O Meu Amigo Zé Miguel
Gosto bastante do Zé Miguel, e considero-o um bom amigo.
Curiosamente, não posso dizer que o nosso primeiro encontro tenha sido particularmente auspicioso. Apertou-me a mão, nervosamente, enquanto fumava um cigarro, com a outra mão. Pediu-me desculpa, explicando, atabalhoadamente, o seu atraso, com a necessidade de comprar comida para o filho, facto que o obrigou a estar demasiados minutos na fila para pagar, no supermercado.
Surpreendi-me. Não encontrei resquícios de paternidade naquela cara macilenta, e envelhecida. Detectei-lhe, de imediato, os dentes prematuramente apodrecidos, e o olhar esgazeado, provavelmente alimentado por cocaínas, anfetaminas, e outras palavras terminadas de um modo semelhante.
Sem mais delongas, deu-me as chaves da sala. Em troca, paguei-lhe a parte da minha renda corresponde àquele mês.
Agora, peço-vos desculpa, caros leitores, pois confesso que a minha memória se tornou um pouco turva (coisa de Artistas). Na verdade, nem me recordo muito bem para que era utilizada a sala. Sei, apenas, que eu, e mais uns quantos Artistas, partilhávamos o mesmo espaço, cada um com o seu horário de “trabalho”. O Zé Miguel, por sua vez, era o nosso porta-voz, e entregávamos-lhe o dinheiro das nossas rendas, para que ele pagasse ao senhorio. Mas não me lembro se estávamos perante um atelier de Pintura, Escultura, ou Design. Ou utilizaríamos a sala como Estúdio de Ensaio das nossas bandas? Ou como local de ensaio para as nossas Peças de Teatro? Na verdade, pratiquei, em tempos, todas essas formas de Arte. E arrendei, igualmente, muitas salas, para esses efeitos, um pouco por todo o país. Por isso, não estranhem, em demasia, estas lacunas de memórias, e passemos ao que verdadeiramente interessa.
E, falando com verdade, assim servida nua e cruamente, direi, assim de rajada, que utilizei aquele Estúdio umas duas vezes. Para continuar a falar com verdade, e nada mais que a verdade, acrescentarei que, enquanto lá estive, não voltei a ver o Zé Miguel, nem voltei, sequer, a pensar nele.
Por isso, quando saí do Estúdio, nem me lembrei de o avisar. Deixei, somente, de lhe pagar a renda. Uns tempos depois, cruzei-me com ele, e disse-lhe que tinha abandonado a sala. Olhou-me, sobressaltado:
- Mas vais pagar estes meses em atraso, não?
“Ah, claro”, respondi-lhe, sem pensar, sequer um instante, em cumprir essa promessa.
Uns dias depois, recebi, no telemóvel, a primeira mensagem do Zé Miguel.
Ainda a tenho guardada, como recordação do verdadeiro início dos nossos contactos pessoais. Iniciou-se a fase a que dei o nome, posteriormente, de “Fase da Amena Cavaqueira”.
A mensagem dizia o seguinte:
“Olá, tudo bem? Queres mesmo deixar a sala, e abandonar a vida artística? Pensa bem nisso! Entretanto, não te esqueças de pagar as rendas! Grande abraço.”
Uma mensagem calorosa, como podem verificar. Em resposta, disse-lhe que não ia abandonar, de todo, a minha vida artística. Convidava-o, de resto, a assistir, no futuro, a alguma exposição minha, ou a um concerto, ou performance, que executaria em algum ponto da cidade. E prometia pagar-lhe em breve, possivelmente, no dia seguinte.
“É claro que vou assistir, avisa-me! E muito obrigado por pagares os meses em atraso! Abraço”.
No dia seguinte, não paguei o valor em questão, nem no outro dia, nem no outro. Penso que me desloquei, ao estrangeiro, nessa altura. Por isso, nem lhe menti, quando lhe respondi à seguinte mensagem:
“ Está tudo bem? Já pagaste a renda? Desculpa estar a insistir, mas estou com falta de dinheiro, e o senhorio anda a chatear-me. Abraço”.
