sexta-feira, junho 28, 2013

Jornada de Trabalho



Às 9.35, os primeiros funcionários começaram a sair do edifício, em passo lento, tímido hesitante. Encostaram-se ao muro e esperaram, olhos fixos no chão, expectantes.
Depois, apareceu um grupo mais entusiasta, sorrisos nos lábios, passo mais vigoroso, desafiante.
Colocaram-se à frente dos funcionários que já lá estavam e olharam para o céu. Estava um belo dia para se fazer uma greve.
Depois chegaram os outros, empunhando cartazes, megafones, entoando palavras de ordem, canções alegres, com letras apelando à intervenção.
A Cátia segurava um cartaz, que dizia: “fora o trabalho precário”, o Pedro gritava “lutaremos pelo contrato de trabalho”, a Vera cantarolava uma melodia infantil e dizia que queria ter “o direito a descanso”.
O Dr. Carlos, lá em cima, olhava pela janela, pensativo, enquanto segurava o computador portátil e fazia uns gráficos.
Os funcionários continuaram a sair do edifício, todos com cartazes na mão. Alguns começaram a gritar, continuavam a debitar palavras de ordem, “seguro de trabalho”, “remuneração de horas extra”, “vamos acabar com os esforços adicionais de trabalho ao sábado”.
Às 9.40 já estavam todos os manifestantes na rua.
Depois foi tudo muito rápido. Os Pitbulls raivosos saíram de uma porta escondida, que estava incrustada junto a um vaso de plantas e atiraram-se às pernas do grupo dos primeiros funcionários, aqueles que continuavam encostados aos muros.
Gritos. “Eu não estava a fazer nada”, “Juro que fui aqui fora só para fumar um cigarro”, “eu não estava a falar com o meu colega do lado, muito menos a manifestar-me”.
O grupo dos segundos funcionários foi agredido à bastonada por solícitos membros do corpo de intervenção da polícia de choque, que surgiu vindo do nada, de dentro de várias carrinhas que estavam escondidas, junto aos arbustos do parque de estacionamento. “Vamos a dispersar, é o último aviso, vamos a dispersar”.
O grupo dos funcionários que empunhava cartazes foi agredido por um enorme grupo de funcionários que saiu de todos os lados – uns saíram de dentro da porta escondida, onde, instantes antes, tinham aparecido os Pitbulls raivosos, ainda mais raivosos que os Pitbulls.
Outros, apareceram vindos dos arbustos, ao pé dos elementos do corpo de intervenção da polícia de choque, também com bastões, extintores, pedras e botas de biqueira de aço, já não diziam “vamos a dispersar”, só batiam, indiscriminadamente.
Outros, apareceram de dentro do edifício, mas a maioria estava entre os membros da manifestação. Eram os mais zangados. “Então, seu filho da puta, queres pôr em causa o meu trabalho? Toma lá, seu cabrão, para aprenderes a não te armares em reivindicativo!”.
De nada valiam os gritos desesperados dos manifestantes: “eu não estou a colocar o teu trabalho em causa, estou a lutar por ti”
E os outros redobravam a violência: “estás a lutar por mim? Para quê? Eu não estou descontente! Queres mostrar descontentamento? Vai-te embora e deixa-nos em paz!”.
Sangue jorrava pelo chão. Dentes partidos, roupas em farrapos, cartazes partidos.
Lá em cima, o Dr. Carlos, pensativo, continuava a fazer gráficos no computador portátil.
Até que reinou o silêncio. Os manifestantes gritaram clemência, mostraram uma bandeira branca improvisada, feita do lenço de um dos manifestantes, já manchado de sangue.
9.45
Os funcionários recolheram ordeiramente ao edifício. Os que coxeavam, ajudavam aqueles que não conseguiam andar.
A Cátia inspirava maiores cuidados. Continuava estatelada n chão. O Rui, que tinha o curso de primeiros socorros, tomou-lhe o pulso. Os outros olharam. O Rui fez um aceno com o dedo, indicando que estava tudo bem.
9.55
Todos os funcionários já se encontravam sentados no seu lugar.
10.00
O Dr. Carlos convocou todos para a reunião.
10.05
O Dr. Carlos começou a falar. “Meus caros, eram 9.35 quando os primeiros funcionários começaram a sair, 9.40 quando chegaram todos à rua, às 9.45 estava tudo dominado, às 9.55, voltaram todos ao local de trabalho.
