terça-feira, novembro 22, 2011

Conselhos úteis para uma boa higiene pessoal

Depois da publicação do meu conto sobre um colchão de memória antropomórfico, recebi centenas de mensagens, incentivando-me a continuar a fazer longos e esquisitos contos sobre objectos do quotidiano que falem e opinem sobre todo o tipo de assuntos.

Recebi uma simpática oferta do IKEA, pedindo-me para escrever uma telenovela cujos personagens fossem exclusivamente objectos que se encontrassem à venda nas suas lojas – haveria, por exemplo, um romance entre um tapete de cozinha e um piaçaba ou o candeeiro do corredor assassinaria uma estante de escritório durante uma crise de ciúmes, depois de a apanhar em amena cavaqueira com uma cadeira giratória.

Diz-se que a TVI apoiou a ideia e teria até havido alguns castings promissores. Segundo um director de castings, 12 cadeiras giratórias tinham um desempenho dramático bem melhor que a Diana Chaves.

Mas eu não gosto de aceder a pedidos de fãs. Sou um enfant terrible da escrita e gosto de fugir às expectativas. O meu recente sucesso comercial não me subiu à cabeça. Prometo não me tornar previsível. Por isso, vou fazer um texto completamente diferente, uma coisa prosaica, realista e com os pés bem assentes na terra. Aqui vai:


CONSELHOS PARA TOMAR BANHO NA CASA DA MIÚDA

Eis um tema fracturante e bem actual – o que se deve fazer quando tomamos banho em casa da miúda e não levamos shampoo, sabonete, pasta de dentes e essas tretas todas da higiene pessoal.

Ora bem, qual é a primeira coisa que fazemos depois de acordarmos na cama da miúda, num Domingo de manhã, depois de uma noite de copos? Vamos à casa de banho, pois claro, fazer necessidades, daquelas que implicam sentarmo-nos na sanita. E aparece aqui a primeira contrariedade: mal nos sentamos, reparamos, com desagrado, que não existe qualquer jornal, revista ou livro de filosofia ao dispor. Porquê? Porque as miúdas não lêem, pelo menos no sítio apropriado para ler, que é a casa de banho.

Mas um homem precisa de concentração para fazer um bom trabalho. Por isso, a pressa é a inimiga da perfeição. Devemos estar sentados, relaxados... E se não há revista, qual é a solução? A solução é pensar num tema que nos relaxe a mente, mas que mantenha o cérebro desperto para a tarefa que o corpo está a realizar.

Por isso, aconselho o caro leitor a ocupar a mente com coisas importantes, como a táctica do Sporting para o próximo jogo da Superliga. Será que Domingos deve apostar em Carrillo no onze inicial, possibilitando assim ao Sporting a criação de oportunidades logo nos minutos iniciais de jogo, graças à imprevisibilidade deste jovem extremo? Ou deve Domingos guardá-lo para a 2ª parte, num momento em que seja necessário meter “a carne toda no grelhador”?

Do mesmo modo, será mais sensato lançar de início André Santos, garantindo uma maior coesão defensiva ao meio campo ou é melhor meter logo o tridente mais fantasista composto por Schaars-Elias-Matias?

E a defesa? Será que o Rodriguez recupera e justifica o investimento feito em si?

Com todos estes pensamentos em mente, o trabalho já está feito. Assim, puxamos o autoclismo e estamos prontos para o

DUCHE

Ligamos a água bem quente e deixamo-nos embalar com todo aquele vapor durante, pelo menos, vinte minutos, até chegamos a um estado próximo do transe. Um bom conselho para percebermos se já chegámos a esse estado: ver se os dedos das mãos já se encontram suficientemente encarquilhados e enrugados, como os do eleitorado do CDS.

Depois, começamos a pensar na fase seguinte do banho, mas sempre com um pensamento importante: NUNCA se deve desligar a água em momento algum do banho – isso estraga a concentração e a boa disposição. Depois, apanhamos frio e quando voltamos a ligar a água, esta demora alguns segundos a voltar à temperatura ideal. Com estas ideias bem assentes na cabeça, passamos à seguinte fase do banho, a fase de

COLOCAR O SHAMPOO NO CABELO

Tal como expliquei aqui atrás, o homem não leva os seus produtos de higiene para a casa da miúda. Por isso, vai ter de contar com a prata da casa. E aí surge a grande contrariedade: no momento em que o homem está para pegar no frasco do shampoo, percebe que existem cerca de 50 frascos disponíveis. Por isso, terá de

LER O RÓTULO DO SHAMPOO

Chegamos à fase do horror absoluto. O homem estava à espera de encontrar dois frascos – um teria a seguinte inscrição: “gel de banho” e o outro diria, simplesmente: “shampoo”.

