Um conto Natalício, com muitos pontos à mistura
Exmo. Leitor,
Em resposta aos muitos pedidos de esclarecimento que tenho
vindo a receber nos últimos tempos, os quais mereceram toda a minha atenção,
cumpre-me dizer o seguinte:
1-
Não é verdade que tenha abandonado a literatura.
De facto, e para dizer toda a verdade, nunca escrevi tanto como nestes últimos
meses. 2- E para continuar a falar toda a verdade, vou falar-vos um pouco da minha nova abordagem à literatura
3- Sinto-me deveras entusiasmado com o novo rumo a que chegou a minha literatura
4- A escrita tornou-se menos egoísta, menos centrada num insuflado “eu”, para se tornar num produto a que não seria de todo errado apelidar de “criação colectiva”
5- Diz a sabedoria popular que a “União faz a força”.
6- E diz muito bem a sabedoria, já que eu e mais uns quantos escritores juntámo-nos a uma colectividade chamada Sociedade Anónima
7- A força da nossa união ditou o fim das fraquezas individuais e de inúteis questões de propriedade intelectual, meras questões de ego
8- Assim, deixámos de assinar as novas formas literárias com os nomes próprios
9- Mas falaremos disto no fim
10- Direi, também, que a escrita se tornou mais útil e virada para os problemas sociais
11- Abandonou devaneios surreais e adornos absurdos
12- Agora que já consegui captar toda a vossa atenção, poderei responder à pergunta que me andam a querer fazer desde, pelo menos, o ponto nº 2 da minha comunicação
13- V/Exas. Perguntam, com toda a pertinência: quando é que teremos acesso a este acervo literário de que eu faço menção no ponto nº 1 e segs. do meu esclarecimento público?14- Respondo eu agora, no ponto catorze da minha comunicação: a verdade é que as minhas novas obras já foram reveladas ao público. Um público bastante restrito, mas que as leu atentamente.
15- Agora que já terei conseguido captar a atenção dos meus queridos leitores, após este breve preâmbulo, irei revelando novas informações, a pouco e pouco, uma por cada ponto.
16- Como não estou a escrever um conto, não vou acrescentar só um ponto.
17- Agora produzo textos num outro género literário.
18- A carta.
19- A carta é uma opinião em prosa, dirigida a uma pessoa ausente, para comunicar-lhe notícias ou impressões.
20- Reza a opinião corrente do homem médio de que já não se escrevem cartas como antigamente.
21- Para contrariar essa opinião, a Sociedade Anónima incentiva-nos a produzir cartas
22- Muitas cartas
23- De todos os géneros e feitios
24- Todas as cartas têm um destinatário em concreto - o feliz leitor, a quem dou uma mensagem de esperança nestes tempos difíceis
25- Desenvolvi um estilo. Começo sempre por Exmo. Senhor, Exma. Senhora ou, se estiver a dirigir-me a um interlocutor mais literato, acrescento um Exmo. Senhor Dr.
26- Há que salientar que não há diferenças de tratamento. Os bois é que devem ser tratados pelo seu nome.
27- Escrevo sempre em resposta a um pedido, a uma qualquer pretensão do meu caro interlocutor.
28- Para que o meu interlocutor possa ver a sua pretensão satisfeita, terá de nos remeter a necessária documentação.
29- O problema é que a documentação que o meu caro interlocutor remete, sendo, obviamente, deveras necessária, nunca é suficientemente necessária para que o meu caro interlocutor possa ver a sua pretensão satisfeita.
30- Por isso, envio uma carta para o meu caro interlocutor.
31- Desejo-lhe um bom dia.
32- De seguida, agradeço toda a documentação que o meu caro interlocutor enviou. Começo com uma frase do género “em primeiro lugar, agradecemos a V/Exa. A gentileza de nos ter enviado a documentação X,Y ou Z, nomeadamente a Certidão a, b, c , que faz menção aos assuntos f,g,h, etc etc
33- Isto mostra que tive o cuidado de tomar nota de tudo o que o meu caro interlocutor enviou e demonstra que já foi remetido algo de importante.
34- Mas depois surge o busílis da questão – o contudo, ou o todavia, ou o porém
35- “Porém, V/Exa. Esqueceu-se de remeter este documento”
36- E saliento a extrema importância do documento que se encontra em falta.
37- Pode ser um documento relacionado com a tia-avó do meu caro interlocutor.
