quarta-feira, dezembro 27, 2006

segunda-feira, dezembro 25, 2006

O último passeio de Robert Walser

Há cinquenta anos: algumas crianças passeavam na neve. Fariam os seus bonecos para de seguida serem destruídos. Guerreando com ogivas húmidas e inofensivas, numa batalha de neve, talvez tenham lançado um projéctil longe de mais. Correram ansiosas e encontraram um homem estendido, de braços abertos, como que aguardando um abraço do céu. Assustadas, teriam regressado à pequena vila de Herisau, onde já se sentia a falta de um doente do Hospital Psiquiátrico local. A polícia, avisada, acorreu ao local e reconheceu o homem. Um passeio solitário final, depois de ter desaparecido na escrita até ficar invisível, é a suprema liberdade, a sublime fuga ao mundo.

sexta-feira, dezembro 22, 2006

À espera dos Bárbaros

«O que esperamos nós em multidão no Fórum?

Os Bárbaros, que chegam hoje.

Dentro do Senado, porque tanta inacção?
Se não estão legislando, que fazem lá dentro os senadores?

É que os Bárbaros chegam hoje.
Que leis haviam de fazer agora os senadores?
Os Bárbaros, quando vierem, ditarão as leis.

Porque é que o Imperador se levantou de manhã cedo?
E às portas da cidade está sentado,
no seu trono, com toda a pompa, de coroa na cabeça?

Porque os Bárbaros chegam hoje.
E o Imperador está à espera do seu Chefe
para recebê-lo. E até já preparou
um discurso de boas-vindas, em que pôs,
dirigidos a ele, toda a casta de títulos.

E porque saíram os dois Cônsules, e os Pretores,
hoje, de toga vermelha, as suas togas bordadas?
E porque levaram braceletes, e tantas ametistas,
e os dedos cheios de anéis de esmeraldas magníficas?
E porque levavam hoje os preciosos bastões,
com pegas de prata e as pontas de ouro em filigrana?

Porque os Bárbaros chegam hoje,
e coisas dessas maravilham os Bárbaros.

E porque não vieram hoje aqui, como é costume, os oradores
para discursar, para dizer o que eles sabem dizer?

Porque os Bárbaros é hoje que aparecem,
e aborrecem-se com eloquências e retóricas.

Porque, subitamente, começa um mal-estar,
e esta confusão? Como os rostos se tornaram sérios!
E porque se esvaziam tão depressa as ruas e as praças,
e todos voltam para casa tão apreensivos?

Porque a noite caiu e os Bárbaros não vieram.
E umas pessoas que chegaram da fronteira
dizem que não há lá sinal de Bárbaros.

E agora, que vai ser de nós sem os Bárbaros?

Essa gente era uma espécie de solução.»

(Konstantinos Petrou Kavafis)

terça-feira, dezembro 19, 2006

E agora... te te tetete te tetete...