Disse-lhe que estava no estrangeiro, e que lhe pagaria, logo que voltasse, muito brevemente.
“Muito obrigado! Agradeço-te imenso o esforço!”, respondeu-me, passados cinco minutos.
Não lhe paguei o valor em causa. Um dia, atendi um telefonema, de um número fixo, que desconhecia. Era o Zé Miguel.
Parecia preocupado. Perguntou-me se já estava de regresso, e se já tinha pago as rendas em atraso.
“Vou lá daqui a bocado, sem falta! Não te preocupes!”, respondi-lhe, o mais gentilmente possível.
Posso descrever a fase seguinte do nosso relacionamento como a fase do “Descontrolo Telefónico”. Durante duas semanas, a fio, o Zé Miguel tentou ligar-me, a uma média de 20 vezes ao dia, desse número de telefone fixo. Ao ver de quem se tratava, eu não atendia, obviamente.
Até que se deu o nosso encontro, que se deu, casualmente. Uma noite, fui comprar tabaco, à Tasca do costume. Alguém me chamou. Só reparei que se tratava do Zé Miguel, passado alguns segundos. Como estava mudado! Se antes lhe notava, no olhar, uma certa inclinação para o abismo, naquele momento pude dizer que o abismo teria uma inclinação para tentar fugir do Zé Miguel, para não se eclipsar naquela demonstração cabal de miséria humana. Poupo mais descrições. Do que entendi que me dizia, depreendi que “eu era a pessoa mais difícil de ser localizada”.
Fiz um ar pesaroso, e respondi que passara umas semanas complicadas, no Hospital, mas que agora, recuperado, iria pagar o valor da renda em atraso.
Pareceu-me um pouco aliviado com a resposta, e deixou-me seguir caminho.
Durante uns dias, nada me disse, até que se deu uma viragem no teor das mensagens telefónicas. A este período do nosso relacionamento, dou-lhe o nome de “Período das Mensagens Agressivas”. Começou com esta:
“Então, pá!! Não pagas a renda! Já começo a ficar farto!”
Nem lhe respondi. Surgiram outras, piores.
“Escuta, sei que não deves ter dinheiro. Mas faz um esforço, porra! Pede a alguém! Senão, temos de nos chatear a sério. Paga-me a renda, por favor”
Ao fim de uma semana de mensagens progressivamente intimidatórias, resolvi apelar para a via emocional. Mencionei-lhe uns vagos e graves “problemas pessoais”. A partir dessa mensagem, o nosso relacionamento passou para a fase seguinte (uma das mais interessantes e ricas, a nível inter-relacional): a "Fase da Confissão".
Eis a primeira missiva do Zé Miguel, a propósito deste tema:
“Dizes que tens problemas. Isso é porque desconheces a minha vida. Estou desempregado, à beira de ser despejado. Tenho fome, Paga-me a renda, por favor.”
Ao mencionar-lhe os meus próprios problemas pessoais, fi-lo sentir-se mais à vontade, para me falar de coisas sérias:
“Os meus problemas não são só monetários. Eu sou toxicodependente, e a minha mulher quer deixar-me. E o meu filho está doente. Paga-me a renda, por favor”
Durante as semanas que se sucederam, contou-me muitos aspectos da sua vida. Soube que o Zé Miguel era órfão, quando respondeu à minha sugestão de que pedisse um empréstimo aos seus pais:
“Eu não tenho pais, morreram comidos por uns ursos esfaimados, quando foram de férias, ao Alasca, tinha eu 8 anos. Paga-me a renda, por favor.”
A história dos avós também era dramática. Eis os seus pensamentos sobre o assunto:
“Também não posso pedir dinheiro aos meus avós! O meu avô enlouqueceu, mal soube da morte dos meus pais, e matou a minha avó, e comeu-a, num acesso de loucura! Paga-me a renda, por favor”.
