As responsabilidades que começam nos sonhos
Moro, desde há vinte anos, na Fracção Autónoma I, correspondente ao 2º Andar, B, de um Prédio destinado a habitação, constituído por um Hall, Sala Comum, um Quarto, cozinha, despensa, 2 casas de banho, uma varanda com a área de 5m2, e um lugar para estacionamento de veículo automóvel ligeiro, com a Área de 9m2, situado na garagem.
Sou titular desta fracção, desde o falecimento da minha tia Maria Joaquina, que morreu solteira, e sem qualquer descendente directo.
Ficámos, como Herdeiros Legais, e Universais, da tia Maria Joaquina, eu, e mais o meu primo direito - o André Filipe.
Desde essa altura, sempre residi na Fracção Autónoma I, correspondente ao 2º Andar, B, do Prédio destinado a habitação supra citado, sem quaisquer problemas.
Assim, não foi ligeiro o meu espanto, quando recebi uma Carta do Tribunal, que me intimava a comparecer, numa Audiência de Discussão e Julgamento. Tratava-se de um Processo que tinha sido aberto, com base em supostos problemas relacionados com a propriedade do imóvel acima citado, ou seja, a Fracção Autónoma I, correspondente ao 2º Andar, B, de um Prédio destinado a habitação.
O autor era o André Filipe, meu primo direito, que reivindicava a posse de metade do imóvel.
Compareci à Audiência, da qual não me recordo. Recordo-me, apenas, da Sentença, que dispunha o seguinte: “conferimos ao Autor André Filipe, a Legítima Propriedade de um terço do Hall, metade do Quarto, uma casa de banho, e 4m2 do lugar para estacionamento de veículo ligeiro, da Fracção Autónoma I, correspondente ao 2º Andar, B, do Prédio destinado a habitação, referido neste Processo”.
O André Filipe mudou-se, de imediato, para a Fracção Autónoma I, o que me causou enormes transtornos. Soube que ele residira, durante todos estes anos, numa remota quinta, no interior do país. Talvez por isso, a parte do Hall que lhe passou a pertencer, por direito, foi por ele utilizada para a construção de um mini curral. A banheira da casa de banho transformou-se em zona de plantação de abóboras, e beterrabas.
Deixei de conseguir dormir, pois o André Filipe mudou-se de armas e bagagens para o meu Quarto.
Digo a palavra “armas” de um modo literal. Descobri que o André Filipe gostava de dar tiros aos pombos, que passavam, a voar, perto da Fracção Autónoma I. Por conseguinte, havia, por todo o Quarto, um enorme arsenal, com todo o tipo de armas, carregadas.
O galo, que dormia num poleiro, perto da janela, cantava, invariavelmente, às 5 e meia da manhã.
Eu não podia discutir com o André Filipe. Sei, pelo senso comum, que se deve ter um bom relacionamento com um indivíduo que durma com 2 caçadeiras, carregadas, no leito da cama.
Mas achei a situação deveras estranha. Sabia, intimamente, que o André Filipe sempre odiara o campo, e os animais, incluindo as galinhas, as cabras, e os porcos.
Mais: era humanamente impossível que o André Filipe conseguisse pegar numa arma. Afinal, ele ficou sem braços, naquele "acidente" de comboio, ocorrido uma semana depois do falecimento da minha tia Maria Joaquina.
Mais: o André Filipe ficou sem pernas, naquele "acidente" de comboio.
Acrescentaria ainda: o André Filipe ficou reduzido, naquele "acidente" de comboio, ao tamanho de um chouriço chamuscado.
Como já devem calcular: o André Filipe faleceu há vinte anos, num "acidente" de comboio.
Desta forma, haveria duas possibilidades:
1- A Sentença do Tribunal deveria ser impugnada, com base na morte óbvia do Autor.
2- Tratava-se de um sonho. Eu continuava a ser a única Titular da Fracção Autónoma I, correspondente ao 2º Andar, B, de um Prédio destinado a habitação, constituído por um Hall, Sala Comum, um Quarto, cozinha, despensa, 2 casas de banho, uma varanda com a área de 5m2, e um lugar para estacionamento de veículo automóvel ligeiro, com a Área de 9m2, situado na garagem.
A segunda possibilidade ganhou grande consistência, quando me vi, de repente, transportada para a Sala de Embarque do Aeroporto, na companhia do Paulo.
Não se tratava do Paulo gordo, careca, e envelhecido, que partilhou a minha cama, durante os últimos anos – neste momento, eu estava na presença um belo indivíduo, de farta cabeleira, porte atlético, e com os dentes lavados.