sexta-feira, dezembro 15, 2006

Cluedo

«Scholem escreveu um dia que há qualquer coisa de infinitamente desconsolador na doutrina da ausência de objecto do conhecimento supremo, tal como é ensinada nas primeiras páginas do Zohar, e que constitui, de resto, a lição última de toda a mística. Nessas páginas, no limite extremo do conhecimento, aparece o pronome interrogativo O quê? (Mah), para lá do qual não há já resposta possível: “Quando um homem interroga, procurando discernir e conhecer, grau após grau até ao último, atinge o Quê?, ou seja: Entendeste o quê? Viste o quê? Buscaste o quê? Mas tudo continua tão impenetrável como ao princípio.” Mais íntimo e oculto é, no entanto, segundo o Zohar, o outro pronome interrogativo, que assinala o limite superior dos céus: Quem? (Mi). Se o Quê? é a pergunta que interroga a coisa (o quid da filosofia medieval), o Quem? é a pergunta que se dirige ao nome: “O impenetrável, o Antigo, criaram isso. E quem é isso? É o Quem?... Como é, a um tempo, objecto de pergunta e indesvendável e fechado, chama‑se‑lhe Quem? Para lá dele não há mais perguntas... Existente e inexistente, impenetrável e fechado no nome, não tem outro nome senão Quem?, aspiração a ser desvendável, a ser chamado por um nome.”
É certo que o pensamento, uma vez atingido o limite do Quem?, deixa de ter objecto, chega à experiência da ausência de objecto último. Mas isto não é desconsolador, ou melhor, é-o apenas para um pensamento que, tomando uma pergunta por outra, continua a perguntar Quem?, lá onde não só já não há respostas, como também não há perguntas. Verdadeiramente desconsolador seria o conhecimento último ter ainda a forma da objectualidade. É precisamente a ausência de um objecto último do conhecimento que nos salva da tristeza sem remédio das coisas. Toda a verdade última formulável num discurso objectivante, ainda que na aparência feliz, teria necessariamente um carácter destinal de condenação, de um ser condenado à verdade. A deriva em direcção a este definitivo fechamento da verdade é uma tendência presente em todas as línguas históricas, a que a filosofia e a poesia obstinadamente se opõem, e na qual encontram alimento, tanto o poder significante das linguagens humanas, como a sua inelutável morte. A verdade, a abertura que, segundo um oros platónico, é própria da alma, fixa-se, através da linguagem e na linguagem, num último e imutável estado de coisas, num destino.
Nietzsche tentou escapar a este pensamento pela ideia do eterno retorno, pelo sim dito ao instante mais atroz, quando a verdade parece fechar-se para sempre num mundo de coisas. O eterno retorno é, de facto, uma última coisa, mas ao mesmo tempo também a impossibilidade de uma última coisa: a eterna repetição do fechamento da verdade num estado de coisas é, enquanto repetição, também a impossibilidade desse fechamento. Na formulação insuperável de Nietzsche, o amor fati, o amor do destino.
Esse monstruoso compromisso entre destino e memória, no qual aquilo que só pode ser objecto de recordação (o retorno do idêntico) é vivido todas as vezes como um destino, é a imagem distorcida da verdade, que o nosso tempo não consegue dominar. Porque a abertura da alma – a verdade – não se abre sobre o abismo de um destino infinito, nem se fecha na eterna repetição de um estado de coisas, mas, abrindo-se num nome, ilumina apenas a coisa e, fechando-se sobre ela, apreende ainda a sua própria aparência, recorda-se do nome. Este difícil cruzamento entre dom e memória, entre uma abertura sem objecto e aquilo que não pode ser senão objecto, é a verdade na qual, segundo o autor do Zohar, o justo encontra a sua morada: “O Quem? é o limite superior do céu, o Quê? o limite inferior. Jacob recebe-os a ambos em herança, foge de um limite para o outro, do limite inicial Quem? para o limite final Quê?, e mantém-se no meio.”»

(Giorgio Agamben, "Ideia da verdade" in Ideia da prosa)

segunda-feira, dezembro 11, 2006

Dekalog

Começou ontem, no velhinho e decrépito Cinema Quarteto, em Lisboa, a exibição de Dekalog, uma mini-série de 10 episódios de uma hora, realizados em 1988, por Krzystof Kiéslowski, para a televisão polaca. Cada episódio é independente, por isso, quem não assistiu à exibição dos dois que já passaram, poderá sempre ver os restantes. Stanley Kubrick era um dos grandes admiradores desta série, chegando a afirmar tratar-se da única obra-prima que ele poderia nomear em toda a sua vida. Os bilhetes custam dois euros e as sessões são às 21.30, até à próxima quinta-feira.

quinta-feira, dezembro 07, 2006

Le moment musical de la soirée

segunda-feira, dezembro 04, 2006

Le Moulin de l'Oubli
















(Gilbert Garcin)

Ela é a Minha Menina

A Joaninha andava desaparecida. Por mais que a procurassem, não a encontravam em lugar nenhum. A situação prolongava-se desde anteontem, data em que faleceu, vítima de uma arritmia amenófica endémica. Bastou uma distracção de alguns minutos e puff! Caixão completamente vazio, sem nada lá dentro. Bem, excepto as roupas da Joaninha.
Faltava também o Alberto. O rapaz não saía do quarto sensivelmente desde a altura do desaparecimento da Joaninha. Suspeitas. Lá o encontraram, dentro do seu quarto, em cima da cama, agarrado ao corpo da Joaninha.
Foi levado para a prisão, por entre um mar de insultos, imprecações. A necrofilia não é uma prática socialmente aceite por aquelas paragens.
Escoltado, inconsolável, não parava de murmurar: "sempre tive dificuldades em estabelecer relações com as mulheres".