Nem os amigos o poderiam ajudar.
“Não tenho amigos, pá! Foram todos viver para o estrangeiro. Paga-me a renda, por favor!”
A sua própria saúde piorava de dia para dia. Tomei conta da dramática situação, quando lhe sugeri que fosse trabalhar para as obras, em Andorra, ou para a apanha da fruta, no Sul de França:
“Fui operado ao coração o mês passado! É um problema congénito! Não posso fazer esforços físicos! Paga-me a renda, por favor!”
A sua saúde periclitante afectava-lhe as próprias cordas vocais:
“Não posso ir trabalhar para um Call-Center, nem dar aulas num Centro de Explicações, estou com uns nódulos na garganta. Paga-me a renda, por favor!”.
Nesse período, voltou a ligar-me. Fazia-me chamadas de cabines públicas, às horas mais inusitadas. Naquela altura, já lhe tinham cortado o telefone, e o Zé Miguel ganhava a vida a arrumar carros. Quando arranjava os trocos suficientes, telefonava-me:
“Estou cheio de frio, pá! Hoje, não pararam carros aqui, desde as 7 da noite. Devem ter ido todos ao futebol. Tenho fome, e sede. Paga-me a renda, por favor….”, Dizia-me, antes de o telefone se desligar, com falta de moedas.
Foi nessa altura que a mulher o deixou. O filho morreu, mas como magra consolação, o Zé Miguel soube que o filho, não era, de facto, seu, mas de um velho amante da sua mulher.
Seguiu-se o período mais negro do nosso relacionamento, a que darei o nome de “Fase da Ausência”.
Estive uns tempos sem ter notícias dele. Afligi-me. De manhã, ia logo ver, ao telemóvel, se tinha mensagens da sua parte. Tentei ligar-lhe, e saber alguma coisa acerca do seu paradeiro, mas as minhas diligências revelaram-se frustrantemente infrutíferas.
Até que me ligou um dia. A sua voz denunciava uma força e vitalidade que eu lhe desconhecia, até àquele momento.
“Olá. Estive numa clínica de desintoxicação, e estou melhor. Agora procuro trabalho. Paga-me a renda, por favor”.
Confesso que fiquei bastante feliz com as novas notícias sobre o Zé Miguel. Contei logo as novidades à minha mulher, que se mostrou satisfeita, pois sabia que eu andava preocupado.
E seguiu-se a fase seguinte, e actual, no nosso relacionamento, a que darei o nome de “Fase de Bonança e Maturidade”.
Vou tendo notícias do Zé Miguel, e acompanho, com entusiasmo, o seu renascimento social. Arranjou um emprego, num Centro de Acolhimento para Toxicodependentes, dá palestras, e conselhos, a todos os necessitados, e já viu Jesus Cristo, pelo menos, em duas ocasiões, desde que deixou a droga. Ah, e retomou a sua vida artística. Haverá uma Exposição, com os seus trabalhos, na Fábrica do Braço de Prata, no próximo Sábado. A Exposição servirá, também, como pretexto para o lançamento do seu livro, onde o Zé Miguel relata todas as suas experiências dramáticas.
E deixo o melhor para o fim.
O Zé Miguel vai casar-se antes do fim do ano!
Conheceu a sua futura esposa há poucos meses, e resolveram, rapidamente, juntar os trapinhos. Parece, até, que já vem um filho, a caminho.
Serei, provavelmente, convidado para o Casamento. Se assim for, assistirei, com agrado, e orgulho, a toda a Cerimónia, e cantarei, bem alto, “vivam os noivos”.
Ainda hoje recebi uma mensagem do Zé Miguel, que rezava o seguinte:
“Depois do Casamento, vou tentar ir de Lua-de-Mel, mas estou sem dinheiro nenhum. Paga-me a renda, por favor”.