Não consegui conter o espanto:
“Paulo, és tu?”.
Ele riu-se, naquele sorriso de gato de porcelana, que eu tanto apreciava, e disse-me:
“Sim, amor, claro!”
Perguntei-lhe:
“O que é que estamos aqui a fazer?”
E ele, com aquele sorriso Colgate anti tártaro, respondeu-me:
“Vamos fazer aquela viagem de sonho, com que tanto sonhavas! Vamos à Índia, ao Egipto, à Patagónia, e ao Tajiquistão!”
Respondi-lhe, entusiasmada:
“Ao Tajiquistão? A sério? Mas não tinhas medo de andar de avião?”
“Querida, neste momento, estás a projectar, em mim, todas as qualidades concebíveis num Ser Humano. Claro que não tenho medo. Mais: pago-te a viagem, e deixo-te ir à janela!”
Dei-lhe a mão, agradecida. Pegámos nos bilhetes, e passaportes, e preparávamo-nos para entrar no avião, quando um solícito Funcionário disse, ao analisar o Passaporte do Paulo:-Este senhor não pode entrar!
O Paulo respondeu-lhe:
- Ora essa, porque não? Renovei o passaporte há pouco tempo, e os bilhetes são válidos!
O Funcionário, imperturbável, respondeu-lhe:
- Tudo o que o senhor me está a dizer é verdade. O passaporte não está, de facto, caducado. Permita que lhe diga, caro senhor Paulo, que é bastante mais atraente, fisicamente, ao vivo, e a cores, do que aparenta, neste retrato.
O Paulo sorriu-lhe:
- Muito obrigado, é muito amável!
O Funcionário continuou o seu monólogo:
- Todavia, e apesar de o senhor Paulo ter o passaporte em dia, e de os bilhetes estarem absolutamente válidos, existe um pequeno senão. E agora, pergunto-lhe, caro Paulo, sabe qual é esse senão? Ora muito bem, este pequeníssimo senão consiste no facto de o senhor Paulo estar morto. Veja, existe uma lista negra, que me é disponibilizada, todos os dias, por uma moderníssima base de dados, que me avança o nome de todas as pessoas falecidas. Ora, diz aqui na lista que o “ senhor Paulo Cardoso se encontra falecido”.
O Paulo parecia inconsolável:
- Mas pensei que isso não constituiria um problema…não posso pagar uma taxa adicional?
O funcionário continuou:
- Regra geral, não existem, de factos, grandes entraves à entrada de indivíduos falecidos, nos aviões. Porém, o senhor Paulo deveria ter comprado um passe especial, o “Cartão Cliente Morto”, que inclui taxas adicionais. Os indivíduos munidos deste cartão têm de estar devidamente acomodados em caixões selados, e têm lugares reservados nos aviões. Ora, o grande problema é que estamos em época alta. Neste momento, milhares de pessoas querem viajar para o Tajiquistão. Desta forma, e uma vez que não recebemos informações, no sentido de reservar os lugares destinados aos clientes do “Cartão Cliente Morto”, esse lugares já estão todos ocupados.
O Paulo parecia não querer desistir:
- E se eu comprar agora esse Cartão? Não podemos viajar no próximo voo?
O funcionário respondeu-lhe:
- Lamento informar-vos, mas, neste momento, todos os voos, para os próximos meses, estão ocupados. Existe apenas uma hipótese.
“Qual é essa hipótese?”, perguntou o meu defunto marido.
- Ora bem, como já vos disse, o avião encontra-se cheio. Mas ainda há algum espaço na zona das bagagens de mão, e no cockpit do avião. Se o senhor Paulo Cardoso tiver muita vontade em viajar para o Tajiquistão, poderá, sempre, optar pela hipótese da cremação. Caso não saibam, temos, neste aeroporto, ao serviço dos nossos clientes, 5 moderníssimos fornos crematórios. A cremação é rápida, e nem necessitam de pagar pelo caixão. O senhor Paulo deverá, apenas, dirigir-se aos nossos balcões, depois de ser cremado, para lhe modificarmos o passaporte, uma vez que terá uma alteração substancial no seu aspecto físico.
Fiquei entusiasmada. No fundo, tinha medo que o Paulo engordasse, de repente, e que ficasse careca, e com mau hálito e os dentes podres. Se ele ficasse reduzido a um monte de cinzas, nada disto interessaria. Por isso, lancei-lhe o meu olhar mais sensual, e perguntei-lhe, enternecidamente:
- Então, querido? O que achas? Não deve ser complicado, e assim, nem tens de te preocupar mais com o teu aspecto físico, nem tens de voltar a comprar roupa.
