Na pandra bomba ainda jinga a hidra samba- 4ª Parte
Publica-se agora a 4ª parte. Fica a faltar o 5º, e último trecho do texto.
.....Para compreendermos esta nossa hipótese, há que tentar destrinçar em que consiste o “meio de expressão” ou a “matriz linguística” para uma banda Pop-Rock portuguesa de meados dos anos 80. O “meio de expressão” ou a “matriz linguística” de uma tal tipologia não podem ser encaradas como uma gramática homogénea prestes a servir um determinado enunciado. Pelo contrário, o “meio de expressão” em que se desenvolveu o Rock português de meados dos anos 80 é necessariamente atravessado por diferentes “regimes de signos”, noção que tomamos de empréstimo de Deleuze e Guattari, e que estes autores definem, em Mille Plateaux, como toda e qualquer «formalização específica da expressão»[1]. Não pretendemos seguir aqui a argumentação desenvolvida por Deleuze e Guattari, mas tão só aproveitar a operatividade desta noção, que sugere a anterioridade das funções de enunciação em relação às constantes que constituem a cadeia significante de um determinado meio. Contudo, a extracção dessas constantes, ou significantes comuns, pode constituir um primeiro momento possível de uma pragmática dos regimes de signos que atravessam um determinado meio de expressão. Chamemos a este primeiro momento o “momento semiótico”, consistindo este na redução da expressão a uma sintaxe de significantes comuns identificados pela própria enunciação. Assim, diríamos que musicalmente este momento corresponde à adopção da estrutura convencional da canção Pop-Rock (com um determinado tempo e uma determinada organização interna, com um uso de determinados instrumentos, etc.), ao passo que liricamente pressupõe a adopção de uma determinada métrica (ou forma de expressão) que, por sua vez, serve uma determinada semântica (ou forma de conteúdo), ambas inseparáveis do regime musical. No caso particular dos Mler Ife Dada, este momento não é puramente semiótico na medida em que nos parece que a operação de redução aos significantes comuns implica uma tomada de posição estratégica, que desdobra desde logo a enunciação: exemplos disto serão “Dance Music” (do álbum Espírito Invisível), uma espécie de paródia à adopção do inglês como língua de enunciação («Why do you have to hear/ This song in English language/ If you’re not English/ And this ain’t no English song»), visto ser a tradição Pop-Rock uma tradição originalmente anglo-saxónica; nas canções onde são usados mais do que um idioma, normalmente estruturados em rimas convencionais (“Zuvi Zeva Novi”, “Passerelle”, “Canção do Homem que Anda (Walkman Music)” ou “Erro de Cálculo”), que sublinham a arbitrariedade dos significantes e a tradutibilidade infinita da linguagem universalizada do Pop-Rock; ou ainda nos ready-mades (“Oito Doces”, “Festa da Cerveja”), que mais não são do que respostas ou negociações com a matriz herdada da tradição dos cantautores na sua eleição do sentido da mensagem como padrão do texto cantado. Este desdobramento da enunciação é bastante comum nesta vaga do Pop-Rock português, sendo exemplos disto o uso intencional de palavras de ordem absurdas por parte dos Ocaso Épico ou as letras baseadas em nomes comuns e nomes próprios dos Pop dell’Arte.
