quinta-feira, dezembro 22, 2011

"Conto de Natal" - escrito pelo nosso colaborador João César das Neves

O nosso querido amigo João César das Neves, sempre com o seu humor brilhante, desarmante, acutilante e muitas mais palavras terminadas em ante, escreveu um pequeno conto natalício, que foi publicado na sua coluna do DN.
Por ser tão hilariante, vou publicá-lo na íntegra.
Abraço e boas festas, amigo João!

"Não percebo como é que consegues ser assim!" "Assim como?", respondeu André enquanto pousava o tabuleiro do almoço diante do Pedro, na mesa da cantina da empresa.

"És incrível! Tivestes uns bons cinco minutos a conversar com a velha da caixa como se nada estivesse a acontecer."

"Que mal tem conversar com a dona Adélia? O neto tem estado doente e ela fica contente por falar dele. Felizmente já está melhor. De que é que te queixas?"

"Esta empresa está a ir por água abaixo e tu tens cabeça para o neto da velha! Estamos a ser chamados, um a um, à administração para saber o que nos espera. Se nos reduzem o ordenado ficamos felizes, porque ainda o temos. Isto deixa-me maluco. E fico mais furioso ao ver que põem ali o Presépio, como se tudo estivesse bem. Bandidos!"

Os dois amigos comeram a sopa em silêncio alguns minutos, até que André disse: "Queres saber o segredo da minha calma? Queres saber como consigo não ficar desesperado? É que o meu Pai é dono disto!"

"O teu pai? Tás maluco. A empresa foi comprada por um fundo alemão que não tem nada a ver com a tua família. Não gozes!"

"Não estás a perceber. Não me estou a referir à empresa, nem falo do meu falecido pai. Estou a referir-me Àquele a quem digo todos os dias 'Paí Nosso', que é dono de tudo o que tenho e sou, de tudo o que vejo e existe no universo. Nada me preocupa porque Deus é dono da minha vida. A confiança em Deus é a melhor coisa da existência."

"Pode ser, mas isso não te livra de ires para a rua, porque a administração não deve rezar o Pai Nosso."

"Provavelmente, mas se isso acontecer, a vontade de Deus permanece e a minha confiança n'Ele não me deixará ter um segundo de medo ou zanga. Confesso que nem sempre tenho esta atitude e frequentemente me irrito e apavoro. Mas isso deve magoar muito a Nosso Senhor, porque é duvidar da Sua Providência e do carinho com que nos acompanha a cada momento."

Depois de um silêncio, continuou: "Sabes, esta crise tem me feito muito bem. Ao princípio assustou-me, mas um dia percebi que acima dela está Deus, que quer dar-nos o melhor mesmo assim. E desde que Lhe entreguei, mais uma vez, a minha vida senti uma liberdade e alegria profundas, que não dependem do que me acontecer. 'Tudo concorre para o bem dos que amam a Deus' (Rm 8, 28)."

"Quer dizer que se fores para a rua, e os teus filhos tiverem fome, ficas contente?"

"Se for para a rua perguntarei que aventura maravilhosa o Senhor prepara para mim. Se perder o que tenho direi 'Saí nu do ventre da minha mãe e nu a ele voltarei. O Senhor mo deu, o Senhor mo tirou; bendito seja o nome do Senhor! (...) Se recebemos os bens da mão de Deus, não aceitaremos também os males?' (Job 1, 21; 2, 10). Aliás é bastante provável que venham aí tempos bem difíceis. Mas se ao Seu Filho Deus deixou que nós O crucificássemos, tudo o que eu sofrer é pouco. 'Estou convencido de que nem a morte nem a vida,nem os anjos nem os principados, nem o presente nem o futuro, nem as potestades, nem a altura, nem o abismo, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus que está em Cristo Jesus, Senhor nosso' (Rm 8, 38-39). No fim ressuscitarei!"

"Devias dizer isso ao Matias. Ele, que se diz cristão, é o mais assustado e furioso de todos nós."

"Já falei muito com o Matias. Mas nunca lhe disse isto assim. Vou tentar. Mas quem me preocupa é o Ernesto."

"O Ernesto? Esse está óptimo. Vai ser promovido e anda na maior."

