quinta-feira, abril 23, 2009

Na Pandra Bomba Ainda Jinga a Hidra Samba- 5ª, e Última Parte

Publico agora a 5ª (e última) parte do texto co-escrito com o camarada Boécio. Salientamos, obviamente, que se trata de uma interpretação particular e pessoal dos textos dos Mler Ife Dada. Não falámos com Nuno Rebelo ou com Anabela Duarte.

.....Cremos que o desdobramento da enunciação levado a cabo durante o gesto semiótico permite que o tipo de assimilação a que corresponde o segundo gesto não se materialize numa simples tradução mimética, mas sim numa multiplicação dos regimes de signos que povoam a matriz ou o meio de expressão, através de uma operatividade real de signos-partículas heterogéneos. Ambos os gestos convergem num terceiro gesto (há que fazer notar que estas distinções que propomos não equivalem a uma sequência temporal de gestos, que são evidentemente simultâneos, mas apenas a uma distinção analítica), gesto este que corresponderá à produção de um tipo singular de enunciação que não é uma mera mescla ou bric-à-brac, mas sim uma reinvenção operativa do meio de expressão, e que dá origem a uma língua nova. Assim, os jogos fonéticos de “Zuvi Zeva Novi” misturam-se com as palavras em português («ele aí cai, zuvi vai ver»), ou mesmo com algumas expressões em inglês («Taste a mar, hortelã gel»), segundo uma organização interna dos regimes de signos, de tal forma que o efeito produzido não causa estranheza, mas forma uma língua comum. Esta língua comum é fabricada por uma máquina discursiva com o nome próprio “Mler Ife Dada”, que é já em si uma enunciação nessa mesma língua. E é esta língua que opera livremente segundo um regime de signos heterogéneos (melódicos, rítmicos, sintácticos, etc.), e não meramente como uma mistura de padrões linguísticos autónomos entre si, mesmo nas letras aparentemente mais convencionais da banda, que se tornam assim irredutíveis tanto a uma interpretação semântica fechada, como a uma redução a constantes de significação. O que se ouve em “Sinto em mim” ou em “Choro do Vento e das Nuvens” são as diferenças intensivas de velocidade das analepses (como a imagem comum do vento a sussurrar), que põem em fuga o significado do texto; no último verso de “Erro de cálculo” («Subo devagar/ Se te queres matar mata-te/ Eu sou invisível/ Depressa/ Eu sou invisível/ Ou devagar»), o funcionamento autónomo de cada uma das partes («Subo devagar/ eu sou invisível» e «Se te queres matar mata-te/ depressa/ ou devagar»), não pretende corrigir o “erro de cálculo” ao reunir os enunciados anteriores (os versos em que a narradora diz, em português, que anda no ar e os versos, em inglês, em que fala do seu amor distante), mas sublinhar a operatividade comum dos elementos heterogéneos que trabalham o texto.
É através deste gesto de enunciação que põe as partículas-signo heterogéneas a modelar o texto, ao invés das elementos nucleares, que é possível a desconstrução dos significantes comuns e a consequente libertação da dívida que estes impõem. Em “Alfama” ou “À Chuva”, por exemplo, a enunciação do cliché faz-se através do cruzamento de diferentes regimes de signos que perturbam o seu reconhecimento e reinventam, assim, o próprio enunciado. Não é na sua função de constantes que as aliterações de “Alfama” («Alfama de cacos pintados de tintas e trocas e ventos no rio de pontos picantes e pontas de faca com laca e alpaca de Alfama com alma de alfafa e gente de fama que cai na galhofa do pátio da esquina da Feira da Ladra de cacos picantes e contas correntes de tretas e pintas de gente com laca nas pontas da fama e ventos de faca que cortam Alfama em portas pintadas com a fama do fado») ou que os efeitos das expressões performativas que compõem “À Chuva” (passou, olhou, sorriu, subiu, segui, fugi) abrem linhas de fuga na produção linear de sentido, mas sim na sua função operativa, que é imanente à pragmática discursiva da máquina de escrever “Mler Ife Dada”, esta definindo-se apenas pelos regimes de signos que põe a funcionar em variação contínua, regimes de signos estes que, tal como fazem notar Deleuze e Guattari, «se definem assim pelas variações interiores à própria enunciação, mas permanecem exteriores às constantes da linguagem e irredutíveis às categorias linguísticas»
[1].
É esta libertação das constates linguísticas ou do meio de expressão ou do seu significante transcendental que é, a nosso ver, a revolução particular dos Mler Ife Dada, na medida em que opera uma transformação real e imanente na linguagem do Pop-Rock português, segundo uma enunciação específica, mas reconhecível, que se singulariza em relação à enunciação geral ou a uma mera tradução directa desta
[2]. E é este fenómeno que Nuno Camarinhas identifica no que ele chama “Pop experimental” portuguesa, e que define como «a procura de criar música de uma forma nova, marcadamente europeia, senão mediterrânica, explorando universos tão distintos como o das músicas do mundo, ambientes de cabaret e cinematográficos, uma certa portugalidade pós-‑moderna, ambientes de quase-esquizofrenia, propostas dançantes directamente direccionadas ao cérebro, exploração e manipulação de sons em estúdio»[3].
Subtracção e redução (ao absurdo) dos significantes comuns, incorporação de elementos heterogéneos e produção de variantes contínuas são os três gestos ou operações sobre o meio ou a matriz de expressão que identificamos na nova vaga portuguesa de meados dos anos 80 e, mais particularmente, nos Mler Ife Dada. Estes três gestos fundam um tipo de enunciação local, colectivamente operante e reconhecível, que pode funcionar como um dialecto dentro da língua maior e universalizada do Pop-Rock, uma espécie de “linguajar” específico da cultura popular portuguesa. A pragmática deste tipo de enunciação que, uma vez mais, não é subjectiva mas colectiva na heterogeneidade dos signos que põe a operar, produz as tais coisas que fascinam porque o seu sentido é irredutível às constantes que dela se podem extrair («alors ça me fascine parce que je ne/ sais pas grand chose»). Sem dúvida que na pandra bomba ainda jinga a hidra samba.