Haverá um segundo gesto de negociação com o meio de expressão por parte dos Mler Ife Dada, e que é também um denominador comum do Pop-Rock dito “experimental”, e que poderia ser catalogado com o nome dado pelos Pop dell’Arte ao seu primeiro álbum, Free Pop (1987). Este gesto consistiria na incorporação de elementos heterogéneos à matriz convencional, multiplicando os regimes de signos. Musicalmente, deu-se a tentativa de assimilação de músicas de diversas culturas ou de outras tipologias, tal como faz notar Vítor Rua: «no rock isto reflectia-se na abordagem a músicas não europeias (especialmente a africana e a indiana), citações de músicas contemporâneas ocidentais, ou ainda, recorrendo à música concreta e electrónica, influenciados por Pierre Henry, Schaffer, Stockausen, Cage»[2]. Tal assimilação sugeriu igualmente a tentativa de incorporação da fonética própria de idiomas estranhos, ou como é declarado no texto que citámos do primeiro álbum, entre as coisas que fascinam estão «as línguas estrangeiras, tanto mais fascinantes quanto mais incomuns e indecifráveis»[3]. Exemplos disto são “Desastre de automóvel em varão de escadas” (que introduz a “língua” alemã «Was ist los?/ Darf ich fotografieren?/ Was ist passiert?/ Das ist ein Unfall mein Freund, ein Unfall!», juntamente com a utilização de algumas frases em português, num registo absolutamente non sense, «Muito bem, muito bem!/ O terreno também é escorregadio…/ Muito escorregadio»), a versão de uma canção popular arménia, «Loosin Yelav» no segundo álbum (a partir de arranjos de Luciano Berio), mas principalmente os temas em que as supostas línguas estrangeiras têm um tratamento puramente fonético, ou seja, em que são inventadas línguas incomuns e indecifráveis. Exemplos disto são “À sombra desta pirâmide”, um tema que teve origem numa captação de uma rádio árabe, cujo sample é repetido algumas vezes, durante a música, nos momentos das pausas instrumentais, para em seguida a banda cantar, em coro, uma ladainha pseudo-arábica, ininteligível, intercalada com os nomes de alguns pintores; mas também “Pandra-Bomba” (de onde tirámos o título da nossa comunicação), o tema “brasileiro” do primeiro álbum, cuja sonoridade “tropical” é complementada com o uso de algumas palavras que nos levam nesse caminho (“surucucu”, por exemplo), e onde as expressões fonéticas engendradas (“pandra”, por exemplo) se confundem com outras palavras retiradas do léxico português, usadas fora do seu sentido comum («E a pedra bomba rebenta num espanto; Na sala zomba o quadro do canto»), o que resulta numa mescla, onde se torna difícil, a certa altura, destrinçar as palavras “inventadas” das palavras “reais”, ambas produzidas em constantes aliterações; ou ainda “Siô Djuzé” (também do primeiro álbum), que parece ser uma retribuição que os Mler Ife Dada fizeram aos GNR, Anabela Duarte canta em dueto com Rui Reininho um breve tema claramente inspirado em melodias cabo-verdianas, e no qual o grupo aproveita para “traduzir” o nome da banda (que já tinha um significado meramente fonético), “adulterando-o” para cabo-verdiano: «Fala Cuma mudjeri/ Lá dos Meri Dada». Mesmo o tema anterior, “Valete de Copas”, sendo cantado totalmente em português, faz uso de uma estrutura pouco comum na linguagem Pop‑Rock, tanto através da figura de estilo do hipérbato («Deboche ouve-se aqui/ De beijos enches-me a mim»), como de novos jogos fonéticos, que se sobrepõem a um significado concreto que a letra possa ter («E leva assim meia hora/ Andei irei gente aura/ Lamento ai onde cai/ Da selva onde quero ir»). .....
[1] «On appelle régime de signes toute formalisation d’expression spécifique […]», Deleuze, Gilles, Guattari, Félix, Mille Plateaux. Capitalisme et Schizophrénie 2, Minuit, 1980, p. 140.
[2] Rua, V., “Improvisos sobre o Rock em Portugal”, http://anos80.no.sapo.pt/art007.htm.
[3] Rebelo, N., Coisas que Fascinam, Polygram, 1987.
.....Para compreendermos esta nossa hipótese, há que tentar destrinçar em que consiste o “meio de expressão” ou a “matriz linguística” para uma banda Pop-Rock portuguesa de meados dos anos 80. O “meio de expressão” ou a “matriz linguística” de uma tal tipologia não podem ser encaradas como uma gramática homogénea prestes a servir um determinado enunciado. Pelo contrário, o “meio de expressão” em que se desenvolveu o Rock português de meados dos anos 80 é necessariamente atravessado por diferentes “regimes de signos”, noção que tomamos de empréstimo de Deleuze e Guattari, e que estes autores definem, em Mille Plateaux, como toda e qualquer «formalização específica da expressão»[1]. Não pretendemos seguir aqui a argumentação desenvolvida por Deleuze e Guattari, mas tão só aproveitar a operatividade desta noção, que sugere a anterioridade das funções de enunciação em relação às constantes que constituem a cadeia significante de um determinado meio. Contudo, a extracção dessas constantes, ou significantes comuns, pode constituir um primeiro momento possível de uma pragmática dos regimes de signos que atravessam um determinado meio de expressão. Chamemos a este primeiro momento o “momento semiótico”, consistindo este na redução da expressão a uma sintaxe de significantes comuns identificados pela própria enunciação. Assim, diríamos que musicalmente este momento corresponde à adopção