Ou seja, passaram 20 minutos desde o início da manifestação até ao regresso à normalidade. Não está nada mal, meus caros!”
Alguns funcionários entreolharam-se, um tímido sorriso nos lábios.
Mas o Dr. Carlos continuava a fazer um ar severo.
“Repito! Não está nada mal. Vejam os gráficos!”
O Dr. Carlos começou a apontar para uns gráficos feitos no Power Point.
“No último simulacro de manifestação, passaram agora dois meses, vocês demoraram 40 minutos, ouviram bem, quarenta minutos desde o início da manifestação até à reposição absoluta da normalidade. Agora, conseguiram reduzir para metade!”
Os sorrisos ficaram mais abertos. Alguns atreviam-se já a cantar o hino da Operativa.
O Dr. Carlos continuou: “há seis meses, vocês demoravam uma hora!
Um funcionário desdentado, deitando grandes quantidades de sangue pela boca, disse: “viva a Operativa”.
Gritaram todos: “Viva”. Até a Cátia, que já tinha sido reanimada.
O Dr. Carlos meteu água na fervura: “meus caros, vamos a ter calma! O resultado não é mau, mas podia ser muito melhor. Vejam este gráfico – caminhamos para o bom, mas para chegarmos ao bom ainda falta um longo caminho. Mas os chefes estão atentos ao nosso trabalho. Sabem que nos andamos a esforçar. Quero o próximo simulacro de manifestação resolvido em um minuto e meio, estão a ouvir?
Todos acenaram, afirmativamente, e gritaram: “viva a chefia”!
10.10
O Dr. Carlos colocou um ponto final na reunião. “Vá, vamos voltar ao trabalho, para mostrarmos do que somos capazes. Isto durou um bocadinho mais do que devia, por isso, vamos ter de fazer descontos de tempo. Hoje ninguém sai antes das oito da noite e vamos fazer um treino adicional no sábado, um pequeno task force. Podem ir. Cátia, está bem?”
A Cátia não conseguia falar. A cara estava espatifada, o maxilar torto, não restava nenhum dente. E a respiração, sibilante…O Rui confirmou que era apenas um pulmão perfurado por três costelas. Estava tudo bem.
10.11
Os funcionários sentaram-se todos ordeiramente.
O dia passou-se calmamente. Os funcionários assobiavam o hino da Operativa em ambiente de alegre camaradagem. Outros mostravam fotos: “olha, isto foi quando te dei aquela biqueirada nos tomates, foi brutal!”
Às 19.30 deu-se a surpresa do dia.
Com um sorriso, o Dr. Carlos saiu de dentro do seu gabinete, com um pastel de nata na mão.
“Equipa, como agradecimento pelo vosso esforço, comprei esta prenda, que vamos oferecer à valente Cátia! Toma lá, Cátia!”
A Cátia estava deitada em cima da mesa, a escrever no computador, com o único dedo que não se encontrava partido.
“Vá, come o pastel, Cátia!”
A Cátia tentou pegar no pastel, com o dedo, mas deixou-o cair ao chão.
O Dr. Carlos apanhou o pastel.
“Come o pastel, Cátia!”
O Dr. Carlos aproximou o pastel daquilo que restava da cara da Cátia, o sangue pisado alastrara-se pela face, tornava-se difícil distinguir o que quer que fosse.
“Come o pastel, Cátia!”
Lágrimas de esforço desciam-lhe pelos olhos, a Cátia bem queria comer o pastel, para bem da equipa, mas não lhe restava boca, dentes, maxilares…
Inadvertidamente, o Dr. Carlos aproximou o pastel do nariz de Cátia.
Com um esforço sobre-humano, a Cátia, mexia o nariz, tentando partir bocados pequenos do pastel, para o ir enfiando pela cana do nariz abaixo.
Aos poucos, foi conseguindo. Pedaço a pedaço, o pastel foi todo sorvido pelo nariz da Cátia.
A cada bocadinho minúsculo que desaparecia, dizia a equipa em coro:
“Come o pastel, Cátia!”
A tarefa durou até à meia-noite. O Dr. Carlos tinha afazeres profissionais e foi-se embora, sendo substituído pelo subchefe.
O subchefe saiu pouco depois e foi substituída pela assistente.
“Come o pastel, Cátia”.
Quando chegou ao último pedaço, já todos dançavam, em alegre ambiente de genuína fraternidade, compaixão.
Cantaram, entoando o ritmo do hino da operativa:
“A Cátia é boa companheira….”