terça-feira, janeiro 31, 2012

Recordando Neilton Tcheleque - 1ª Parte

Fins de tarde de um dia de semana. Encontrava-me por casa, a comer uns restos de pizza semi-descongelada, ligeiramente aborrecido. Tinha de escrever um texto à pressão para a Revista. O prazo limite para a entrega do texto terminava daí a umas quinze horas. Havia que meter mãos à obra o mais rápido possível.
Dei uma olhadela na minha lista de “ideias para textos”, que consultava nos momentos de menor inspiração.
Já os tinha utilizado quase todos. Restavam-me estes:
1- História sobre miúdo que está sempre a apanhar porrada e faz constantemente novas queixas-crime: um miúdo chega a casa e diz à mãe que um colega lhe partiu os dentes. A mãe diz que vai fazer uma queixa-crime. No dia seguinte, o colega parte-lhe uma perna. A mãe diz que vai fazer uma queixa-crime. A violência aumenta de tom à medida que as queixas-crime se acumulam no Tribunal.
2- Pessoa que sonha que arranjou um emprego e acorda sem saber qual é: a pessoa adormece extremamente ansiosa por ter arranjado finalmente um emprego. Ainda por cima é bem pago. Todavia, no dia seguinte, quando se está a vestir para ir para o trabalho esquece-se por completo onde é que este se localiza nem sabe qual é realmente o tipo de trabalho.

