Recordando Neilton Tcheleque - 1ª Parte
Fins de tarde de um dia de semana. Encontrava-me por casa, a comer uns restos de pizza semi-descongelada, ligeiramente aborrecido. Tinha de escrever um texto à pressão para a Revista. O prazo limite para a entrega do texto terminava daí a umas quinze horas. Havia que meter mãos à obra o mais rápido possível.
Dei uma olhadela na minha lista de “ideias para textos”, que consultava nos momentos de menor inspiração.
Já os tinha utilizado quase todos. Restavam-me estes:
1- História sobre miúdo que está sempre a apanhar porrada e faz constantemente novas queixas-crime: um miúdo chega a casa e diz à mãe que um colega lhe partiu os dentes. A mãe diz que vai fazer uma queixa-crime. No dia seguinte, o colega parte-lhe uma perna. A mãe diz que vai fazer uma queixa-crime. A violência aumenta de tom à medida que as queixas-crime se acumulam no Tribunal.
2- Pessoa que sonha que arranjou um emprego e acorda sem saber qual é: a pessoa adormece extremamente ansiosa por ter arranjado finalmente um emprego. Ainda por cima é bem pago. Todavia, no dia seguinte, quando se está a vestir para ir para o trabalho esquece-se por completo onde é que este se localiza nem sabe qual é realmente o tipo de trabalho.
Não me apetecia pegar em nenhum dos dois. Iriam dar-me muito trabalho e estava farto de histórias mirabolantes.
Nisto, tocou-me o telefone. Era o Zé Mário. Atendi.
- Então rapaz, tudo bem?
- Está tudo, puto, e contigo?
- Também. Estou aqui a acabar uma história para entregar amanhã na Revista.
- Fazes bem, pá. É sobre o quê?
- Hum…é difícil explicar, mistura vários temas…
- E já estás quase a acabar o texto? Ia dizer-te para tomarmos um copo logo à noite, no Estêvão. Deve tar lá o pessoal todo.
- Pois, mas não dá, tenho de acabar isto.
- Então acabas o teu texto e vais lá ter a seguir para tomar um copo.
- Ainda me vou demorar um bocado.
- Então tomas lá um copo e vais a seguir para casa acabar o texto.
- Não dá, pá…tou sem inspiração. Olha, na verdade ainda nem comecei o texto e nem sei o que hei-de escrever.
- Então? Estás sem ideias?
- Tenho algumas ideias, mas não me apetece escrever sobre isso. São sempre as mesmas histórias estapafúrdias e contos de perlimpimpim.
- Como assim?
- Sei lá, apetece-me escrever uma coisa mais visceral, real, com conteúdo. Nada de situações surreais ou imaginárias. Tudo muito certinho e extremamente credível.
- Parece-me bem.
- Pois, mas estou sem inspiração para isso.
- Por isso mesmo é que deves ir beber um copo. Lá no Estêvão há sempre grandes personagens! Olha, estive lá ontem e sabes quem encontrei?
- Não. Quem?
- Nem vais acreditar. Estava lá uma velha que era filha do Fernando Pessoa.
- Do Fernando Pessoa? Qual Fernando Pessoa?
- Qual é que havia de ser, pá? O poeta, pois claro!
- Estás a falar DO Fernando Pessoa??
- Pois claro!
- Mas o Fernando Pessoa não teve filhos, pá!
- Isso também pensava eu! Mas encontrei ontem uma velha, que é filha dele. A Odete.
- Deves ter andado a beber. O Fernando Pessoa morreu virgem.
- Pois, a Odete explicou-me isso. É tudo uma invenção para escamotear a verdade. Mas a verdade é que o Fernando Pessoa teve filhos mas foi uma coisa secreta, envolvia o pessoal do Aleister Crowley e seitas maradas, maçonarias, sacrifícios humanos e essas cenas todas. É claro que foi tudo escondido pelos biógrafos oficiais do Fernando Pessoa. Para dizer toda a verdade, esta Odete é filha do Fernando Pessoa e da filha do Jack, o Estripador. Sendo assim, ontem falei com a neta do Jack, o Estripador, que é portuguesa!