38- E aí dirijo-me ao meu interlocutor, sempre tratando-o por V/Exa
39- E digo a V/Exa
40- “Constatámos que V/Exa. Tinha uma tia-avó”
41- “Porque antes de V/Exa ter surgido, havia a tia-avó de V/Exa., que faleceu em 1995, mas cuja importância é crucial no caso concreto”.
42- Veja bem, caro leitor: eu dirijo-me ao meu interlocutor, falando-lhe da tia-avó ou da sogra ou da mãe da sogra. Mostro que estou a par de todos os problemas do meu interlocutor.
43- Demonstro que conheço a sua árvore genealógica até às mais que profundas raízes
44- Crio uma relação de empatia e de amizade
45- Uma pessoa que conhece profundamente a árvore genealógica do seu interlocutor está mais que apta para ser sua amiga
46- É quase família
47- É quase como se conhecesse a famosa tia-avó do interlocutor
48- Compreendendo o leitor e todos os seus problemas
49- E sabendo que são todos muito importantes
50- Todo e qualquer busílis relacionado com o meu interlocutor deverá ser relacionado e apresentado sem mais delongas
51- Sob pena de haver grandes ralações
52- Os documentos que o meu caro interlocutor enviou são extremamente importantes
53- Disso não haja dúvidas
54- Mas os documentos relacionados com a sua bisavó são tão importantes como estes
55- Cada documento relacionado com a tia-avó do meu caro interlocutor é importante
56- Toda a família do meu caro interlocutor é importante
57- No momento em que digo ao meu interlocutor que tenho conhecimento da existência de uma tia-avó, sei que prendi a sua atenção
58- A tia-avó é o volte-face
59- O isco necessário
60- O interlocutor precisa de se ambientar um pouco à escrita do autor
61- Por isso, começo com um preâmbulo, onde agradeço a documentação enviada.
62- Quando o interlocutor está à espera de um desenlace banal,
63- Como: queira dirigir-se à nossa sede para receber o dinheiro pretendido
64- Nesse momento, surge o volte-face:
65- O contudo
66- O leitor não está à espera de um contudo
67- Nem de um porém
68- Muito menos de um todavia
69- Ainda menos de uma tia-avó
70- O raio da Dona Berta!
71- O interlocutor bem que se lembra dela
72- Enquanto pensa nos episódios da infância levanta-se
73- Vai buscar os óculos
74- Pigarreia
75- Vai chamar o sobrinho ou o neto que anda a estudar na faculdade e compreende toda a substância de um porém
76- Até chama a vizinha do lado, que costuma receber cartas e que avisou que recebeu um “contudo” na semana passada
77- Está tudo a postos para um sarau literário
78- Reúnem-se todos à volta da mesa redonda, em busca de pistas
79- A vizinha do lado traz uns bolinhos que acabou de fazer
80- O neto acende um cigarro
81- Desligam a televisão
82- Não pode haver desatenções
83- Toda a concentração está colocada no meu texto
84- Sorvem as palavras, uma a uma
85- Lêem cada parágrafo muito lentamente, para não perderem o fio à meada
86- Ou com medo de perderem uma pista importante, escondida no meio de tantas palavras
87- E as pistas estão lá, como num clássico enredo policial
88- Não há o mordomo, mas há a tia-avó
89- O sobrinho arranca a carta da mão do meu interlocutor
90- Quando lê as minhas ameaçadoras palavras:
91- “Porém, vossa E/Exa tinha um bisavô”
92- Oh diabo
93- Não era só a tia-avó?
94- Agora também há um bisavô metido ao barulho
95- Seria o Zeca Lacrau, que andou a cavar trincheiras na 1ª Guerra Mundial?
96- O caro interlocutor puxa da memória
97- Os vizinhos acotovelam-se:
98- “É verdade, tio? O tio tinha um bisavô?”
99- O tio fica confuso, sabe que o pai dele tinha um bisavô, mas não se consegue recordar se ele próprio tinha um bisavô
100- O tio está nervoso.
101- Precisa mesmo de receber aquele cheque.
102- A ordem de despejo está para breve.
103- A memória turva-se.
104- É que não se recorda mesmo do tal bisavô!