Não me apetecia pegar em nenhum dos dois. Iriam dar-me muito trabalho e estava farto de histórias mirabolantes.
Nisto, tocou-me o telefone. Era o Zé Mário. Atendi.
- Então rapaz, tudo bem?
- Está tudo, puto, e contigo?
- Também. Estou aqui a acabar uma história para entregar amanhã na Revista.
- Fazes bem, pá. É sobre o quê?
- Hum…é difícil explicar, mistura vários temas…
- E já estás quase a acabar o texto? Ia dizer-te para tomarmos um copo logo à noite, no Estêvão. Deve tar lá o pessoal todo.
- Pois, mas não dá, tenho de acabar isto.
- Então acabas o teu texto e vais lá ter a seguir para tomar um copo.
- Ainda me vou demorar um bocado.
- Então tomas lá um copo e vais a seguir para casa acabar o texto.
- Não dá, pá…tou sem inspiração. Olha, na verdade ainda nem comecei o texto e nem sei o que hei-de escrever.
- Então? Estás sem ideias?
- Tenho algumas ideias, mas não me apetece escrever sobre isso. São sempre as mesmas histórias estapafúrdias e contos de perlimpimpim.
- Como assim?
- Sei lá, apetece-me escrever uma coisa mais visceral, real, com conteúdo. Nada de situações surreais ou imaginárias. Tudo muito certinho e extremamente credível.
- Parece-me bem.
- Pois, mas estou sem inspiração para isso.
- Por isso mesmo é que deves ir beber um copo. Lá no Estêvão há sempre grandes personagens! Olha, estive lá ontem e sabes quem encontrei?
- Não. Quem?
- Nem vais acreditar. Estava lá uma velha que era filha do Fernando Pessoa.
- Do Fernando Pessoa? Qual Fernando Pessoa?
- Qual é que havia de ser, pá? O poeta, pois claro!
- Estás a falar DO Fernando Pessoa??
- Pois claro!
- Mas o Fernando Pessoa não teve filhos, pá!
- Isso também pensava eu! Mas encontrei ontem uma velha, que é filha dele. A Odete.
- Deves ter andado a beber. O Fernando Pessoa morreu virgem.
- Pois, a Odete explicou-me isso. É tudo uma invenção para escamotear a verdade. Mas a verdade é que o Fernando Pessoa teve filhos mas foi uma coisa secreta, envolvia o pessoal do Aleister Crowley e seitas maradas, maçonarias, sacrifícios humanos e essas cenas todas. É claro que foi tudo escondido pelos biógrafos oficiais do Fernando Pessoa. Para dizer toda a verdade, esta Odete é filha do Fernando Pessoa e da filha do Jack, o Estripador. Sendo assim, ontem falei com a neta do Jack, o Estripador, que é portuguesa!
- Que coisa mais idiota!
- Isso é a tua opinião. De qualquer forma, isto só serve para mostrar que encontras pessoal interessante no Estêvão.
- Sim, estou a ver. Velhas com Alzheimer. Fascinante.
- Anda mas é beber um copo depois de jantar.
- Ok, estou convencido. Às 10 e tal por lá?
- Combinado.
Tentei começar uma história a partir das ideias da queixa-crime, mas os resultados foram inglórios. Sendo assim, saí de casa por volta das 10 e meia e pus-me a caminho do Estêvão.
Quando lá cheguei estava a fumarada do costume. Os intelectuais nas mesas dos fundos; os bêbados ao balcão, a falarem de futebol; a maralhada anónima nas mesas do meio, com a freakalhada misturada por perto. O Rúben servia às mesas. Tentei vislumbrar o Zé Mário, no meio da confusão do fumo e dos berros. Lá o encontrei a uma mesa no meio da sala, ao pé de três estrangeiras erásmicas. Gritou-me, com um cigarro ao canto da boca:
- Então puto, tudo bem? Estou aqui com umas amigas estrangeiras que conheci agora!
E pôs-se a falar com elas:
- See? This is the writer i told you about!
Depois virava-se para mim a “traduzir”.
- Eu disse-lhes que tu eras um escritor famoso e que eu era o teu manager.
- Escritor famoso? Só escrevo uns artigos para um jornal de tiragem mínima!
- Elas não sabem, pá! E tu és escritor, por isso não estou a mentir. E não te esqueças que estás em trabalho, isto serve para a tua reportagem fotográfica!
Com estas palavras, o Zé Mário começou a rir-se, pegou num copo de whisky e deu uma grande golada. Continuou:
- Olha, não tá cá a velha, mas tá cá outra coisa que deve ser interessante. Tás a ver aquela gaja ali a um canto? Tens de ser discreto, senão a gaja topa.
Olhei discretamente para onde ele me indicava. Acabei por ver uma miúda sentada a uma mesa, sozinha, a beber cerveja. Não tinha nariz.
- O que é que aquela gaja tem de interessante?
- Não estás a ver? (enquanto falava comigo, o Zé Mário colocou o dedo no seu próprio nariz e apontou-me para ele, enquanto franzia os olhos)
- Oh pá, claro que tou a ver que a gaja não tem nariz! Isso repara-se a uns 200 quilómetros. Fica feia, esquisita. Mas continuo sem perceber onde queres chegar.
- Onde quero chegar? Então a gaja deve ter altas histórias para contar!
- Ah é? Porquê? Se fosse assim tão interessante, não estava sozinha.
- Isso é porque ela deve ser discreta. E um bocado intimidatória.
- Lá isso.
- Deve ter grandes segredos, grandes traumas.
- Porquê?
- Porquê? Perguntas-me isso? Já viste como é a vida de uma pessoa sem nariz? Falas com esse desprezo porque tens um! Uma pessoa com traumas desses deve ter uma vida riquíssima para partilhar! E como ela não tem amigos guarda os segredos para si! Vais ser um privilegiado, vais ouvir histórias fantásticas em primeira mão! Sabes lá como terá perdido o nariz? Será alguma repórter? Se calhar foi raptada por algum gajo do narcotráfico, num país qualquer da Ásia! Ou foi um ex-namorado que lhe fez isso, algum serial killer que a queria cortar aos pedaços, mas só lhe cortou o nariz porque ela entretanto conseguiu rasgar a corda que a prendia e correu para a rua, não sem antes ter visto os restos dos outros corpos dentro do frigorífico do gajo. Ou então, foi raptada por aliens, que…
Olhei-o com enfado:
- Ok, cala-te. Estou convencido. Vou-me sentar à mesa dela. Não vens comigo?
- Achas, pá? Estou a fazer uma reportagem com estas moças do estrangeiro. Assim, cada um toma notas e compara no fim. Para além disso, a nariguda não se deve abrir tão bem com duas pessoas. Vai lá, pá! Antes que a nariguda baze.
Pedi uma bebida ao Rúben e dirigi-me lentamente à mesa da indivídua não portadora de cavidades nasais.

(continua um destes dias)