- Que coisa mais idiota!
- Isso é a tua opinião. De qualquer forma, isto só serve para mostrar que encontras pessoal interessante no Estêvão.
- Sim, estou a ver. Velhas com Alzheimer. Fascinante.
- Anda mas é beber um copo depois de jantar.
- Ok, estou convencido. Às 10 e tal por lá?
- Combinado.
Tentei começar uma história a partir das ideias da queixa-crime, mas os resultados foram inglórios. Sendo assim, saí de casa por volta das 10 e meia e pus-me a caminho do Estêvão.
Quando lá cheguei estava a fumarada do costume. Os intelectuais nas mesas dos fundos; os bêbados ao balcão, a falarem de futebol; a maralhada anónima nas mesas do meio, com a freakalhada misturada por perto. O Rúben servia às mesas. Tentei vislumbrar o Zé Mário, no meio da confusão do fumo e dos berros. Lá o encontrei a uma mesa no meio da sala, ao pé de três estrangeiras erásmicas. Gritou-me, com um cigarro ao canto da boca:
- Então puto, tudo bem? Estou aqui com umas amigas estrangeiras que conheci agora!
E pôs-se a falar com elas:
- See? This is the writer i told you about!
Depois virava-se para mim a “traduzir”.
- Eu disse-lhes que tu eras um escritor famoso e que eu era o teu manager.
- Escritor famoso? Só escrevo uns artigos para um jornal de tiragem mínima!
- Elas não sabem, pá! E tu és escritor, por isso não estou a mentir. E não te esqueças que estás em trabalho, isto serve para a tua reportagem fotográfica!
Com estas palavras, o Zé Mário começou a rir-se, pegou num copo de whisky e deu uma grande golada. Continuou:
- Olha, não tá cá a velha, mas tá cá outra coisa que deve ser interessante. Tás a ver aquela gaja ali a um canto? Tens de ser discreto, senão a gaja topa.
Olhei discretamente para onde ele me indicava. Acabei por ver uma miúda sentada a uma mesa, sozinha, a beber cerveja. Não tinha nariz.
- O que é que aquela gaja tem de interessante?
- Não estás a ver? (enquanto falava comigo, o Zé Mário colocou o dedo no seu próprio nariz e apontou-me para ele, enquanto franzia os olhos)
- Oh pá, claro que tou a ver que a gaja não tem nariz! Isso repara-se a uns 200 quilómetros. Fica feia, esquisita. Mas continuo sem perceber onde queres chegar.
- Onde quero chegar? Então a gaja deve ter altas histórias para contar!
- Ah é? Porquê? Se fosse assim tão interessante, não estava sozinha.
- Isso é porque ela deve ser discreta. E um bocado intimidatória.
- Lá isso.
- Deve ter grandes segredos, grandes traumas.
- Porquê?
- Porquê? Perguntas-me isso? Já viste como é a vida de uma pessoa sem nariz? Falas com esse desprezo porque tens um! Uma pessoa com traumas desses deve ter uma vida riquíssima para partilhar! E como ela não tem amigos guarda os segredos para si! Vais ser um privilegiado, vais ouvir histórias fantásticas em primeira mão! Sabes lá como terá perdido o nariz? Será alguma repórter? Se calhar foi raptada por algum gajo do narcotráfico, num país qualquer da Ásia! Ou foi um ex-namorado que lhe fez isso, algum serial killer que a queria cortar aos pedaços, mas só lhe cortou o nariz porque ela entretanto conseguiu rasgar a corda que a prendia e correu para a rua, não sem antes ter visto os restos dos outros corpos dentro do frigorífico do gajo. Ou então, foi raptada por aliens, que…
Olhei-o com enfado:
- Ok, cala-te. Estou convencido. Vou-me sentar à mesa dela. Não vens comigo?
- Achas, pá? Estou a fazer uma reportagem com estas moças do estrangeiro. Assim, cada um toma notas e compara no fim. Para além disso, a nariguda não se deve abrir tão bem com duas pessoas. Vai lá, pá! Antes que a nariguda baze.