105- O tio lembra-se, de repente, do longínquo bisavô, co-titular de um objecto de cuja prova de titularidade é absolutamente essencial para que se possa iniciar o processo que levará a que, eventualmente, possa receber a quantia em dinheiro que está em causa
106- E o tio lembra-se, com raiva, do bisavô, o único entreve para que possa aceder à prometida fortuna
107- E o tio começa a desembainhar a sua história, novelo ressequido de que esquecera há muito a ponta do nó
108- E eu ajudo: o bisavô teria, de certeza, mais uns quantos herdeiros, aqueles senhores que foram viver para o Brasil e dos quais nunca mais tiveram notícias
109- E o teu lembra-se dos familiares do Brasil
110- O sobrinho fica indignado: “o tio nunca me falou dos familiares do Brasil!”
111- Cria-se uma discussão, que desemboca na nostalgia: há quanto tempo que não penso nos familiares do Brasil!
112- E dou-lhe uma oportunidade de reencontro, um abraço neste ponto de encontro:
113- Digo na minha carta: para prosseguimento da instrução do presente processo, torna-se necessária a assinatura de todos os familiares que vivem no Brasil, mais dos respectivos cônjuges e possíveis filhos, caso algum destes tenha falecido
114- Cria-se algum pânico:
115- “Mas não tenho notícias deles há séculos, como é que vou recolher a assinatura deles todos, oh meu Deus”
116- Diz o tio, num assomo de desespero
117- A vizinha rói as unhas
118- O sobrinho dá pontapés na parede
119- O gato foge assustado
120- A mulher do meu interlocutor chora e debita uma oração à santinha preferida
121- Mas a carta continua
122- A carta continua! Grita o sobrinho
123- A carta continua! Abraça-se a vizinha ao meu interlocutor
124- Pois é. A carta continua.
125- Fui apenas eu a querer prolongar o suspense
126- Tive uma pequena liberdade artística.
127- Deixei algum espaço em branco no final da folha
128- Uma pessoa desatenta poderia pensar que a carta acabaria assim, dessa forma abrupta
129- Mas os meus interlocutores (e ora leitores) não são pessoas desatentas
130- São leitores calejados
131- Que desligam a televisão
132- E que se juntam a ler, enquanto comem os bolinhos da vizinha
133- Declamam os meus textos
134- Por isso, percebem que a carta não chegou ao fim.
135- Foi apenas um longo espaço em branco, que desemboca no fim da página.
136-Há que manter o suspense
137-Fazer com que o caro interlocutor perca um pouco a
esperança
138-Para que a possa retomar, mal repare que o texto
continua no verso da folha
139-Benditos versos, diz o meu caro interlocutor
140-O que seria da vida sem os versos
141-O verso da página diz que tudo se resolve
142-O meu interlocutor grita
143-Tudo se resolve!
144-A mulher reza
145-“Obrigada, Nossa Senhora dos Aflitos”!
146-O sobrinho dá um pontapé na parede, com tanta alegria
147-A vizinha já não tem unhas para roer
148-Chega a minha frase salvadora
149-Quem diz que a literatura não salva nunca escreveu uma
carta na vida
150-Agadeço à Sociedade Anónima por me mostrar esta lição de
vida
151- A carta continua, é necessária a assinatura de todos os
familiares
152-mas volta o porém
153-o contudo
154-e o todavia
155-mas agora é um porém benigno
156-Um todavia com laivos de esperança
157-um contudo que traz o vento da mudança
158-Contudo, para suprimir a falta da assinatura do parente
necessário
159-O parente pode fazer representar-se por um procurador,
que age como se se tratasse do próprio parente.
160-Assim mesmo, como se fosse uma espécie de duplo
161-O parente pode fazer-se representar por procuração
162-A procuração deverá ser outorgada pelos familiares,
pelos filhos dos familiares, desde que tenha uma forma legal bem estabelecia e
que contenha os poderes expressos que eu menciono na carta e que contenha a
bendita apostilha de Haia, de 1961.
163-Haia? O que é isso, diz o meu interlocutor
164-A vizinha sabida diz que é uma cidade na França
165- O sobrinho animado pergunta se o meu interlocutor tem
familiares na França, gostava de ir viver para lá
166-E ficam todos contentes
167- Vão já a correr arranjar alguém que conheça um
procurador
168- Quando arranjarem uma procuração com todos os poderes
necessários, será necessária outra procuração
169- ou um requerimento
170- Ou uma Certidão
171- Faltará apenas um golpe de asa para que o meu caro
interlocutor obtenha o que pretende
172- Até lá, encho-o de sonhos, estabeleço-lhe metas, fixo-lhe objectivos
173- Mostro-lhe o seu passado esquecido
174- E remato com chave de ouro:
175- Com uma frase plena de significado
176- “Espero que compreenda a bondade jurídica do meu
pedido”.