Gosto bastante do Zé Miguel, e considero-o um bom amigo.
Curiosamente, não posso dizer que o nosso primeiro encontro tenha sido particularmente auspicioso. Apertou-me a mão, nervosamente, enquanto fumava um cigarro, com a outra mão. Pediu-me desculpa, explicando, atabalhoadamente, o seu atraso, com a necessidade de comprar comida para o filho, facto que o obrigou a estar demasiados minutos na fila para pagar, no supermercado.
Surpreendi-me. Não encontrei resquícios de paternidade naquela cara macilenta, e envelhecida. Detectei-lhe, de imediato, os dentes prematuramente apodrecidos, e o olhar esgazeado, provavelmente alimentado por cocaínas, anfetaminas, e outras palavras terminadas de um modo semelhante.
Sem mais delongas, deu-me as chaves da sala. Em troca, paguei-lhe a parte da minha renda corresponde àquele mês.
Agora, peço-vos desculpa, caros leitores, pois confesso que a minha memória se tornou um pouco turva (coisa de Artistas). Na verdade, nem me recordo muito bem para que era utilizada a sala. Sei, apenas, que eu, e mais uns quantos Artistas, partilhávamos o mesmo espaço, cada um com o seu horário de “trabalho”. O Zé Miguel, por sua vez, era o nosso porta-voz, e entregávamos-lhe o dinheiro das nossas rendas, para que ele pagasse ao senhorio. Mas não me lembro se estávamos perante um atelier de Pintura, Escultura, ou Design. Ou utilizaríamos a sala como Estúdio de Ensaio das nossas bandas? Ou como local de ensaio para as nossas Peças de Teatro? Na verdade, pratiquei, em tempos, todas essas formas de Arte. E arrendei, igualmente, muitas salas, para esses efeitos, um pouco por todo o país. Por isso, não estranhem, em demasia, estas lacunas de memórias, e passemos ao que verdadeiramente interessa.
E, falando com verdade, assim servida nua e cruamente, direi, assim de rajada, que utilizei aquele Estúdio umas duas vezes. Para continuar a falar com verdade, e nada mais que a verdade, acrescentarei que, enquanto lá estive, não voltei a ver o Zé Miguel, nem voltei, sequer, a pensar nele.
Por isso, quando saí do Estúdio, nem me lembrei de o avisar. Deixei, somente, de lhe pagar a renda. Uns tempos depois, cruzei-me com ele, e disse-lhe que tinha abandonado a sala. Olhou-me, sobressaltado:
- Mas vais pagar estes meses em atraso, não?
“Ah, claro”, respondi-lhe, sem pensar, sequer um instante, em cumprir essa promessa.
Uns dias depois, recebi, no telemóvel, a primeira mensagem do Zé Miguel.
Ainda a tenho guardada, como recordação do verdadeiro início dos nossos contactos pessoais. Iniciou-se a fase a que dei o nome, posteriormente, de “Fase da Amena Cavaqueira”.
A mensagem dizia o seguinte:
“Olá, tudo bem? Queres mesmo deixar a sala, e abandonar a vida artística? Pensa bem nisso! Entretanto, não te esqueças de pagar as rendas! Grande abraço.”
Uma mensagem calorosa, como podem verificar. Em resposta, disse-lhe que não ia abandonar, de todo, a minha vida artística. Convidava-o, de resto, a assistir, no futuro, a alguma exposição minha, ou a um concerto, ou performance, que executaria em algum ponto da cidade. E prometia pagar-lhe em breve, possivelmente, no dia seguinte.
“É claro que vou assistir, avisa-me! E muito obrigado por pagares os meses em atraso! Abraço”.
No dia seguinte, não paguei o valor em questão, nem no outro dia, nem no outro. Penso que me desloquei, ao estrangeiro, nessa altura. Por isso, nem lhe menti, quando lhe respondi à seguinte mensagem:
“ Está tudo bem? Já pagaste a renda? Desculpa estar a insistir, mas estou com falta de dinheiro, e o senhorio anda a chatear-me. Abraço”.