Pedi uma bebida ao Rúben e dirigi-me lentamente à mesa da indivídua não portadora de cavidades nasais.
(continua um destes dias)
Dei uma olhadela na minha lista de “ideias para textos”, que consultava nos momentos de menor inspiração.
Já os tinha utilizado quase todos. Restavam-me estes:
1- História sobre miúdo que está sempre a apanhar porrada e faz constantemente novas queixas-crime: um miúdo chega a casa e diz à mãe que um colega lhe partiu os dentes. A mãe diz que vai fazer uma queixa-crime. No dia seguinte, o colega parte-lhe uma perna. A mãe diz que vai fazer uma queixa-crime. A violência aumenta de tom à medida que as queixas-crime se acumulam no Tribunal.
2- Pessoa que sonha que arranjou um emprego e acorda sem saber qual é: a pessoa adormece extremamente ansiosa por ter arranjado finalmente um emprego. Ainda por cima é bem pago. Todavia, no dia seguinte, quando se está a vestir para ir para o trabalho esquece-se por completo onde é que este se localiza nem sabe qual é realmente o tipo de trabalho.
Não me apetecia pegar em nenhum dos dois. Iriam dar-me muito trabalho e estava farto de histórias mirabolantes.
Nisto, tocou-me o telefone. Era o Zé Mário. Atendi.
- Então rapaz, tudo bem?
- Está tudo, puto, e contigo?
- Também. Estou aqui a acabar uma história para entregar amanhã na Revista.
- Fazes bem, pá. É sobre o quê?
- Hum…é difícil explicar, mistura vários temas…
- E já estás quase a acabar o texto? Ia dizer-te para tomarmos um copo logo à noite, no Estêvão. Deve tar lá o pessoal todo.
- Pois, mas não dá, tenho de acabar isto.
- Então acabas o teu texto e vais lá ter a seguir para tomar um copo.
- Ainda me vou demorar um bocado.
- Então tomas lá um copo e vais a seguir para casa acabar o texto.
- Não dá, pá…tou sem inspiração. Olha, na verdade ainda nem comecei o texto e nem sei o que hei-de escrever.
- Então? Estás sem ideias?
- Tenho algumas ideias, mas não me apetece escrever sobre isso. São sempre as mesmas histórias estapafúrdias e contos de perlimpimpim.
- Como assim?
- Sei lá, apetece-me escrever uma coisa mais visceral, real, com conteúdo. Nada de situações surreais ou imaginárias. Tudo muito certinho e extremamente credível.
- Parece-me bem.
- Pois, mas estou sem inspiração para isso.
- Por isso mesmo é que deves ir beber um copo. Lá no Estêvão há sempre grandes personagens! Olha, estive lá ontem e sabes quem encontrei?
- Não. Quem?
- Nem vais acreditar. Estava lá uma velha que era filha do Fernando Pessoa.
- Do Fernando Pessoa? Qual Fernando Pessoa?
- Qual é que havia de ser, pá? O poeta, pois claro!
- Estás a falar DO Fernando Pessoa??
- Pois claro!
- Mas o Fernando Pessoa não teve filhos, pá!
- Isso também pensava eu! Mas encontrei ontem uma velha, que é filha dele. A Odete.
- Deves ter andado a beber. O Fernando Pessoa morreu virgem.
- Pois, a Odete explicou-me isso. É tudo uma invenção para escamotear a verdade. Mas a verdade é que o Fernando Pessoa teve filhos mas foi uma coisa secreta, envolvia o pessoal do Aleister Crowley e seitas maradas, maçonarias, sacrifícios humanos e essas cenas todas. É claro que foi tudo escondido pelos biógrafos oficiais do Fernando Pessoa. Para dizer toda a verdade, esta Odete é filha do Fernando Pessoa e da filha do Jack, o Estripador. Sendo assim, ontem falei com a neta do Jack, o Estripador, que é portuguesa!
- Que coisa mais idiota!
- Isso é a tua opinião. De qualquer forma, isto só serve para mostrar que encontras pessoal interessante no Estêvão.
