sexta-feira, setembro 23, 2011

Relato de uma não-guerra

Por ocasião do recente óbito da Condessa do Vale da Amurada, emérita activista anti aborto, proactivamente activa na defesa de todos os valores tradicionais, repetiram-se na imprensa generalista e nos fóruns de opinião as palavras do costume:

“Na luta contra esse temível e implacável inimigo sem rosto, a Condessa mostrou sempre uma enorme força, dando provas de um elevado carácter e de uma imensa coragem”

“ Com grande dignidade empreendeu uma guerra feroz contra aquele inimigo impiedoso, sempre determinada a lutar até ao fim e sem nunca se entregar, com uma força que é Exemplo para Todos Nós”

Etcetra.

Na hora em que a Condessa se entregou e se deitou no caixão, voluntariosamente sofrendo a morte e partindo, dizendo adeus aos seus discípulos, milhares de personalidades dos mais variados quadrantes políticos e sociais juntaram-se em uníssono para prestar homenagem a esse grande e corajoso vulto maior da realidade nacional.

Apareceram, postumamente, os diários de guerra contra o inimigo sem rosto, escritos pela condessa em momentos de sofrimento atroz, mas sempre pautados por um elevado dever de cidadania, abnegação e crença num futuro sorridente para todos nós. Todos a aplaudiram de pé.

Joaquim Silva Andrade não teve tanta sorte. Quando o inimigo sem rosto bateu à sua porta, encontrava-se a dormir o sono dos justos, depois de uma noite de copos.

Talvez por isso, não deu logo conta do sucedido.

Joaquim Silva Andrade não se ergueu feroz, decidido, pronto para a corajosa luta, nem deu provas de um carácter forte, exemplo proactivo de uma cidadania exemplar.

Pelo contrário, bocejou e deu mais uma volta na cama, depois de puxar um pouco os lençóis para cima de si, caramba, o frio de Outubro começava a fazer-se sentir.

O inimigo feroz não deu provas de vencido e disse, depois de bater três vezes: “abram a porta!”

Terá Joaquim Silva Andrade despertado do seu sono letárgico e ter-se-á dado finalmente conta da funesta situação?

(Será agora, querido Joaquim, que te erguerás e que lutarás contra esse inimigo cruel com todas as forças que te restarem nesse miserável corpo terreno, para te sacrificares por todos nós com o teu exemplo de coragem e abnegação?)

Não. Num inesperado volte-face, Joaquim voltou de facto a face, mas para o lado da parede, ficou deitado na posição fetal e continuou a dormir o sono dos justos.

O inimigo funesto não desistiu, rodou imundo e grosso e de novo bateu três vezes e três vezes disse a gritar: “abram a porta!”

Joaquim Silva Andrade despertou do seu sono letárgico e entre dentes disse a rosnar:

“Será que não me deixam em paz, por nada deste mundo?”

Estava frio, não lhe apetecia sair da cama, por isso, ainda meio embriagado, três vezes as mãos ergueu e cheio de frio tremeu e disse: “espere mais um segundo!”

Joaquim Silva Andrade levantou-se pé ante pé e foi abrir a porta ao inimigo sem rosto.

PEQUENO DIÁLOGO INSERIDO DENTRO DO CONTO

Por motivos de comodidade vou passar para um registo teatral.

Por isso, apresentarei de seguida as

PERSONAGENS

Joaquim Silva Andrade: indivíduo comum de meia-idade

Inimigo implacável: aquele do qual nunca se pronunciará o nome em voz alta

A acção decorre no vão das escadas em frente à fracção F, pertencente a um bloco de apartamentos habitacionais comuns, de um bairro da semi-periferia de um grande centro urbano.

Joaquim (abrindo a porta, depois de bocejar) – pronto, já abri a porta, escusa de se exaltar!

Inimigo – eu não me estava a exaltar!

Joaquim – não estava a exaltar-se? Então começou a bater à maluca, deve ter acordado todos os meus vizinhos, o João do Segundo tem um sono leve e a Dona Maria…

Inimigo implacável – queira desculpar-me, mas não creio que tenha batido demasiadas vezes. Ao princípio, dei só uns toques leves com a ponta dos dedos, depois como vi que não abria a porta…

Joaquim – toques leves? Parecia o King kong com cio, a rebentar com as portas do Empire State Building!