Disse-lhe que estava no estrangeiro, e que lhe pagaria, logo que voltasse, muito brevemente.
“Muito obrigado! Agradeço-te imenso o esforço!”, respondeu-me, passados cinco minutos.
Não lhe paguei o valor em causa. Um dia, atendi um telefonema, de um número fixo, que desconhecia. Era o Zé Miguel.
Parecia preocupado. Perguntou-me se já estava de regresso, e se já tinha pago as rendas em atraso.
“Vou lá daqui a bocado, sem falta! Não te preocupes!”, respondi-lhe, o mais gentilmente possível.
Posso descrever a fase seguinte do nosso relacionamento como a fase do “Descontrolo Telefónico”. Durante duas semanas, a fio, o Zé Miguel tentou ligar-me, a uma média de 20 vezes ao dia, desse número de telefone fixo. Ao ver de quem se tratava, eu não atendia, obviamente.
Até que se deu o nosso encontro, que se deu, casualmente. Uma noite, fui comprar tabaco, à Tasca do costume. Alguém me chamou. Só reparei que se tratava do Zé Miguel, passado alguns segundos. Como estava mudado! Se antes lhe notava, no olhar, uma certa inclinação para o abismo, naquele momento pude dizer que o abismo teria uma inclinação para tentar fugir do Zé Miguel, para não se eclipsar naquela demonstração cabal de miséria humana. Poupo mais descrições. Do que entendi que me dizia, depreendi que “eu era a pessoa mais difícil de ser localizada”.
Fiz um ar pesaroso, e respondi que passara umas semanas complicadas, no Hospital, mas que agora, recuperado, iria pagar o valor da renda em atraso.
Pareceu-me um pouco aliviado com a resposta, e deixou-me seguir caminho.
Durante uns dias, nada me disse, até que se deu uma viragem no teor das mensagens telefónicas. A este período do nosso relacionamento, dou-lhe o nome de “Período das Mensagens Agressivas”. Começou com esta:
“Então, pá!! Não pagas a renda! Já começo a ficar farto!”
Nem lhe respondi. Surgiram outras, piores.
“Escuta, sei que não deves ter dinheiro. Mas faz um esforço, porra! Pede a alguém! Senão, temos de nos chatear a sério. Paga-me a renda, por favor”
Ao fim de uma semana de mensagens progressivamente intimidatórias, resolvi apelar para a via emocional. Mencionei-lhe uns vagos e graves “problemas pessoais”. A partir dessa mensagem, o nosso relacionamento passou para a fase seguinte (uma das mais interessantes e ricas, a nível inter-relacional): a "Fase da Confissão".
Eis a primeira missiva do Zé Miguel, a propósito deste tema:
“Dizes que tens problemas. Isso é porque desconheces a minha vida. Estou desempregado, à beira de ser despejado. Tenho fome, Paga-me a renda, por favor.”
Ao mencionar-lhe os meus próprios problemas pessoais, fi-lo sentir-se mais à vontade, para me falar de coisas sérias:
“Os meus problemas não são só monetários. Eu sou toxicodependente, e a minha mulher quer deixar-me. E o meu filho está doente. Paga-me a renda, por favor”
Durante as semanas que se sucederam, contou-me muitos aspectos da sua vida. Soube que o Zé Miguel era órfão, quando respondeu à minha sugestão de que pedisse um empréstimo aos seus pais:
“Eu não tenho pais, morreram comidos por uns ursos esfaimados, quando foram de férias, ao Alasca, tinha eu 8 anos. Paga-me a renda, por favor.”
A história dos avós também era dramática. Eis os seus pensamentos sobre o assunto:
“Também não posso pedir dinheiro aos meus avós! O meu avô enlouqueceu, mal soube da morte dos meus pais, e matou a minha avó, e comeu-a, num acesso de loucura! Paga-me a renda, por favor”.