"Por isso mesmo. O pobre Ernesto só tem a carreira. Vive para o emprego e só depende disso. Já destruiu dois casamentos e está cada vez mais só. É o mais miserável de todos nós. Mas não sei como abordá-lo."

"O tipo é espantoso", riu Pedro. "Imagina que ontem, quando eu protestava por terem posto aquele Presépio hipócrita, respondeu que se deveria ter aproveitado para colocar lá publicidade. Imagina! Publicidade no Presépio! O tipo é incrível!"

"A sério? Ele disse isso? Ora aí está uma oportunidade para eu lhe falar."

"O quê! Vais falar-lhe da publicidade no Presépio?"

"Não, vou falar-lhe do burro do Presépio."

(João César das Neves)

quinta-feira, dezembro 15, 2011

The biggest losers

Chegou o Natal, época de festas, jantaradas e muita animação.
Mas o Natal representa outras coisas.
É altura de fazer balanços.
Separar o essencial do supérfluo.
E este ano, as coisas não estão fáceis.
Estamos em época de crise.
Não só monetária.
De valores.
Humanos.
E não só.
Para o Ângulo, este ano foi dramático.
Publicaram-se menos posts.
E mais importante:
perdemos leitores.
Comentadores.
Pessoas interessadas.
A culpa foi noss
a.
Admitimos.
Fizemos textos muito grandes
.
Muitos deles, sem interesse.
Não falámos da crise actual.
Ou de fenómenos importantíssimos.
Tais como:
A morte do Steve Jobs
A casa dos segredos
Etcetra
Não fomos proactivos.
Não investimos no facebook.
No twitter.
Não comentámos um pouco por todo o lado.
A nossa voz não se fez ouvir.
Falhámos.
E temos de dar o exemplo ao país.
Temos de fazer cortes.
Não estou a falar d
e cortes salariais.
Até porque trabalhamos de graça.
Estou a falar de cortes de pessoal.
Afinal, há quatro colaboradores.
E o resultado produzido é quase nulo.
Por isso, proponho mandar embora uma das mascotes do Ângulo.
Não digo colaboradores, digo mascotes, porque somos autênticas mascotes da LITERATURA.
Não merecemos o epíteto de colaboradores.
Muito menos de escritores.
Por isso, proponho que votem numa destas duas mascotes literárias.
A que receber mais votos, continuará por aqui.
A outra terá de emigrar.
Arranjar outra zona de comodidade.
E é isso.
Senhoras e senhoras,
Escolham entre estes dois:

A SAFOTTA























Ou o LEOPOLDINO?





















Você decide. Quem é o elo mais fraco?

segunda-feira, dezembro 05, 2011

As favas dos dentes caninos

Naquele dia, o chefe disse que eu tinha uma ignorância enciclopédica.

Não respondi. A minha face corou levemente e o dente canino do lado superior direito queixou-se de uma dor aguda.

No dia seguinte voltou à carga: “o senhor é sempre assim tão obtuso ou desenvolveu essas capacidades apenas quando começou a trabalhar connosco”?

A minha face voltou a corar e a dor no dente canino aumentou de intensidade. Decidi marcar consulta no dentista.

Deixei de conseguir mastigar para o lado direito da boca quando o chefe disse, depois de avaliar um trabalho que me deu uma semana inteira para completar: “não sei o que o faz tão burro, mas olhe que funciona”.

Até que me despediu, com as seguintes palavras: “vou-lhe fazer um teste psicotécnico de graça: o senhor pode ter muitas aptidões, mas nenhuma se enquadra nesta área de trabalho. O senhor é o elo mais fraco deste escritório. Adeus”!

Nessa noite, o dente canino superior do lado direito despediu-se da minha boca sem um queixume, enquanto comia um rebuçado de caramelo. Caiu pelo tubo digestivo e nunca mais o vi (terá ficado alojado nos intestinos?).

Os dentes caninos possuem uma forma semelhante a uma pá ou lança e têm por função perfurar e rasgar os alimentos.

O dentista esclareceu: “os problemas dentários afectam a sua saúde e a sua auto-estima. Não o quero assustar, mas o seu dente canino do lado superior esquerdo também não está lá muito seguro e o conserto é bastante caro”.

