quinta-feira, outubro 28, 2010

Um Dia Normal de Trabalho na Função Pública

Disse-me o Romualdo:
Foi assim: ontem apareceu, lá no Edifício, o José Alegre e Silva, deves saber de quem se trata, é o principal arguido daquele processo das “Mãos de Tesoura Sujas”, aquele sucateiro que também é Presidente de Câmara.

Ora, o José Alegre e Silva, o sucateiro, Presidente de Câmara, e que também é Magistrado, apareceu-me lá no Edifício, e perguntou-me o sucateiro José Alegre e Silva, aquele que é Magistrado, Presidente de Câmara e Presidente de uma Fundação de Interesse Público, se eu não estaria interessado em dar um sumiço no dossier das “Mãos de Tesoura Sujas”, fazê-lo desaparecer da vista de todos, porque, como sabes, longe da vista, longe do coração, e o José Alegre e Silva, sucateiro, Magistrado, e Presidente de Fundação, também é dono de um Hospital, mas a idade já não lhe perdoa os esforços, e aquele coração está a dar as últimas, já não consegue sobreviver a grandes apertos.

Propôs-me pagar 300 mil euros, limpos, livres de impostos e retenções na fonte, em troca da amputação das Mão de Tesoura Sujas, mas eu mandei-o embora, indignado, sou um gajo honesto, porra, fechei-lhe a porta na cara, e pus-me a trabalhar com afinco naquele maldito Processo, com tanto afinco que resolvi fazer horas extraordinárias, ou seja, continuei a trabalhar para lá das 4 horas da tarde, que é aquele momento em que todos os meus colegas trocam mensagens no Facebook, e se preparam para ir para casa.

Às 5 da tarde já só restava eu no Edifício, fiquei cheio de fome e fui buscar um iogurte líquido, daqueles com sabor a chili, banana, e cocktail de camarão.
O problema é que não me entendo com a abertura fácil daquelas tampas, e fiz tanta força para abrir aquilo, que a tampa da embalagem acabou, realmente, por abrir, mas o iogurte saiu todo, num violento jacto, directamente para cima do dossier das mãos sujas.

Tentei dar um jeito naquela confusão, fui à casa de banho, abri as torneiras do lavatório, e molhei vários bocados de papel higiénico, para tentar limpar o dossier, mas o papel higiénico colou-se ao iogurte.

Depois, tentei arrancar o papel higiénico, mas fiz essa operação com tanto vigor, que quando o papel higiénico saiu, de facto, de cima do dossier das “Mãos de Tesoura Sujas”, levou com ele, atrás, metade das folhas, incluindo aquelas onde constava toda a Investigação Criminal, a tal que demorou cinco anos a ser realizada, e que incriminava o sucateiro José Alegre e Silva, Engenheiro de profissão, Presidente de Hospital, e de uma Fundação, e que neste momento passa mal com tanta aflição no coração.

Fiquei em choque, e um tanto ou quanto nervoso. Ainda pensei em dizer ao Chefe, como desculpa: a culpa foi do gato, ele é que derrubou o Iogurte.
Mas depois lembrei-me que não havia gatos no Edifício.

Irritei-me, e atirei, com toda a minha força, o rádio ao chão, aquele rádio que todos os nossos colegas ligam, a todas as horas do dia, para meter na música do waka waka, ou do wegue wegue, ou naquela do cantor dos Pólo Norte, que pede que lhe dêem um abraço.

Restava-me, apenas, uma solução: telefonei ao José Alegre e Silva, que se prontificou a aparecer, o mais depressa possível, no Edifício. Demoraria cerca de meia hora, era só o tempo de fazer a sua rubrica de Comentários Políticos na Televisão.

Pedi-lhe para que fingisse que houvera um assalto. Por isso, disse-lhe para roubar vários Processos – seria demasiado suspeito que desaparecesse, apenas, o “Mãos de Tesoura Sujas”.
Fui para casa, a tempo de ver o resumo diário do programa da Casa dos Segredos, que passa na televisão.

Daí a pouco, liga-me o José Alegre e Silva, e diz-me que deu sumiço ao “Mãos de Tesoura Sujas”, e a quase todos os outros Processos que se encontravam no Edifício.
Mas acrescentou o José Alegre e Silva, sucateiro, Presidente de Clubes, Fundações e Hospitais, Comentador, e insigne benemérito da Sociedade Civil:
“Não posso deixar de dizer que há uma inundação no Edifício. Alguém se esqueceu de fechar as torneiras do lavatório da casa de banho, a água transbordou, e alagou todas as salas”.

Obviamente, tinha sido eu, com aquelas pressas, e com a mania de consertar tudo da pior forma possível, a abrir a torneira, quando tentei limpar o dossier das mãos de tesoura sujas com papel higiénico, e com água.

Acrescentou o José Alegre e Silva, o tal que é sucateiro:
“Não posso deixar de dizer que há um incêndio no Edifício, provocado por um curto-circuito, que teve origem na queda de um rádio portátil. E, por estranho que pareça, no meio daquele terrível incêndio, e daquela inundação, o rádio ainda tocava o waka waka”.

Obviamente, tinha sido eu, com aquelas fúrias ridículas, e com a mania de desconsertar tudo da pior forma possível, a atirar o rádio ao chão, quando me irritei, já nem me lembro bem porquê.

O Edifício estava irremediavelmente destruído. Ainda pensei em dizer ao Chefe, como desculpa: a culpa foi do gato, ele é que partiu tudo, quando ia atrás de uma mosca.
Mas depois lembrei-me que não havia gatos no Edifício.

Pedi ao José Alegre e Silva, já que ele é sucateiro, e empreiteiro, que dinamitasse o que restava do Edifício, assim, ainda poderiam pensar que se tinha tratado de um sismo ultra localizado, que destruíra apenas a Sede da Direcção de Finanças.

E foi assim. Agora, já sabes porque é que metade da cidade está destruída. Eu e o José Alegre e Silva chegámos à conclusão de que seria muito suspeito desaparecer, apenas, o nosso Edifício, e a investigação seguiria, provavelmente, o rasto do caso das “Mãos de Tesoura Sujas”.

“Que raio de história”, respondi ao Romualdo. Mas até foi bom ter acontecido isto. Eu estava às voltas com um Processo, e não estava a conseguir concluir uma Contestação. E foi bom para ti, Romualdo”.

“Porque é que foi bom para mim?”, perguntou-me o Romualdo.
“Ora, sempre ganhaste os 300 mil euros. Afinal, deste sumiço ao Processo Mãos Sujas”.

E disse-me o Romualdo:
“Estás parvo, Lugones? Eu sou um gajo honesto, porra! Achas que ia aceitar aquele dinheiro das Mãos de Tesoura Sujas?”
“Desculpa, pá, tens razão”, respondi-lhe. “Olha, vou ali ao balcão pedir o pequeno-almoço. O que vais tomar?”

Disse-me o Romualdo:
“Pode ser um iogurte líquido, daqueles com sabor a chili, banana, e cocktail de camarão.”