sexta-feira, abril 30, 2010

Fragmentos de um desencanto- parte 1

Dia 1
Fui cordialmente convidado a colaborar na revista literária “Rapunzéis da Modernidade”. Evidentemente, aceitei.

Dia 2
Primeira reunião do grupo, numa mesa de café. Somos 10, ao todo. O líder do grupo apareceu mais tarde. Não sei qual é o seu nome, pois usa cerca de 8 pseudónimos literários diferentes. Não cumprimentou ninguém, e fumou todos os cigarros do meu maço, sem que tenha pedido autorização. Levou para casa um livro que eu trazia, “A Arte e a Natureza nas lições de Hegel sobre a Estética”.
Foi um início prometedor, pois estabeleci contactos com o líder do grupo.
No final, até me dirigiu a palavra, quando me pediu para lhe pagar as bebidas.

Dia 3
Não sei muito bem em que consiste esta Revista. Aparentemente, publica poemas, ensaios, críticas e contos, e querem que eu envie três textos, que sairão no próximo número.
Tenho uns cinco contos, guardados na gaveta da cómoda do quarto, escritos ao longo dos últimos oito anos. Amanhã, começo a revê-los. Escolherei aqueles que se enquadrem melhor no conceito da Revista.

Dia 4
Nada a assinalar. Hoje, não tive quase tempo de passar em casa, muito menos, de abrir a gaveta da cómoda do quarto, e de escolher os contos. Amanhã, talvez…

Dia 5
Copos, em casa do Luís.
Meia-final da Liga dos Campeões.
Amanhã, começo a escolher os contos, para enviar ao pessoal da revista.

Dia 6
Hoje, perdi o passe, e não pude sair de casa.
Ganhei mais um campeonato no Championship Manager, depois de uma luta complicada entre a minha equipa, o Foggia, e a Sampdoria, que só ficou resolvida nos últimos minutos, do último jogo, com um golo do meu reforço mais recente, o Balotelli.
Postei uns vídeos no facebook, relacionados com a lenda de Rapunzel.
Acho que começo a compreender o espírito da revista, e sinto-me motivado a escolher uns bons contos.
Amanhã, logo quando acordar, ponho mãos ao trabalho.

Dia 7
Acordei, com o som do telefone. Convidaram-me a ir a duas manifestações, durante a tarde.
Encontrei antigos amigos, e jantei com eles.
Cheguei tarde a casa, depois de uma noitada de copos.
Amanhã, começo a escolher os contos.

Dia 8
Tragédia!
Abri a gaveta da cómoda do quarto, e não havia nada lá dentro. Só encontrei mortalhas, antigos bilhetes de cinema, moedas estrangeiras, dois baralhos de cartas, fotografias tipo-passe dos meus tempos da Faculdade, e duas embalagens de bolachas, ressequidas.
Dos contos, nem vestígios.
Procurei em todo o lado – debaixo da cama, em cima dos móveis, na banheira, dentro do microondas…sem resultados.
Os contos desapareceram.
Vivo sozinho, em casa, e raramente recebo visitas.
Conclusão: o assalto foi perpetrado por gnomos.

Dia 9
“Os gnomos são espíritos de pequena estatura, amplamente conhecidos e descritos entre os seres elementais da terra”. #
“Com a evolução dos contos, o gnomo tornou-se na imaginação popular um anão, senão um ser muito pequeno com poucos centímetros de altura” #
# Source: wikipedia brasileira

Dia 10
Suspeito que os gnomos vivam em minha casa há vários anos. Isso explica o desaparecimento de diversos objectos, tais como:
3 molhos de chaves;
Um enxoval completo;
Uma carteira, que tinha, no seu interior, um cartão de crédito, o passaporte, carta de condução, cinco bilhetes de metro (dois deles caducados), uma embalagem de preservativos, e quatro euros;
Algumas peças de roupa, tais como: casacos, cachecóis, e uma boina vermelha;
Conclusão: os gnomos praticam métodos de contracepção. Terão, também, doenças sexualmente transmissíveis?

Dia 11
Lembrei-me de uma antiga namorada, a Marta, que me abandonou, durante a noite, enquanto eu dormia.
Provavelmente, foi raptada pelos gnomos, que roubaram, igualmente, a televisão (que comprei, a meias, com a Marta, e que desapareceu nessa mesma noite) e um leitor de DVD’s.
Isto explica o facto de a Marta nunca mais me ter atendido o telefone, e que me tenha respondido, apenas uma vez, com a seguinte mensagem:
“Não me procures mais, seu atrasado mental!”

Dia 12
Hoje, ao acordar, cheguei à conclusão de que tenho pensado em muitos disparates, ao longo dos últimos dias.
Tenho vindo a ser submetido a um elevadíssimo nível de stress. O facto de saber que terei de escolher alguns contos, e de ter o compromisso de os submeter a uma revista literária arrasa-me os nervos.
Por isso, a minha capacidade de discernimento tornou-se mais ténue, e cheguei à ideia disparatada de que uns gnomos me teriam assaltado a casa.
Ora, após uma análise mais elaborada dos factos, e de algumas horas de estudo, e pesquisa, cheguei à conclusão de que os gnomos não me assaltaram a casa.
Alguma vez um gnomo seria capaz de fazer essas travessuras?
Pois claro que não!
A causa de todos os meus males é outra, e descobria-a:
Tenho sido atacado por Sacis.
Segundo a wiki brasileira, o “Saci, ou Saci-Pererê, é um negrinho de uma só perna, que fuma cachimbo, e usa um barrete vermelho, que lhe dá os poderes milagrosos. Este espírito, em vez de ajudar na casa, é o responsável por uma série de tropelias, que incluem a ocultação de objectos, e o estrago de alimentos. Segundo a tradição, este espírito traquinas paga muito ouro para reaver o seu barrete, caso este lhe seja roubado pelos humanos”.
Notas: parece que o Saci estraga alimentos. Eis a razão de eu ter, quase sempre, uma quantidade incrível de alimentos putrefactos, em casa.
Nota ainda mais interessante: como disse atrás, desapareceu-me a boina vermelha. Ora, o Saci usa um barrete vermelho. Será que o Saci perdeu o seu barrete, ou confundiu-o com a minha boina? Se for o caso, e se eu recuperar o barrete do Saci, este pagar-me-á uma avultada quantia em ouro, para o reaver.
Esta hipótese abre-me grandes perspectivas. Se o Saci me der ouro, escuso de me candidatar ao Doutoramento, para ganhar uns trocos.

Dia 13
Afinal, encontrei todos os meus contos, dentro de uma mala velha, que levei uma vez, para casa dos meus pais.
Agora recordo-me bem: foi no Natal do ano passado, quando me convidaram a participar numa revista literária.
Levei os contos, para os rever, e para escolher três, que se enquadrassem no conceito da revista.
Isto leva-me a concluir o seguinte:
1- Já enviei os meus contos para outras revistas literárias. Como tal, não posso reutilizá-los;
2- Não se tratou, portanto, de um assalto. O caso é mais grave: alguém entrou no meu cérebro, e começou a controlá-lo, provocando-me perdas de memória, e de concentração.
Conclusão: posso esquecer a história do Saci, e do ouro. Terei mesmo de me candidatar a uma Bolsa de Estudo.

1 Comments:

Blogger V. ou uma Raquel said...

*ahem* Rapunzel da Modernidade: presente.

5/02/2010  

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