da estrutura convencional da canção Pop-Rock (com um determinado tempo e uma determinada organização interna, com um uso de determinados instrumentos, etc.), ao passo que liricamente pressupõe a adopção de uma determinada métrica (ou forma de expressão) que, por sua vez, serve uma determinada semântica (ou forma de conteúdo), ambas inseparáveis do regime musical. No caso particular dos Mler Ife Dada, este momento não é puramente semiótico na medida em que nos parece que a operação de redução aos significantes comuns implica uma tomada de posição estratégica, que desdobra desde logo a enunciação: exemplos disto serão “Dance Music” (do álbum Espírito Invisível), uma espécie de paródia à adopção do inglês como língua de enunciação («Why do you have to hear/ This song in English language/ If you’re not English/ And this ain’t no English song»), visto ser a tradição Pop-Rock uma tradição originalmente anglo-saxónica; nas canções onde são usados mais do que um idioma, normalmente estruturados em rimas convencionais (“Zuvi Zeva Novi”, “Passerelle”, “Canção do Homem que Anda (Walkman Music)” ou “Erro de Cálculo”), que sublinham a arbitrariedade dos significantes e a tradutibilidade infinita da linguagem universalizada do Pop-Rock; ou ainda nos ready-mades (“Oito Doces”, “Festa da Cerveja”), que mais não são do que respostas ou negociações com a matriz herdada da tradição dos cantautores na sua eleição do sentido da mensagem como padrão do texto cantado. Este desdobramento da enunciação é bastante comum nesta vaga do Pop-Rock português, sendo exemplos disto o uso intencional de palavras de ordem absurdas por parte dos Ocaso Épico ou as letras baseadas em nomes comuns e nomes próprios dos Pop dell’Arte.
Haverá um segundo gesto de negociação com o meio de expressão por parte dos Mler Ife Dada, e que é também um denominador comum do Pop-Rock dito “experimental”, e que poderia ser catalogado com o nome dado pelos Pop dell’Arte ao seu primeiro álbum, Free Pop (1987). Este gesto consistiria na incorporação de elementos heterogéneos à matriz convencional, multiplicando os regimes de signos. Musicalmente, deu-se a tentativa de assimilação de músicas de diversas culturas ou de outras tipologias, tal como faz notar Vítor Rua: «no rock isto reflectia-se na abordagem a músicas não europeias (especialmente a africana e a indiana), citações de músicas contemporâneas ocidentais, ou ainda, recorrendo à música concreta e electrónica, influenciados por Pierre Henry, Schaffer, Stockausen, Cage»[2]. Tal assimilação sugeriu igualmente a tentativa de incorporação da fonética própria de idiomas estranhos, ou como é declarado no texto que citámos do primeiro álbum, entre as coisas que fascinam estão «as línguas estrangeiras, tanto mais fascinantes quanto mais incomuns e indecifráveis»[3]. Exemplos disto são “Desastre de automóvel em varão de escadas” (que introduz a “língua” alemã «Was ist los?/ Darf ich fotografieren?/ Was ist passiert?/ Das ist ein Unfall mein Freund, ein Unfall!», juntamente com a utilização de algumas frases em português, num registo absolutamente non sense, «Muito bem, muito bem!/ O terreno também é escorregadio…/ Muito escorregadio»), a versão de uma canção popular arménia, «Loosin Yelav» no segundo álbum (a partir de arranjos de Luciano Berio), mas principalmente os temas em que as supostas línguas estrangeiras têm um tratamento puramente fonético, ou seja, em que são inventadas línguas incomuns e indecifráveis. Exemplos disto são “À sombra desta pirâmide”, um tema que teve origem numa captação de uma rádio árabe, cujo sample é repetido algumas vezes, durante a música, nos momentos das pausas instrumentais, para em seguida a banda cantar, em coro, uma ladainha pseudo-arábica, ininteligível, intercalada com os nomes de alguns pintores; mas também “Pandra-Bomba” (de onde tirámos o título da nossa comunicação), o tema “brasileiro” do primeiro álbum, cuja sonoridade “tropical” é complementada com o uso de algumas palavras que nos levam nesse caminho (“surucucu”, por exemplo), e onde as expressões fonéticas engendradas (“pandra”, por exemplo) se confundem com outras palavras retiradas do léxico português, usadas fora do seu sentido comum («E a pedra bomba rebenta num espanto; Na sala zomba o quadro do canto»), o que resulta numa mescla, onde se torna difícil, a certa altura, destrinçar as palavras “inventadas” das palavras “reais”, ambas produzidas em constantes aliterações; ou ainda “Siô Djuzé” (também do primeiro álbum), que parece ser uma retribuição que os Mler Ife Dada fizeram aos GNR, Anabela Duarte canta em dueto com Rui Reininho um breve tema claramente inspirado em melodias cabo-verdianas, e no qual o grupo aproveita para “traduzir” o nome da banda (que já tinha um significado meramente fonético), “adulterando-o” para cabo-verdiano: «Fala Cuma mudjeri/ Lá dos Meri Dada». Mesmo o tema anterior, “Valete de Copas”, sendo cantado totalmente em português, faz uso de uma estrutura pouco comum na linguagem Pop‑Rock, tanto através da figura de estilo do hipérbato («Deboche ouve-se aqui/ De beijos enches-me a mim»), como de novos jogos fonéticos, que se sobrepõem a um significado concreto que a letra possa ter («E leva assim meia hora/ Andei irei gente aura/ Lamento ai onde cai/ Da selva onde quero ir»). .....