Mas não. Os frascos apresentam verdadeiros tratados linguísticos do mais obscuro que se possa imaginar. Eis o que diz o primeiro frasco:

Reparador celular – tratamento reparador celular.

O que é esta merda? Estamos em alguma aula de Técnicas Laboratoriais de Biologia e temos de olhar para o microscópio e meter um produto qualquer na pipeta, para ver o que faz às células microscópicas? O que é isso do tratamento celular?

Passemos ao frasco seguinte:

Lumino Contrast – Nutriceride – Shampoo brilho para cabelos com madeixas.

Já avançámos um pouco. Aparentemente, trata-se de um Shampoo. Mas provoca brilho? Que tipo de brilho? Uma coisa fluorescente? E o que é isso do cabelos com madeixas? Qual a definição? Eu tenho alguns caracóis no cabelo, que se metem à frente dos olhos. Será que são madeixas? E será que eu fico com o cabelo como o do Marco Paulo nos anos 80, caso experimente esse frasco?

O melhor é ver o que há mais por aí. Já me sinto como a Alice no País das Maravilhas, quando começa a experimentar aquelas poções todas.

O terceiro frasco diz:

Termo Lait de Brushing – Cabelos normais

Eis o que diz no rótulo: “loção de brushing enriquecida com um activo termoprotector para cabelos normais e espessos. Protecção da fibra contra a quebra do cabelo. Brilho acentuado”.

Humhum. Percebi tudo. O activo termoprotector deve proteger das variações de temperatura do cabelo, que fica com uma cor fluorescente, depois de receber o brilho acentuado.

E o que é isso dos cabelos normais? Há cabelos anormais? Cabelos bizarros, com comportamentos estranhos?

Para perceber qual é a noção de normalidade no padrão capilar, tento socorrer-me do velho termo jurídico do “homem médio”, ou seja, o tal gajo normal com uma vida normal.

Segundo uma pesquisa no Google,” o homem médio é um ser "ideal", nem alto, nem baixo, nem magro, nem gordo, nem branco, nem negro, nem sábio, nem tolo. Ele é uma abstração jurídica. Um exemplo de humano fictício que serve de parâmetro para a conduta de todas as pessoas. As suas características marcantes são a razoabilidade, a proporcionalidade, e o facto de estar sempre classificado como mediano. “

Ou seja, cabelo médio e normal será aquele nem muito curto, nem muito comprido, nem especialmente liso, nem especialmente comprido.

Passemos aos outros:

Condicionador aprés shampooing – tratamento termoactivo fortificante antiquebra.

Mais uma coisa termoactiva. Mas este é para meter depois do shampoo. Guardo-o para mais tarde.

E este aqui?

Hair Mix – Sublime shine – Sérum antifrisado para cabelos secos. O que é um sérum? É uma espécie de ser? E o que é isso do hair mix?

Passados 45 minutos, a miúda começa a perguntar quando é que acabamos de tomar banho. Por isso, teremos de tomar uma decisão. Inspirados pelo rótulo do hair mix, pensamos que o melhor será misturar um pouco de tudo:

Um pouco do reparador celular, com umas pitadas de termo lait de brushing, mais um pouco de activo dermoprotector. Depois, juntam-se os rótulos que estão escritos em línguas estrangeiras:

Umas gotas de shampoo mit lavandel und optischen aufheller, mais um bain vital haute tolerance.

No final, não nos podemos esquecer do tal condicionador. E passemos à fase seguinte, o

ENSABOAMENTO

Onde é que está o sabonete? Ah, isso já não se usa, é verdade. Queria dizer “gel de banho”.

Vejo um frasco que diz:

“leite hidratante corporal – hidratante intensivo”

Ficamos na mesma. Dá para passar pelo corpo?

Eis o frasco seguinte:

“creme rico amaciador”

E o terceiro:

“fluide dermo – nettoyant sans rinçage”

O melhor é juntar um pouco de todos e adicioná-los com outros frascos que vamos encontrando, incluindo aqueles que falam de limpezas de partes íntimas.

E pronto. Banho tomado.

Resta lavar os dentes. Utiliza-se a escova de dentes da miúda, afinal, quem troca beijos também troca escovas de todo o género e feitio.

Depois, há que procurar a pasta de dentes. Perdão, a “loção anti-queda dentária protectora anti-tártaro e de branqueamento para dentes normais, com brilho acentuado”.

E é isso.

FIM

P.S. não percam o meu próximo conto, “Reflexões filosóficas de um condicionador de cabelo”.