Inimigo implacável – Eu? Isso foi só agora, estou a bater há séculos, mas olhe que isto também é para o seu bem, quanto mais depressa me atender, melhor para si!

Joaquim – melhor para mim? Melhor para mim teria sido ficar na caminha, com este frio ainda apanho alguma constipação…

Inimigo implacável (num tom grave, funesto) – meu caro, se fosse a si, não me preocupava com uma simples constipação…

Joaquim – não me preocupava com uma constipação? Sabe o que está a dizer? Ainda o ano passado estive uma semana de cama, a espirrar por todos os lados, com febre, não conseguia sequer comer…

Inimigo implacável – vá, deixe lá de fazer queixinhas. Quanto mais tempo ficar a lamuriar-se, pior para si. Toda a gente me diz que bato à porta na pior altura, no momento exacto em que estão a endireitar a vida, etc etc. Por isso, vamos passar ao que interessa: escolha as armas!

Joaquim (confundido e depois de mais um bocejo) – escolho as armas? Que armas?

Inimigo implacável – ora essa! As armas para usar na guerra, no combate feroz!

Joaquim – mas nós estamos em guerra? De qualquer modo, estou na reserva territorial e ando à procura de emprego, não posso perder tempo a servir o país e…

Inimigo implacável – mas quem é que lhe disse que estávamos em guerra? O senhor Joaquim é que está em guerra!

Joaquim – eu é que estou em guerra?

Inimigo implacável – ah, pois é bebé!

Joaquim – e eu estou em guerra contra quem?

Inimigo implacável – Que raio de pergunta! Contra mim!

Joaquim (depois de olhar atentamente para o inimigo impiedoso, medindo-o de alto a baixo) – eu estou em guerra contra si? Porque carga de água? Fiz-lhe algum mal? Nem o conheço! Espere lá…foi contra o carro do senhor que eu mandei aquele toque ontem à noite? Olhe que foi sem querer e eu ia avisar…

Inimigo implacável – não é nada disso! Eu não tenho carro e o senhor Joaquim não fez nada contra mim, em particular…

Joaquim – então se não lhe fiz nada de mal em particular, porque é que está em guerra contra mim?

Inimigo implacável – que pergunta difícil… sei lá….é o destino?

Joaquim – o destino? Que raio de resposta é essa? Eu não acredito no destino!

Inimigo implacável – não é bem o destino…quer dizer, o destino é construído por cada um de nós, de certa forma… a culpa acaba por ser sua, Joaquim…

Joaquim – ah é? Porquê? Nunca fiz mal a ninguém, estava aqui sossegadinho, deitado na minha cama, depois de ter comigo e bebido muito bem ontem à noite, com uma grande companhia…

Inimigo implacável – pois, o problema é esse, Joaquim…o meu amigo Joaquim não tem hábitos saudáveis e coloca-se em situações de risco para a saúde…bebe muito, como porcarias com sal, não pratica desporto, tem um estilo de vida sedentário, tem pensamentos mórbidos e pouco ambiciosos…depois já se sabe, mentes sãs, corpos sãos…

Joaquim – já percebi…o senhor pertence a um departamento de recrutamento de algum desses programas novos de televisão sobre como melhorar a vida e mudar de hábitos e vem convidar-me para participar…em princípio, eu recusaria, mas já agora quero saber o prémio, quero saber quanto ganho com os direitos de imagem…

Inimigo implacável – amigo Joaquim, está a ver mal as coisas. Isto não é nenhum concurso, quando muito, se vencer esta guerra (que aviso desde já, será muito dura e deixar-lhe-á mazelas para sempre, na hipótese remota de poder sobreviver), o senhor Joaquim terá de alterar por completo os seus hábitos, tem de deixar de beber, fumar, comer quase todo o tipo de coisas, fazer exercício moderado, viver moderadamente sem grandes sobressaltos e acima de tudo, terá de mudar a sua atitude negativa, tem de ver o mundo com uma melhor perspectiva, olhar para cada novo dia como se fosse uma dádiva e…

Joaquim – hum…pois, estou a ver que se ganhar esta guerra não terei direito a um grande prémio, há que convir!

Inimigo implacável – não é grande prémio? Eu estou a oferecer-lhe a possibilidade de sobreviver, caso aceite com bravura e dignidade a sua situação actual, até lhe posso dar a escolher as armas com que pode lutar…

Joaquim – fantástico! Posso escolher as armas! E em que consistem essas armas?