177- Ou seja, não é um pedido vulgar
178- É um pedido bondoso
179- E não é uma bondade qualquer
180- É uma bondade revestida
181- Um pouco como aqueles carros que têm a pintura revestida com
contraplacados de ouro ou de aço inoxidável
182- O revestimento da bondade jurídica é à prova de todos
os riscos
183- Termino, com uma mensagem de esperança
184- Depois, para evitar trabalhos supérfluos e
demonstrações de egos desmesurados, não assino a carta
185- A assinatura está pré-feita, pela entidade competente
186- A minha carta é depois analisada por um igualmente
competente conferente
187- Que lima qualquer liberdade artística extemporânea e
que lhe elimina todos os ornamentos desnecessários
188-Fica apenas o essencial
189-Uma breve síntese de todos os acontecimentos relevantes
190-Feita por pontos
191-Assim, dá a ideia de que estamos a seguir uma ordem de
trabalhos
192-Porque todos os trabalhos têm de ser feitos por uma ordem
193-E é preciso cumprir objectivos
194-O meu caro interlocutor tem apenas de os cumprir escrupulosamente
195-Ponto por ponto
196-É uma espécie de jogo
197-Faz lembrar os rally-papers
198- Ou aqueles jogos de plataformas
199- Para se chegar ao nível seguinte tem de se fazer tudo certinho e direitinho no nível anterior
200- Diria até que isto também se assemelha um pouco a uma caça ao tesouro
198- Ou aqueles jogos de plataformas
199- Para se chegar ao nível seguinte tem de se fazer tudo certinho e direitinho no nível anterior
200- Diria até que isto também se assemelha um pouco a uma caça ao tesouro
201-O meu interlocutor tem apenas de perseguir a sua quimera
202-O seu belo sonho
203- Todos sabemos que os sonhos comandam a vida
204- E a vida tem de ser comandada
205- É o que dizem os meus suprevisores, na Sociedade Anónima
206- Prometem-me que um dia seremos todos recompensados
207- Por agora, agradeço toda a atenção que o meu caro leitor prestou
204- E a vida tem de ser comandada
205- É o que dizem os meus suprevisores, na Sociedade Anónima
206- Prometem-me que um dia seremos todos recompensados
207- Por agora, agradeço toda a atenção que o meu caro leitor prestou
208- A sua atenção é extremamente importante
209-Caro leitor, e não desespere
210-Em breve, irá ler novos textos meus
211-Novos e brilhantes textos
212- Quem sabe, talvez até um conto
213- Onde acrescentarei ainda mais pontos do que neste texto
214- Todo o interesse do meu caro leitor merece ser recompensado
215- Aposto que o meu caro leitor gostaria de ler um conto de Natal
216- Sim, o perfeito era mesmo ler um conto de Natal
217- Com uma mensagem de paz e de esparança
218- Esparança num futuro bom e cheio de bonança
219- Um futuro mais abastado
220- Eu poderia dar conselhos ao caro leitor
221- Sim, está decididio, vou escrever o prometido conto de Natal
212- Quem sabe, talvez até um conto
213- Onde acrescentarei ainda mais pontos do que neste texto
214- Todo o interesse do meu caro leitor merece ser recompensado
215- Aposto que o meu caro leitor gostaria de ler um conto de Natal
216- Sim, o perfeito era mesmo ler um conto de Natal
217- Com uma mensagem de paz e de esparança
218- Esparança num futuro bom e cheio de bonança
219- Um futuro mais abastado
220- Eu poderia dar conselhos ao caro leitor
221- Sim, está decididio, vou escrever o prometido conto de Natal
222- O caro leitor terá apenas de me remeter um documento
223-Um simples e pequeno documento
224-Mas que é essencial para o prosseguimento do meu conto de Natal
225-Mas isso fica para a próxima comunicação
226-Até lá, despeço-me
227-O querido leitor fica já a conhecer a minha nova
assinatura
228-Todos os meus textos terminam desta forma
229- Como diziam os meus supervisores:
230- "Junta-te a nós"
231- "É o teu destino!"
232- Assim foi
229- Como diziam os meus supervisores:
230- "Junta-te a nós"
231- "É o teu destino!"
232- Assim foi
233-Até que me transformei nisto:
PROCESSADO POR COMPUTADOR