- Sim, estou a ver. Velhas com Alzheimer. Fascinante.
- Anda mas é beber um copo depois de jantar.
- Ok, estou convencido. Às 10 e tal por lá?
- Combinado.
Tentei começar uma história a partir das ideias da queixa-crime, mas os resultados foram inglórios. Sendo assim, saí de casa por volta das 10 e meia e pus-me a caminho do Estêvão.
Quando lá cheguei estava a fumarada do costume. Os intelectuais nas mesas dos fundos; os bêbados ao balcão, a falarem de futebol; a maralhada anónima nas mesas do meio, com a freakalhada misturada por perto. O Rúben servia às mesas. Tentei vislumbrar o Zé Mário, no meio da confusão do fumo e dos berros. Lá o encontrei a uma mesa no meio da sala, ao pé de três estrangeiras erásmicas. Gritou-me, com um cigarro ao canto da boca:
- Então puto, tudo bem? Estou aqui com umas amigas estrangeiras que conheci agora!
E pôs-se a falar com elas:
- See? This is the writer i told you about!
Depois virava-se para mim a “traduzir”.
- Eu disse-lhes que tu eras um escritor famoso e que eu era o teu manager.
- Escritor famoso? Só escrevo uns artigos para um jornal de tiragem mínima!
- Elas não sabem, pá! E tu és escritor, por isso não estou a mentir. E não te esqueças que estás em trabalho, isto serve para a tua reportagem fotográfica!
Com estas palavras, o Zé Mário começou a rir-se, pegou num copo de whisky e deu uma grande golada. Continuou:
- Olha, não tá cá a velha, mas tá cá outra coisa que deve ser interessante. Tás a ver aquela gaja ali a um canto? Tens de ser discreto, senão a gaja topa.
Olhei discretamente para onde ele me indicava. Acabei por ver uma miúda sentada a uma mesa, sozinha, a beber cerveja. Não tinha nariz.
- O que é que aquela gaja tem de interessante?
- Não estás a ver? (enquanto falava comigo, o Zé Mário colocou o dedo no seu próprio nariz e apontou-me para ele, enquanto franzia os olhos)
- Oh pá, claro que tou a ver que a gaja não tem nariz! Isso repara-se a uns 200 quilómetros. Fica feia, esquisita. Mas continuo sem perceber onde queres chegar.
- Onde quero chegar? Então a gaja deve ter altas histórias para contar!
- Ah é? Porquê? Se fosse assim tão interessante, não estava sozinha.
- Isso é porque ela deve ser discreta. E um bocado intimidatória.
- Lá isso.
- Deve ter grandes segredos, grandes traumas.
- Porquê?
- Porquê? Perguntas-me isso? Já viste como é a vida de uma pessoa sem nariz? Falas com esse desprezo porque tens um! Uma pessoa com traumas desses deve ter uma vida riquíssima para partilhar! E como ela não tem amigos guarda os segredos para si! Vais ser um privilegiado, vais ouvir histórias fantásticas em primeira mão! Sabes lá como terá perdido o nariz? Será alguma repórter? Se calhar foi raptada por algum gajo do narcotráfico, num país qualquer da Ásia! Ou foi um ex-namorado que lhe fez isso, algum serial killer que a queria cortar aos pedaços, mas só lhe cortou o nariz porque ela entretanto conseguiu rasgar a corda que a prendia e correu para a rua, não sem antes ter visto os restos dos outros corpos dentro do frigorífico do gajo. Ou então, foi raptada por aliens, que…
Olhei-o com enfado:
- Ok, cala-te. Estou convencido. Vou-me sentar à mesa dela. Não vens comigo?
- Achas, pá? Estou a fazer uma reportagem com estas moças do estrangeiro. Assim, cada um toma notas e compara no fim. Para além disso, a nariguda não se deve abrir tão bem com duas pessoas. Vai lá, pá! Antes que a nariguda baze.
Pedi uma bebida ao Rúben e dirigi-me lentamente à mesa da indivídua não portadora de cavidades nasais.
(continua um destes dias)