(continua)
[1] «On appelle régime de signes toute formalisation d’expression spécifique […]», Deleuze, Gilles, Guattari, Félix, Mille Plateaux. Capitalisme et Schizophrénie 2, Minuit, 1980, p. 140.
[2] Rua, V., “Improvisos sobre o Rock em Portugal”, http://anos80.no.sapo.pt/art007.htm.
[3] Rebelo, N., Coisas que Fascinam, Polygram, 1987.
2 Comments:
Ficam aqui mais algumas letras da banda, para "leitura complementar":
Siô Djuzé
Bom djia, siô Djuzé!
Canta bena cantada!
Fala Cuma mudjeri
Lá dos Meri Dada.
Siô Djuzé
Bena cantá
Cuma mudjé
Dos Meri Dada
Desastre de Automóvel Em Varão de Escadas
Was ist los?
Darf ich fotografieren?
Was ist passiert?
Das ist ein Unfall mein Freund, ein Unfall!
Komm’…komm’…
Ich will aber nicht
Komm’ …komm’…
Não quero ir!
Ich habe mich bemuht,
Aber ohne Resultat
Es ist besser es nochmal zu versuchen.
Ich habe mich bemuht,
Aber ohne Resultat
Dann versuch’ ich’s noch einmal.
Komm’…komm’…
Ich will aber nicht
Komm’…komm’…
Muito bem, muito bem!
O terreno também é escorregadio…
Muito escorregadio
Das ist grosses Land,
Ein grosses Land fur mich…
…fur mich…
Cuidado…shiu…
Zuvi Zeva Novi
Zuvi!-----zuvi zevá, vá vanovi!
Zuvi zevá!-------vá, vá, vá vanovi.
Zuvi zeva novi?--------zuvi zeva novi.
Zuvi zava zivi zeva novi!...
Salta no ar, rebola de lado!
Sépia salmão, cheiro alvado…
Salta no ar, rebola de lado!
Sépia salmão, cheiro alvado…
Ele aí cai, zuvi vai ver
Mirar a montra, sorrir de prazer,
Caixinha, cor, mar, corinto, então?
Ainda a dança jinga na mão!
Taste a mar, hortelã gel,
Rola no ar, patinha no mel!
Taste a mar, hortelã gel,
Rola no ar, patinha no mel!
Ele aí está, zuvi vai ter
Hálito bombom, bom a valer!
Caixinha, cor, mar, corinto, então?
Ainda a dança jinga na mão!
Zuvi zeva zuvi zeva zuvi zeva novi,
Zuvi zava zivi zeva novi, ah!
Zuvi zeva zuvi zeva zuvi zeva novi,
Zuvi zava zeva novi, ah!
Ah!...Ah!...Zuvi zeva novi?
Ah!...Ah!...Zuvi zeva!
Loosin yelav (letra popular da Arménia)
Loosin yelaven sareetz
Saree partzaz gadareetz
Shegleeg megleeg yeresov
Barvetz kedneen loosin azov
Jan a loosin ja ko loosin
Jan ko galor sheg yereseen
Xavarn arten tchacatzav
U el kedneen tchagatzav
Loosni loosov halatzvadz
Moot amberi metch manadz
Yan a loosin yak o loosin
Yan ko gaqlor sheg yeresen
Xwé Xwé
Xwéxwé Swaihwé
Xwéxwé Swaihwé
Dzonokwa
Xwéxwé
Xwe Katami Na We
Djama Ngambi
Dzonokwa Dzonokwa
Gumwala
Insane cantoria!!!!!!! Siô Lugones!!
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