Fim

[1] «Les régimes de signes se définissent ainsi par des variables intérieures à l’énonciation même, mais qui restent extérieures aux constantes de la langue et irréductibles aux catégories linguistiques», Deleuze, G., Guattari, F., Mille Plateaux, p. 175.
[2] Esta distinção poderá talvez corresponder à distinção que Deleuze e Guattari propõem entre um tratamento maior e um tratamento menor da linguagem, o primeiro operando por extracção de constantes e o segundo por variação contínua: «Le mode major et le mode mineur sont deux traitements de la langue, l’un consistant à en extraire des constantes, l’autre à la mettre en variation continue», Deleuze, G., Guattari, F., Mille Plateaux, p. 135.
[3] Camarinhas, Nuno, Rádio Pirata, 30 de Janeiro de 1999, http://anos80.no.sapo.pt/art001.htm.

1 Comments:

Blogger Lugones said...

Deixo mais umas letras dos Mler Ife Dada:

Valete (de copas)

Deboche ouve-se aqui
De beijos enches-me a mim
Dá-me notas bem, dá-me notas no ar
Eu sinto som, acção de mais

Meu querido amigo, ai como és bom!
Ai como eu quero ser mau.
Meu querido amigo, ai como estás bem!
Ai como eu quero estar mal.

E leva assim meia hora
Andei irei gente aura
Lamento ai onde cai
Da selva onde quero ir



Sinto Em Mim

Vento sinto em mim
Sussurar
O sopro do mar.

Ânsia sinto em mim
De viver
O mundo a correr.

Fogo sinto em mim
aparecer
teu corpo aquecer.

Força sinto em mim
A rasgar
Meu peito gritar.
Risos sinto em mim.
Força sinto em mim.
Horas sinto em mim.

Frio sinto em mim
Aquecer
Meu entardecer.

Vida sinto em mim
Acordar
Na rua dançar.

Sede sinto em mim
De beber
Teu sangue a arder.

Alma sinto em mim
P’ra cantar
Um grito no ar.

Lobos sinto em mim.
Corvos sinto em mim.
Garras sinto em mim.

Medo sinto em mim
De sentir
Palavras mentir.
Dança sinto em mim
Seu vibrar
Guitarra cantar.

Sangue sinto em mim
A ferver
Nas veias correr.

Fúria sinto em mim.
Flechas sinto em mim.
Mágoa sinto em mim.

Morte sinto em mim.


A Elsa Disse

A Elsa disse
Que se eu voasse
Me dava um beijo no ar

Se a Rita ouvisse
O que ela disse
Mandava-me passear

Se a Ana quisesse
Que eu cantasse
Vestia-me p’ra matar

Se o Rui quisesse
Que eu sonhasse
Ensinava-me a cantar


Choro do Vento e das Nuvens

Sei de uma nuvem lá no céu
Sei de outra nuvem, que chorou
E ao chorar, eu chorei devagar
E jurei nunca mais me lembrar

Mas, sinto-me só de não mais sentir
Que só sentir não é demais

Sei que um olhar vai nascer
Sei que ao olhar vou morrer
E ao morrer, voltarei a sonhar
E há-de ser um sonho de encantar

Mas, sinto-me só de não mais sentir
Que só sentir não é demais

Egoísmo da minha paixão
Masoquismo no meu coração
Exorcismo da minha ilusão
Sabe a gelo o teu regresso aqui

Sinto em mim o vento a sussurrar
E hei-de ouvir o que a nuvem chorar

Mas, sinto-me só de não mais sentir
Que só sentir não é demais


À Chuva

Passou
Olhou
Sorriu
Eu vi

Subiu
Segui
Fugiu
Daqui

Lá vou eu
Você vai
E eu vou

À chuva
À chuva
Corri
Parou
Olhei
Sorri

Eu falei
Você disse
E eu sim

À chuva
À chuva

Ousei
Beijou
Gemeu
Tremi

Choveu mais
Você foi
E eu vim

À chuva
À chuva
À chuva

4/23/2009  

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