Mas o Paulo não se mostrou convencido:
- Querida, eu concordaria com isso tudo. Mas há um pequeno senão: se eu for cremado, não posso voltar a praticar uma coisa de que gosto muito.
Lembrei-me dos nossos tempos de paixão, e de quando partilhávamos a cama, sem ser, apenas, para vermos quem ressonava mais alto. Por isso, disse-lhe:
- Oh querido, mas isso não é nenhum impedimento! Tenho a certeza de que existem dezenas de posições sexuais que podem ser praticadas por um indivíduo cremado!
Mas o Paulo, quase irritado, respondeu-me:
- Querida, quem é que está a falar de sexo? Eu estou a falar de armas! Como é que posso dar tiros aos pombos, estando reduzido a um monte de poeira? Vamos embora, iremos, à mesma, ao Tajiquistão, mas a pé!
Sem me dar tempo de responder, saímos, a correr, do aeroporto. E sem me dar conta, já atravessávamos os planaltos de Espanha, as montanhas do sul de França, a zona vedada de Chernobyl, os campos desoladores da Sibéria, ou os desertos da Austrália. Mas não havia maneira de chegarmos ao Tajiquistão.
Acordei, cansada, e cheia de sede. Ao meu lado, vi o meu marido, moribundo, com os olhos abertos, a arfar, e a cara arroxeada. O corpo movia-se, lentamente, com espasmos nervosos.
- Ainda estás vivo, querido? Afinal, o veneno demora mais tempo a actuar, do que eu pensava! Pobrezinho, deves estar a sofrer muito!
Comecei a acariciar-lhe a cabeça, e os poucos cabelos que lhe restavam. Isto pareceu sossegá-lo, pois entrou num sono profundo, e começou a ressonar. Este barulho teve o condão de me embalar, igualmente, e voltei, de novo, a adormecer.
Agora, nos meus sonhos, vejo sempre o Paulo e o André Filipe. Torna-se cada vez mais difícil residir no 2º Andar, B, de um Prédio destinado a habitação, constituído por um Hall, Sala Comum, um Quarto, cozinha, despensa, 2 casas de banho, uma varanda com a área de 5m2, e um lugar para estacionamento de veículo automóvel ligeiro, com a Área de 9m2, situado na garagem.
O curral, que anteriormente ocupava, apenas, o hall de entrada, alargou-se para a Sala Comum, para a cozinha, e para uma das casas de banho. Nem poderei chamar-lhe, tecnicamente, um curral, pois nele vivem, agora (para além dos porcos), três cabras, duas vacas, 4 avestruzes, 2 javalis, 6 cavalos e 1 gambuzino.
O que resta da casa (a varanda, e a outra casa de banho) foi totalmente ocupado por várias plantações - de beterrabas, abóboras, espinafres, couves lombardas, e bifes com molho tártaro.
Refugio-me no quarto, mas não tenho descanso. O Paulo e o André Filipe passam o dia todo aos tiros. Mas já não se contentam em atirar aos pombos. Agora, não têm pejo em disparar sobre todos os objectos que se mexam. E isso incluiu os transeuntes, nomeadamente, os meus vizinhos, que ficam irritados, e intentam, continuamente, novos processos judiciais, que visam despejar-me do 2º Andar B, do prédio destinado a habitação.
Como vêem, a minha vida, tornou-se, literalmente, num pesadelo. No meio de todas estas aflições, só vejo uma vantagem: passei a acordar muito cedo. Nunca me levanto depois das cinco e meia da manhã. Isto, porque o galo, que dorme num poleiro, perto da janela, canta, invariavelmente, a essas horas, todos os dias.
Tento mandá-lo calar, dar-lhe um tiro, mas sei, no meu íntimo, que sempre tive medo de armas de fogo. Levanto-me, irritada. Com todos estes problemas, a saúde é que se ressente. Só como porcarias. A ideia de poder comer verduras (beterrabas, abóboras, espinafres...) dá-me a volta ao estômago. Por isso, engordei, ando a perder os dentes e, com toda esta aflição, até perco cabelo (ainda agora, meti as mãos à cabeça, e saiu-me um grande tufo esbranquiçado de pêlos).
4 Comments:
L'avantage d'être mort est celle de ne plus mourir
Mais zombies.
(Um dia farei um filme de terror e serei famoso - podia ser a tau frase Nicola :p)
p.s.: dislexiaaaaa! não é "tau", mas tua
lugones isto está a roçar o genial, mas estou com os olhos em formato mono p & b vertical,
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