terça-feira, fevereiro 28, 2012

Neilton Tcheleque, 2ª parte, mais ou menos, ou pausa para ganhar embalo para começar a história a sério

Aproximei-me da menina sem nariz e perguntei-lhe:

- Posso sentar-me?

Ela respondeu, muito naturalmente:

- Sim, claro! Há muito espaço.

Primeiro desafio ganho. A conquista de um lugar à mesa. Resolvi avançar com prudência e uma certa neutralidade, falando do espaço físico que nos rodeava. Um tema seguro:

- Este bar está sempre à pinha!

- Hoje nem por isso. Há algumas mesas vazias.

Não estava à espera desse contra-ataque tão frontal e sincero. Havia, de facto, algumas mesas vazias. Não havia volta a dar. Tratei de me justificar:

- Sim, mas são junto à porta. Não gosto de me sentar aí, apanho corrente de ar.

- Achas? Este bar é fechado, nem tem janelas, para haver correntes de ar deveria existir uma outra porta que nos levasse à rua e que estivesse aberta ou que houvesse alguma janela que estivesse igualmente aberta…

Um bom ponto de vista levantado pela menina sem nariz. Justifiquei-me novamente:

- Mas apanho o frio da rua.

- Sim, isso é possível, mas hoje até está calor.

Um ponto de vista demasiado subjectivo. Estava calor para uma noite de Inverno num país europeu, mas estava frio se comparássemos com uma noite tropical no pico do Verão:

- Está de facto calor para esta altura do ano, mas eu sou friorento. Prefiro sentar-me aqui a um canto. Fico longe da confusão e vejo melhor que entra e quem sai. E confesso que não gosto de me sentar sozinho a uma mesa. Combinei encontrar-me aqui com uns amigos, mas afinal eles não vêm.

Sorri satisfeito. Dera uma boa resposta. Mas a nariguda não se fez de rogada:

- Por acaso reparei que estavas a falar com aquele rapaz que está ali sentado com aquelas estrangeiras.

- Aquele rapaz? É um antigo colega meu, não o conheço bem, nem me lembro como se chama.

- Mas as miúdas que estão com ele até são giras. Podias ter-te sentado ao pé delas.

- Sou um bocado tímido, não me sinto à vontade a falar com gente estranha.

- Mas sentaste-te ao pé de mim e não nos conhecemos.

- É verdade. Mas eu vi-te ali do fundo e senti uma empatia imediata quando te vi.

- A sério? Que querido!

- Não sou querido, estou a falar a verdade. E acho que te conheço de algum lado. Não foste ver um filme outro dia ao festival de cinema?

- Acho que não. Não gosto muito de cinema. Prefiro ver os filmes na televisão, sentada no sofá.

- Eu também gosto de ver filmes em casa. É mais confortável. O problema é que adormeço muitas vezes.

- Eu adoro adormecer em casa a ver filmes! De resto, gosto de ver filmes por causa disso. O ecrã embala-me, mais o som da voz dos actores. Confesso que, de resto, não percebo nada de cinema, nem gosto muito. Aborrece-me um bocado. Como é que se chama aquele realizador velho muito chato? Manoel César das Neves?

- Manoel de Oliveira. Eu, para confessar, também já gostei mais de cinema…então não deve ter sido num festival, se calhar foi em algum concerto, ou assim…

- Acho que não. Não gosto muito de música. Prefiro ouvir música em casa, ligo a rádio Comercial e sento-me no sofá.

- Eu também gosto de ouvir música em casa. É mais confortável. O problema é que depois adormeço, enquanto bebo um copo de vinho a ouvir música no sofá.

- Eu adoro adormecer em casa a ouvir música! De resto, gosto de ouvir música por causa disso. Fico embalada. Quando me perguntam nomes de bandas de que gosto, não sei responder, porque não gosto de bandas! Não conheço cantores nem bandas. Só músicas ouvidas na rádio. E eu sou o contrário de ti. Odeio vinho e todo o tipo de bebidas alcoólicas.

A conversa poderia ter-se desenrolado mais ou menos nestes moldes. Não faço ideia. Estes diálogos que acabaram de ler são completamente inventados. Isto porque nunca cheguei a falar com a menina sem nariz.

Quando me preparava para a abordar com a questão: “posso sentar-me à tua mesa?”, reparei num indivíduo magro, que estava sentado a uma outra mesa, sozinho. Vestia uma camisa de xadrez, com os colarinhos apertados até cá acima. Tinha um lápis na mão, com o qual escrevia no tampo da mesa, em letras garrafais:

CONNY NED CONNY NED CONNY NED CONNY NED

Tive um arrepio na espinha. Sem hesitar, sentei-me na sua mesa e disse-lhe, em tom provocatório:

Se queres que te diga, esse CONNY NED não chegava aos calcanhares do Neilton Tcheleque.

Olhou-me surpreendido e com uma mal disfarçada raiva que lhe devia provir dos recantos mais escuros da alma.