Confirmavam-se as minhas mais negras suspeitas. O dente canino do lado superior esquerdo ressentia-se do trabalho extra que vinha desenvolvendo desde o surgimento das dores do meu canino do lado direito. Depois, com a queda deste dente, sentia-me desconfortável a mastigar para o lado direito.

As dores no dente canino do lado esquerdo começaram a sentir-se depois da primeira entrevista de trabalho.

Eis as conclusões a que chegaram os entrevistadores:

. O senhor até apresenta um curriculum satisfatório;

. O senhor licenciou-se com boa média numa boa universidade;

. O senhor tem cinco diplomas completos de línguas estrangeiras e é um utilizador avançado em alguns itens de avaliação da compreensão oral, interacção oral e produção oral destas mesmas línguas;

. O senhor dispõe de disponibilidade imediata, não tem filhos nem família nem ambiciona ter nos próximos tempos, podendo dedicar-nos toda a máxima atenção, com alma e coração, uma vez que até mora a cinco minutos deste escritório;

. O senhor não regateia salários – aceita o que temos para lhe oferecer, seja qual for o valor;

. O senhor tem menos de trinta e cinco anos, por isso cumpre rés-vés a relação idade/experiência, que exige 10 anos mínimos de experiência laboral acumulados com juventude, com conhecimento de um mínimo de cinco línguas, boas aptidões e competências sociais e de organização. E acredite:

- Nós tivemos em conta o facto de o senhor possuir uma grande capacidade de negociação; aptidões adquiridas em contexto profissional e em formação específica; aptidões e competências técnicas e mais outras coisas de muita importância.

Todavia:

- Reparámos que lhe falta o dente canino do lado superior direito.

E a nossa psicóloga de serviço disse:

- O dente canino tem como função rasgar e perfurar (nomeadamente a carne).

Conclusão: Parece-nos que isto é sintomático e que lhe falta a garra, a força, a determinação para segurar com unhas e dentes (desculpe-nos a facilidade da expressão) que é exigível neste caso.

O nosso conselheiro de imagem disse:

- Quem não tem dente não é filho de boa gente;

- A imagem externa é essencial para o bom nome da empresa;

-Todos sabem que um belo sorriso é como um cartão de visitas: uma falha na apresentação prejudica o conjunto.

Conclusão nº2: apesar de o seu curriculum ser aliciante, o seu aspecto exterior prejudica a sua imagem e a imagem da empresa.

Quando muito, poderíamos admiti-lo como estagiário ou seja, sem remuneração.

Eu respondi:

- Não poderiam, pelo menos, pagar-me um novo dente?

Ao que eles retorquiram:

- Isto é que é a grande capacidade de negociação que o senhor diz possuir no item 10 do seu CV? Agora é que está chumbado na entrevista. Adeus!

O meu segundo dente canino superior despediu-se da boca sem um queixume. Desta vez, não foi necessária a ajuda de qualquer rebuçado de caramelo. Simplesmente, caiu pelo tubo digestivo e nunca mais o vi (terá ficado alojado nos intestinos?).

Pedi ajuda à família. Talvez me pagassem o conserto dos dentes.

Reuniu-se o conselho familiar, de urgência. Analisaram a minha biografia, o meu curriculum, as minhas relações amorosas e a minha contabilidade financeira.

Eis as conclusões a que chegou o conselho familiar:

. Vivi acima das minhas capacidades – nos últimos meses, desde o meu despedimento, tenho consumido mais do que produzo. Dentro da família, depois do primo Tomás, que é toxicodependente, sou o membro que possui o maior défice externo.

. O primo Tomás só possui 12 dentes, o que não o impede de ter um emprego estável como arrumador de automóveis.

. Como tal, e uma vez que ainda me restavam 30 dentes, teria de viver com eles, dentro das minhas possibilidade económicas, de preferência a comer alimentos menos sólidos e a sorrir bastante menos, caramba, com a crise económica, nem há vontade de rir, de preferência até deveria fazer um ar triste macambúzio, até aos dias de hoje as tristezas não pagavam dívidas, mas talvez os tempos mudem e assim até poderei pagar as dívidas com um pouco da minha tristeza.

