domingo, fevereiro 26, 2006

Teoria da indeterminação literária

O encantamento da presa é a antecipação do êxtase. Por isso, a fuga dá-se em espiral. O centro modelar é a marca escarlate da goela aberta. A história conta-se porém elipticamente: o bom predador move-se em função dessa espiral que a presa desenhou de antemão e coloca-se num ponto determinado do circuito total – não no centro, mas entre este e o perímetro, o que lhe permite seccionar o percurso traçando o diâmetro perfeito; mas a boa presa sabe mover a cada instante o seu centro de acção, retalhando assim a teia erigida. Esta astúcia não significa a sua salvação, mas tão só o diferir eterno do inevitável desenlace. Fábula kafkiana sem solução matemática exacta.

Insónia é:

- a lisura dos lençóis a queimar-me a pele;

- uma detonação orquestral entre as têmporas;

- imaginar-te os contornos às 4h30 da manhã.

sábado, fevereiro 25, 2006

Angelus Celan

Der Tod ist ohne warum,
Er blühet weil er blühet.

A morte é sem porquê,
Floresce porque floresce.

terça-feira, fevereiro 21, 2006

Arte poética

Uma pequena oferenda roubada para o Boécio.

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Cio



Em noites de lua cheia, todos os gatos são parvos.

Lesbocracia

Na minha terra
a economia era
a das línguas,
o produto interno bruto
era a saliva,
as palavras eram
prazeres e obrigações
e louvo a Zeus
não termos secretarias.

Telegrama 1

Axioma I: A arte, tal como se a entende em sentido comum, é uma noção moderna.
Proposição I: É a partir desta noção que se devem ler as suas diversas tipologias regionais.
Axioma II: Todo o tipo de arte tem um período de ascensão, um período de auge e um período de decadência.
Proposição II: Encontrando-nos nós no período de decadência da modernidade, convivemos essencialmente com tipos de arte em decadência.
Axioma III: A noção de produção conjugada com a noção de arte não é necessariamente um noção decadente.
Problema I: Faz sentido produzir obras de arte de tipo decadente?
Problema II: A decadência artística é o correlato de um período histórico de decadência?
Proposição III: Dentro de uma tipologia decadente, há dois grandes géneros de obra de arte: (1) o “tratado teórico” (exemplos: Picasso, Joyce, Tarantino). ou (2) a “obra reaccionária” (exemplos: Dali, Tolkien, Eastwood). Esta proposição é puramente semiológica e dela não é possível retirar qualquer juízo estético.
Proposição IV: O género “obra reaccionária” é essencialmente orgânico e, portanto, conservador; o género “tratado teórico” é essencialmente inorgânico e, portanto, revolucionário.

Proposição V: Num período histórico de decadência, convivem tipologias em ascensão, auge e decadência, ainda que estas últimas predominem e gozem de maior legitimidade (exemplo: a literatura é mais legítima que as novas artes “virtuais”).
Proposição VI: À medida que avança um período histórico, a micro-história de cada tipologia tende a mimetizar, em ciclos cada vez mais pequenos, as narrativs particulares de cada uma das tipologias anteriores e a narrativa do próprio período histórico.
Proposição VII: O que caracteriza a singularidade de cada tipologia são os acidentes que fogem à regra geral enunciada na proposição anterior, pelo que não é possível estabelecer qualquer regra particular a partir desta (exemplo: a análise crítica da história da música pop não permite estabelecer regras sobre a história da pintura em tela, nem sequer é possível estabelecer regras gerais a partir do exercício das artes comparadas).
Axioma IV: A impossibilidade de uma regra geral inviabiliza os axiomas anteriores, mas multiplica-os sob a forma de outras tantas proposições, e estas, sob a forma de problemas.

Canção de engate

Tarde é:
quando a saliva gelada cristaliza
os vocábulos certos.
Num esgar, o olho que olha
o olhar do olho que olha:
hipóstase do toque
com-
-sentido.

Horizonte:

(a) um espelho assimetricamente quebrado;
(b) signos trigonométricos deixados ao vento (Benjamin);
(c) o poema que Safo deixou por escrever;
(d) a rosa de Paracelso (Borges);
(e) a 1ª noite branca;
(f) o auto-retrato do cego (Derrida);
(g) o penúltimo copo de sábado à noite;
(h) [...]

domingo, fevereiro 19, 2006

Trabalho de casa

«Le plus profond, c'est la peau.» (Valéry)

Dawn of the dead


Deixado ao acaso está o amor púbere – aquele que prescreve inflamar as entranhas com agulhas destiladas. No canto, entre parede e parede, está o poema e o acto sublime. A escala contada a partir daqui dói – e isto com os olhos colados ao papel branco. Hoje pequei por excesso, mas a noite lava-se – à transparência. Todas as horas perdidas são o sintoma de um porvir – no auge, Deus morrerá em esplendor. Como este rio ao amanhecer. Melhor será ficar em casa, rodeado pela estranha caução dos objectos familiares.

sábado, fevereiro 18, 2006

Fragmento

Olho em redor
e vejo faces voláteis.
Arrisco a crença
de que o tempo
se manifesta
por esses ínfimos
fragmentos.

