames – esta é a palavra de ordem” e, para terminar, em ambiente de grande emoção, “Ninguém gosta da minha actuação, excepto o público”.

Depois, os Artistas levaram consigo algumas raparigas da assistência, escolhidas a dedo, e recolheram aos camarins, para verem o resumo dos jogos da Champions League.

O próximo concerto/invasão de Palco ainda não está agendado. Mas será, certamente, habitado por imagens em conflito, energias alternativas e figurações de um universo humano disforme, em busca de representação.

Nota final: 4,5 estrelas (faltaram as menções à cidade, ou à beleza e simpatia do povo local. Deu a ideia de que, a certa altura, os Artistas não sabiam onde estavam a actuar. Podiam ter dito, por exemplo “hoje comi uma magnífica açorda, ao almoço”. Ficava bem, e ficaríamos a saber que se interessavam pela nossa cultura, e tradição).







3 Comments:

Anonymous stay sick said...

ah ah ah ah ah :D
és tão parvinho.
Mas cantas como um verdadeiro zagalote, te garanto. ;D
Gostei, particularmente, da nota final.
(Como sempre, consegues ironizar com tudo e mais alguma coisa...Eu cá saio a cantar: "é napalm, é napalm/morrem criancinhas/ é napalm, é napalm/ morrem esturricadinhas..."
:p)

3/18/2010  
Blogger Fräulein Else said...

O Lugones toca duas coisas dignas de reflexão, com o seu texto: a pseudo-crítica musical e/ou pseudo-jornalismo, que denotam, apenas, a pseudo-democracia em que vivemos e a iminência da destruição e da barbárie. Também na semana passada os museus na Grécia fecharam portas com medo de invasões por parte das manifestações anárquicas. É, definitivamente, tempo de "aprender a nadar"! :)

3/19/2010  
Blogger Lugones said...

Na verdade, para além de alguns textos de crítica musical, baseei-me, igualmente, num folheto explicativo da obra de um Artista Plástico e, também, numa ficha de Projecto de uma Instalação Video Interactiva, a que tive acesso.

Os "Artistas" do Colectivo a que aludi neste texto decidiram não dedicar tempo a aprender a nadar e dedicaram-se, de armas e bagagens, a uma luta que lhes dará uma notoriedade mediática mais rápida.

Teremos entrado, finalmente, numa nova fase de "Invasões Bárbaras"?

E que sítio melhor do que a velha Grécia para ocorrerem todas estas manifestações?

3/21/2010  

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