Nem os amigos o poderiam ajudar.
“Não tenho amigos, pá! Foram todos viver para o estrangeiro. Paga-me a renda, por favor!”
A sua própria saúde piorava de dia para dia. Tomei conta da dramática situação, quando lhe sugeri que fosse trabalhar para as obras, em Andorra, ou para a apanha da fruta, no Sul de França:
“Fui operado ao coração o mês passado! É um problema congénito! Não posso fazer esforços físicos! Paga-me a renda, por favor!”
A sua saúde periclitante afectava-lhe as próprias cordas vocais:
“Não posso ir trabalhar para um Call-Center, nem dar aulas num Centro de Explicações, estou com uns nódulos na garganta. Paga-me a renda, por favor!”.
Nesse período, voltou a ligar-me. Fazia-me chamadas de cabines públicas, às horas mais inusitadas. Naquela altura, já lhe tinham cortado o telefone, e o Zé Miguel ganhava a vida a arrumar carros. Quando arranjava os trocos suficientes, telefonava-me:
“Estou cheio de frio, pá! Hoje, não pararam carros aqui, desde as 7 da noite. Devem ter ido todos ao futebol. Tenho fome, e sede. Paga-me a renda, por favor….”, Dizia-me, antes de o telefone se desligar, com falta de moedas.
Foi nessa altura que a mulher o deixou. O filho morreu, mas como magra consolação, o Zé Miguel soube que o filho, não era, de facto, seu, mas de um velho amante da sua mulher.
Seguiu-se o período mais negro do nosso relacionamento, a que darei o nome de “Fase da Ausência”.
Estive uns tempos sem ter notícias dele. Afligi-me. De manhã, ia logo ver, ao telemóvel, se tinha mensagens da sua parte. Tentei ligar-lhe, e saber alguma coisa acerca do seu paradeiro, mas as minhas diligências revelaram-se frustrantemente infrutíferas.
Até que me ligou um dia. A sua voz denunciava uma força e vitalidade que eu lhe desconhecia, até àquele momento.
“Olá. Estive numa clínica de desintoxicação, e estou melhor. Agora procuro trabalho. Paga-me a renda, por favor”.
Confesso que fiquei bastante feliz com as novas notícias sobre o Zé Miguel. Contei logo as novidades à minha mulher, que se mostrou satisfeita, pois sabia que eu andava preocupado.
E seguiu-se a fase seguinte, e actual, no nosso relacionamento, a que darei o nome de “Fase de Bonança e Maturidade”.
Vou tendo notícias do Zé Miguel, e acompanho, com entusiasmo, o seu renascimento social. Arranjou um emprego, num Centro de Acolhimento para Toxicodependentes, dá palestras, e conselhos, a todos os necessitados, e já viu Jesus Cristo, pelo menos, em duas ocasiões, desde que deixou a droga. Ah, e retomou a sua vida artística. Haverá uma Exposição, com os seus trabalhos, na Fábrica do Braço de Prata, no próximo Sábado. A Exposição servirá, também, como pretexto para o lançamento do seu livro, onde o Zé Miguel relata todas as suas experiências dramáticas.
E deixo o melhor para o fim.
O Zé Miguel vai casar-se antes do fim do ano!
Conheceu a sua futura esposa há poucos meses, e resolveram, rapidamente, juntar os trapinhos. Parece, até, que já vem um filho, a caminho.
Serei, provavelmente, convidado para o Casamento. Se assim for, assistirei, com agrado, e orgulho, a toda a Cerimónia, e cantarei, bem alto, “vivam os noivos”.
Ainda hoje recebi uma mensagem do Zé Miguel, que rezava o seguinte:
“Depois do Casamento, vou tentar ir de Lua-de-Mel, mas estou sem dinheiro nenhum. Paga-me a renda, por favor”.
Gosto bastante do Zé Miguel, e considero-o um bom amigo.