Ler em Lesbos

Aqui tenho tempo para ler tudo, porque cá não existe o tempo e só há uma língua, que nem é bem uma língua mas mais uma intuição. Chegou-me há pouco ao conhecimento que na Suda, a enciclopédia da antiguidade como devem saber, escreveram o meu nome em duas entradas diferentes: a decorosa e a corrupta. O que queriam que fizessemos em Lesbos sempre que os homens andavam entretidos em banquetes de efebos ou em guerras de valentes? E não era pouco tempo, não…

A aurora em Lesbos

Agora que se dignaram pôr-me a falar, digo que foi com extrema injustiça que não convidaram o meu amigo Blake (um destes dias dedico-lhe um poema) para confraternizar aqui no blog. Como é que se diz blog em grego? Na Grécia não tínhamos destas coisas. Costumávamos cantar, beber e amar em belos jardins perfumados e quando nos cansávamos dessa vida íamos dormir.

Literatura e Decadência: Digressão negativa sobre dois conceitos

A literatura da decadência é para os duros. Nada de escrita ingénua, a Arte já não acontece. Não há inspiração que valha a ninguém. É necessário muito sangue, algum suor e um desejo de destruição enraizado no íntimo reduto da criatividade. Há toda uma História a destruir, muitos autores (e autoras) a violentar. Não há retribuições de Deus a criaturas meritórias. Há que ler tudo para tudo conhecer e em redundância não se incorrer. Não se pode louvar e acima de tudo, e insisto muito nesta recomendação, acima de tudo é completamente proibido ser sentimental (segundo uma epítome pós-moderna de tudo o que implica a milenar especulação filosófica sobre os sentidos, as sensações, as impressões, o intelecto, o intelecto agente…). Exilar a emoção num departamento do prazer ou da dor (que diferença faz?), o sexual por exemplo, e nunca resgatá-la para o texto, eis um princípio ético elementar para uma boa literatura e uma vida equilibrada: na literatura da decadência a emoção vive em perpétuo ostracismo. Pode simular-se, mas neste caso ela há-de surgir sempre como simulação de homem forte (omnisciente) e irónico que sabe perfeitamente o que está a fazer, isto é, que age como Deus, e por isso mesmo as criaturas leitoras hão-de retribuí-lo, fazendo-se inconscientes da emoção, evitando a todo o custo vivê-la. Na decadência, todos os homens e mulheres são déspotas da vontade: atente-se na liberalidade característica destes momentos culturais. Há, porém, um auto-controlo inesgotável de todas as faculdades inesgotáveis, e isto deve reflectir-se inesgotavelmente na literatura inesgotável. Por esta razão a literatura vira-se para as coisas, mais do que nunca, e exaure de tudo a mais ínfima alma. E na decadência a alma morreu e as pessoas tocam-se de luvas, quando se tocam, e olham-se com máscara, quando se olham. Deve observar-se isto mesmo quando se escreve: ninguém se entrega totalmente a ninguém (entenda-se, as personagens, se as houver), calcula-se tudo muito bem para que o roçar dos verbos (dos corpos das personagens, se as houver, como se acabou precisamente de dizer) resulte em secante da união entre A e B, e estes movimentos devem parecer circulares, a recordar o sempre humano mito do eterno retorno.
Um conceito beneficentíssimo na decadência é o de entropia. Quem o dominar na literatura será o nome consagrado da História da Literatura de amanhã.
Recapitulando: força, conhecimento, simulação, reificação, orientação, entropia são algumas das palavras plenas de sentidos e ideias sempre úteis ao escritor do novo século. Ia-me esquecendo: brevidade e concisão, porque já ninguém tem paciência, nem tempo (ambos intimamente ligados desde a aurora da criação), para caminhar a custo três mil páginas (depende das edições) só para concluir que o desejo de Proust era alimentar até à morte a falsa ideia de que o mundo em que vivera era imperecível (ou para dizer exactamente o contrário? ou para se conformar de que a única coisa que lhe restava era apenas escrevê-lo, e nada mais?) Nem ninguém voltará a tentar destruir a literatura em 700 páginas julgando abrir novos mundos ao mundo, quando o único mérito de tal empresa foi colocar conscienciosamente a pergunta (falo de Joyce): já chegámos ao fim, não foi pai do céu?


Nota: O escrevente destas palavras pede benevolentemente ao leitor que não se deixe iludir por algum argumento inadvertidamente visível no texto. Não foi sua intenção demonstrar nada, apenas se trata de um mero exercício de estilo. Faz-se igualmente ver, agora que se escreve a sério, que a falta de verificação da validade da realidade impede o escrevente de acreditar no sentido das palavras, e por isso, quando escreve decadência não acredita no conceito decadência mas apenas na sonoridade da palavra decadência. Pede-se, por fim, perdão pela utilização da palavra Deus, que por duas vezes fez questão de se dar à pena, sem intenção deliberada de a escrever o escrevente. Por tudo isto, e ainda por ter escrito literatura com minúscula, pedimos mais uma vez perdão.

terça-feira, fevereiro 07, 2006

BOÉCIO



Eu, que outrora escrevi poemas com uma paixão juvenil,
sou forçado, desgostoso, a compor cadências tristes.

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

LUGONES


Meus senhores, seja
A lua peremptória,
De esta dedicatória
Timbre, brasão e cunho.

ALGAZEL


Há cinco vantagens
no casamento:
a procriação,
a satisfação do desejo sexual,
cama e roupa lavada,
a companhia
e a auto-disciplina no ganha-pão.

SAFO


Deitaram-se lua

e Plêiades, em meio

a noite, o tempo em fuga,

e eu adormecendo só.