quarta-feira, agosto 22, 2012

Domingos e as camadas de pele - parte 1

Do Domigos guardo na memória aqueles dois fugazes episódios.

O episódio da sala de aula no velho edifício a cair aos bocados, cerca de metade do soalho de madeira destruído pelo caruncho. Lá estava o Domingos sentado na mesa do canto, sozinho, como sempre. Se alguém queria sossego, bastava sentar-se ao lado do Domingos. Menos naquele dia. O Domingos coçava a cabeça, provavelmente para se livrar dos piolhos, que pediam asilo naquela volumosa melena mal cuidada para se refugiarem do ataque dos terríveis bichos do caruncho. Coçava a cabeça e abanava as pernas, nervosamente. Estava calor. Olhei para ele com uma raiva contida. A nossa sala de aulas tinha um inimigo declarado. O inimigo declarado é o elo mais fraco, o saco de porrada que não estrebucha. Não tinha quaisquer motivos para o odiar. Mas queria cair nas boas graças da turma. Por isso odiava-o. Odiava o cabelo com melenas mal cuidadas, odiava as roupas baratas que deviam passar de geração para geração, odiava aquela fraqueza de menino tímido que se sentava a um canto para não nos confrontar, odiava aqueles óculos garrafais de tamanho ridículo, que lhe caiam da cara minuto a minuto.

Concentrava toda a minha raiva no Domingos. Repousava o meu olhar, reconfortava-me naquele desprezo que lhe devotava. Sentia-me seguro.
Enquanto houvesse Domingos, não existia perigo. Podia baixar a guarda.
Podia cultivar um cabelo ou outro mal semeado. Podia abanar as pernas nervosamente, sem que os outros reparassem.

O Domingos abanava as pernas nervosamente. Seria do calor? Parecia uma ventoinha. Cerrava os olhos, escondidos por detrás daqueles óculos garrafais.
Não se conteve. De repente, vimos o líquido descer-lhe pelas pernas abaixo. O líquido invadiu os calções, invadiu a cadeira, desceu como um rio de águas quentes em direcção ao soalho coberto de caruncho.

Quando tocou no soalho, juro que pareceu deitar uma pequena nuvem de fumo. Depois espalhou-se um pouco, desceu pelas frinchas do chão e foi cair directamente na cabeça do Padre Dinis, que repousava nos aposentos em baixo. O padre Dinis mandou um berro. A minha professora mandou outro berro. Correu na direcção do Domingos e deu-lhe uma estalada do tamanho do edifício e de todo o recreio em redor.

Um azar nunca vem só, a estalada fez saltar os óculos do Domingos, que caíram mesmo em cima da poça de mijo. Rimo-nos todos. Insultámos o Domingos. Apareceu o padre Dinis. Mandou o pobre Domingos despir-se em frente a toda a turma. Ainda agora me vem à memória bem nitidamente a imagem daquelas cuecas brancas ensopadas.
Pouco depois apareceram os pais. A mãe era uma velha desdentada, com uns óculos ainda mais feios que os do filho. O pai um pobre diabo com um bigode mal semeado.
Odiei-os também, uma raiva com uma igualdade bem democrática, repartida irmãmente pelos três membros da família. Quando se foram embora, começámos todos a gozar. Com o Domingos, a mãe e o pai. E com as cuecas ensopadas em mijo. Não percebi porque é o que o padre Dinis as guardou.

O outro episódio ocorreu mais tarde. Não sei quanto tempo mais tarde, por causa dos hiatos da memória. Entre os dois episódios, já nada recordo. Depois, já só me restam três recordações da primária e do ciclo preparatório, que ocorreram uns bons anos mais tarde.
Estava nas minhas férias de praia. Fui com a minha mãe comprar comida ao mercado da vila piscatória. A minha mãe telefonou para casa. Era uma daquelas cabines velhas, de rua, com um compartimento interior.
Quando desligou, disse-me:
- Olha, telefonaram para casa a convidar-te para um aniversário. É um amigo teu, o Domingos.
Eu gritei, verdadeiramente indignado:
- O Domingos não é meu amigo!
A minha mãe respondeu, fleumática:
- Convidou-te para os anos dele. De qualquer modo, não podes ir. O aniversário é amanhã.
Não respondi. Imaginei, irritado, a casa do Domingos. Devia ser velha, com um chão de madeira repleto de caruncho, como a nossa sala de aulas. Haveria de ter muitos piolhos e de cheirar mal. O Domingos, a mãe do Domingos e o pai dele deviam mijar para o chão. E a comida haveria de ser má. Só podia ser má. Nem devia ter brinquedos. Imaginei o Domingos a soprar as velas sozinho, com a mãe desdentada por detrás, a ajudá-lo. Um rio de baba a cair no bolo.
Não sei porquê, mas esse pensamento não me reconfortou.
Nem sei quando é que me voltaram a convidar para um aniversário. Hoje em dia, já não me recordo de um único aniversário a que tenha ido. E fui a centenas. Alguns deles bem divertidos. Mas só me recordo dessa chamada telefónica. Desse convite para um aniversário em casa de um miúdo que queria tanto detestar. Atirei-me com força para a água, naquela tarde. Esqueci-me do medo que tinha de mergulhar e enfiei a cabeça dentro do oceano gelado.

A minha mulher chegou a casa e disse: amanhã deixo de usar pele.
Pareceu-me muito bem. Odiava aquele casaco de camurça castanho, com aqueles horrendos enchumaços para dar mais volume aos ombros.
“Parece-me muito bem”, respondi-lhe.
A minha mulher disse:
-ainda bem que concordas.
Quando acordei reparei, com horror, que a minha mulher cumprira o prometido. Da pele já não havia vestígios.
A epiderme, a derme e todas aquelas camadas que estamos habituados a ver num ser humano médio e saudável tinham desaparecido.
O corpo gelatinoso balançava-se por toda a casa. O intestino grosso arrastava-se pelos corredores. Era perigoso. O gato já andava a brincar com ele. E todos sabemos que os intestinos grossos não são um bom brinquedo para os gatos. Enrodilham-se naqueles intermináveis sacos de carne e podem morrer sufocados.
Confesso que fiquei irritado:
“Já viste em que figura estás? Não vais assim para a rua, calculo…”.
A minha mulher respondeu:
“Pensei que tivesses apoiado a minha decisão de deixar de usar pele”.
Respondi-lhe.
“Está frio. Pelo menos leva um casaco.”
“Já não tenho casacos. São todos de pele. E eu deixei de usar todo o tipo de pele”.
“Leva um dos meus casacos, então. São todos sintéticos”.
A minha mulher pareceu concordar:
- Está bem. Levo qual?
Olhei horrorizado para o corpo da minha mulher. Não me apetecia emprestar-lhe um dos meus casacos, iam ficar todos sujos, misturados naquela amálgama improvável de fluidos corporais e todo o tipo de órgãos possíveis e imaginários, que escorriam para o soalho de madeira.
Não me apetecia escolher. Odeio escolher. Peguei num, ao calhas.
Curiosamente, o meu casaco favorito:
“Toma. Vais ver que te fica bem”.
A minha mulher saiu para a rua. Voltei para a cama, mas não consegui dormir.
Irritava-me aquele barulho do gato a patinar pelo chão da casa, como
se estivesse numa pista de ski.
Enfiei a cabeça debaixo dos lençóis.
Da pele da minha mulher guardo na memória este episódio fugaz.