Inimigo implacável (pegando num dossier e começando a folheá-lo atentamente) – as armas…muito bem! Agora é que começámos a chegar à parte interessante…ora bem, caro Joaquim, tenho a dizer-lhe que a sua situação não é brilhante e que parte para a guerra com uma desvantagem considerável…no entanto, tem várias gamas de armas à sua escolha, pode optar pela ultra-incisão intra-localizada, com uma taxa de sucesso de 10%, probabilidade de grave sofrimento de 95%, de um modo prolongado, nunca inferior a 6 meses, com uma taxa de invalidez permanente de 100%, mas com custos bastante interessantes… podemos também tentar fazer uma guerra à base de químicos agressivos, com a colocação de células de beduínos esterilizados por meio de métodos ultra…

Joaquim (interrompendo) – chega! O senhor está a pregar-me uma valentíssima seca!

Inimigo implacável – a pregar-lhe uma valentíssima seca! Estamos a falar da sua sobrevivência, caro Joaquim!

Joaquim – para que é que eu quero sobreviver, se a condição sine qua non para que tal possa acontecer passe por enfiar um beduíno esterilizado pelo meu corpo dentro?

Inimigo implacável – não é um beduíno inteiro, são células estaminais criadas laboratorialmente…

Joaquim – seja! De todo o modo, o senhor não me convence! Não me apetece entrar em guerra hoje, ainda por cima está um belo sol, vou aproveitar para beber uma cerveja na esplanada.

Inimigo implacável – o senhor está parvo? Percebe o que está para aí a dizer? Tem noção do absurdo que está a dizer, percebe a insensatez desse seu comportamento mesquinho e abominável?

Joaquim – percebo perfeitamente! Está aí a falar-me de umas guerras parvas, feitas por métodos cruéis e absurdos, para quê? Além disso, não tenho nada contra si, não me apetece estar a gastar forças numa guerra na qual não acredito!

Inimigo implacável – não é uma questão de acreditar! É o seu futuro que está em jogo, amigo Joaquim!

Joaquim – está a ver? Até me chama de amigo! E não me interessa esse futuro.

Inimigo implacável – não seja infantil, Joaquim, está a meter a cabeça debaixo da areia. Enfrente-me, bolas! E que a sua luta seja um exemplo para todos nós!

Joaquim – quero lá saber de exemplos! Ainda se a guerra fosse com armas mais giras, podíamos divertir-nos um pouco…não dá para fazer a guerra à base de quizes musicais, onde criaríamos as playlists mais absurdas possíveis…olhe, que tal criar uma lista das 10 melhores músicas sobre guerra? Isso é que seria interessante!

Inimigo implacável – oh, meu Deus…Joaquim, só tenho estas modalidades de luta! Não seja cobarde, não seja um rato, dê um exemplo, por uma vez e transforme essa sua vida inútil e sem significado…

Joaquim – se é inútil e sem significado neste momento, que significado poderá adquirir com uma guerra desinteressante e com resultados catastróficos?

Inimigo implacável – obtenha a absolvição da sociedade! E que a sua luta o redima de tudo o que não fez até hoje!

Joaquim – não estou interessado na remissão dos meus pecados! Vou dormir mais um bocado! Adeus!

Joaquim fecha a porta, volta para dentro e torna a deitar-se. O inimigo continua a bater À porta, mas não obtém resposta

Inimigo implacável – Joaquim! Vamos lá! Isto até pode ser divertido! Olhe, podemos fazer o quiz musical enquanto lhe enfio pelo rabo acima os bocados esterilizados do beduíno! Até pode transformar-se num melhor exemplo para os outros! Já imagino a frase: “Joaquim continua a divertir-se, apesar de estar a perder a terrível guerra! Joaquim, abra-me essa porta! Lute, Joaquim! Lute! Torne-se um de nós, mente sã, corpo são! É pelo nosso bem-estar! Joaquim! A sua sobrevivência não está nas suas mãos! É um dever entrar na guerra! Não é patriótico, Joaquim? Joaquim!

Epílogo:

Não existem quaisquer registos de diários escritos por Joaquim na sua luta contra o inimigo sem rosto. Joaquim nunca demonstrou possuir um elevado dever de cidadania, abnegação e crença num futuro melhor. Por isso, ninguém o aplaudiu de pé.