Os dois dentes caninos inferiores seguiram o canto do triste fado dos outros, passado três ou quatro entrevistas profissionais. Os incisivos e os molares começaram a apodrecer. Os meus dentes transformaram-se em bandeiras a meia haste, emblemas dos pecadores e desempregados crónicos, um efeito simbólico, mas altamente dissuasor.

As pessoas na rua gritavam: “lá vem o mandrião com os dentes podres! Ganha vergonha!”

A revolta do estômago e dos intestinos teve início a partir do momento em que deixei de conseguir mastigar convenientemente a comida, por causa do desaparecimento dos dentes.

Emagreci várias dezenas de quilos, deixei de me conseguir levantar, de me mexer, as pernas e os braços começaram a ressentir-se da falta de mobilidade.

Reuniu-se o conselho de família, que criticou a forma ruinosa como lidei com toda a situação.

Perdi uma perna e um braço, mas ainda me restava a outra perna e o outro braço.

Tive de pedir ajuda aos meus pais, que me arranjaram uma cadeira de rodas e me ajudavam a deslocar de uma entrevista para a outra.

As pessoas na rua gritavam: “lá vem o mandrião que nem consegue andar e a família do mandrião que não se consegue governar!”

Os rumores do escândalo chegaram aos ouvidos dos chefes dos meus pais, que os chamaram à parte e concluíram:

. Os senhores até têm currículos satisfatórios;

. Trabalham bastante sem protestar;

. Não se importam que lhes cortemos os subsídios;

. Sempre com um sorriso no rosto.

Todavia;

. O vosso filho é um pária;

. Não tem dentes;

. É magro;

. Cadavérico;

. Com um ar triste, apesar de a tristeza não pagar dívidas;

. Vive acima das suas possibilidades – gasta mais do que ganha;

. Nem sequer tem as duas pernas e os dois braços.

Concluindo:

. Apesar de vocês até trabalharem bem, o vosso filho representa, sem dúvida, um encargo, uma preocupação. Mais cedo ou mais tarde, começarão a faltar ao trabalho, a produzir menos…

. A sorrir menos!

. E os investidores? Vão ficar preocupados, ao verem a imagem da preocupação estampada no rosto dos funcionários da empresa!

- A imagem externa é essencial para o bom nome da empresa;

-Todos sabem que um belo sorriso é como um cartão de visitas: uma falha na apresentação prejudica o conjunto.

Conclusão nº2: apesar de serem uns funcionários modelo, o vosso familiar prejudica a vossa imagem e a imagem da empresa.

. Por isso, terão de ir embora. Vocês são o elo mais fraco. Adeus!

Os dentes incisivos da minha mãe começaram a doer-lhe um pouco.

. O meu pai sentiu dores de estômago.

. Os meus irmãos sentiram formigueiros na raiz dos cabelos.

Seguiram-se os despedimentos em massa de metade dos membros da família, mais a queda de membros, falência de órgãos.

Reuniu-se o conselho familiar, de urgência.

Já não era possível salvarem-me a perna e o braço que restavam, pois tinham entrado em rápida deterioração nos últimos dias, perante o olhar impiedoso e desconfiado dos membros da Sociedade Civil. O conselho familiar reconheceu que me encontrava à beira do colapso. Exigiam-se medidas imediatas de salvação.

Resolveram pagar o implante dos dentes caninos. Dos quatro. Levaram-me de ambulância para o dentista. Os implantes dentários foram um sucesso.

Quando acordei, passaram-me um espelho pela face, para que visse o resultado. Gostei. Os dentes caninos eram brancos, bonito, vistosos.

Esbocei um sorriso vitorioso.

O conselho familiar deu-me as últimas recomendações antes da entrevista:

. Não te esqueças de sorrir muito. Ficas com um ar confiante.

. Todos sabem que um belo sorriso é como um cartão de visitas: uma falha na apresentação prejudica o conjunto.

. E tens uns belos dentes caninos.

. O dente canino tem como função rasgar e perfurar (nomeadamente a carne).

. Não te faltam a garra, a força, a determinação e o instinto de sobrevivência necessários para segurar com unhas e dentes todas as oportunidades que te sejam dadas.

. E assim ajudarás o país.