Jornada de Trabalho
Às 9.35, os primeiros funcionários começaram a sair do
edifício, em passo lento, tímido hesitante. Encostaram-se ao muro e esperaram,
olhos fixos no chão, expectantes.
Depois, apareceu um grupo mais entusiasta, sorrisos nos
lábios, passo mais vigoroso, desafiante.
Colocaram-se à frente dos funcionários que já lá estavam e
olharam para o céu. Estava um belo dia para se fazer uma greve.
Depois chegaram os outros, empunhando cartazes, megafones,
entoando palavras de ordem, canções alegres, com letras apelando à intervenção.
A Cátia segurava um cartaz, que dizia: “fora o trabalho
precário”, o Pedro gritava “lutaremos pelo contrato de trabalho”, a Vera
cantarolava uma melodia infantil e dizia que queria ter “o direito a descanso”.
O Dr. Carlos, lá em cima, olhava pela janela, pensativo,
enquanto segurava o computador portátil e fazia uns gráficos.
Os funcionários continuaram a sair do edifício, todos com
cartazes na mão. Alguns começaram a gritar, continuavam a debitar palavras de
ordem, “seguro de trabalho”, “remuneração de horas extra”, “vamos acabar com os
esforços adicionais de trabalho ao sábado”.
Às 9.40 já estavam todos os manifestantes na rua.
Depois foi tudo muito rápido. Os Pitbulls raivosos saíram de
uma porta escondida, que estava incrustada junto a um vaso de plantas e atiraram-se
às pernas do grupo dos primeiros funcionários, aqueles que continuavam
encostados aos muros.
Gritos. “Eu não estava a fazer nada”, “Juro que fui aqui
fora só para fumar um cigarro”, “eu não estava a falar com o meu colega do lado,
muito menos a manifestar-me”.
O grupo dos segundos funcionários foi agredido à bastonada
por solícitos membros do corpo de intervenção da polícia de choque, que surgiu
vindo do nada, de dentro de várias carrinhas que estavam escondidas, junto aos
arbustos do parque de estacionamento. “Vamos a dispersar, é o último aviso,
vamos a dispersar”.
O grupo dos funcionários que empunhava cartazes foi agredido
por um enorme grupo de funcionários que saiu de todos os lados – uns saíram de
dentro da porta escondida, onde, instantes antes, tinham aparecido os Pitbulls
raivosos, ainda mais raivosos que os Pitbulls.
Outros, apareceram vindos dos arbustos, ao pé dos elementos
do corpo de intervenção da polícia de choque, também com bastões, extintores,
pedras e botas de biqueira de aço, já não diziam “vamos a dispersar”, só
batiam, indiscriminadamente.
Outros, apareceram de dentro do edifício, mas a maioria
estava entre os membros da manifestação. Eram os mais zangados. “Então, seu
filho da puta, queres pôr em causa o meu trabalho? Toma lá, seu cabrão, para
aprenderes a não te armares em reivindicativo!”.
De nada valiam os gritos desesperados dos manifestantes: “eu
não estou a colocar o teu trabalho em causa, estou a lutar por ti”
E os outros redobravam a violência: “estás a lutar por mim?
Para quê? Eu não estou descontente! Queres mostrar descontentamento? Vai-te
embora e deixa-nos em paz!”.
Sangue jorrava pelo chão. Dentes partidos, roupas em
farrapos, cartazes partidos.
Lá em cima, o Dr. Carlos, pensativo, continuava a fazer
gráficos no computador portátil.
Até que reinou o silêncio. Os manifestantes gritaram
clemência, mostraram uma bandeira branca improvisada, feita do lenço de um dos
manifestantes, já manchado de sangue.
9.45
Os funcionários recolheram ordeiramente ao edifício. Os que
coxeavam, ajudavam aqueles que não conseguiam andar.
A Cátia inspirava maiores cuidados. Continuava estatelada n
chão. O Rui, que tinha o curso de primeiros socorros, tomou-lhe o pulso. Os
outros olharam. O Rui fez um aceno com o dedo, indicando que estava tudo bem.
9.55
Todos os funcionários já se encontravam sentados no seu
lugar.
10.00
O Dr. Carlos convocou todos para a reunião.
10.05
O Dr. Carlos começou a falar. “Meus caros, eram 9.35 quando
os primeiros funcionários começaram a sair, 9.40 quando chegaram todos à rua,
às 9.45 estava tudo dominado, às 9.55, voltaram todos ao local de trabalho.
Ou seja, passaram 20 minutos desde o início da manifestação
até ao regresso à normalidade. Não está nada mal, meus caros!”
Alguns funcionários entreolharam-se, um tímido sorriso nos
lábios.
Mas o Dr. Carlos continuava a fazer um ar severo.
“Repito! Não está nada mal. Vejam os gráficos!”
O Dr. Carlos começou a apontar para uns gráficos feitos no
Power Point.
“No último simulacro de manifestação, passaram agora dois
meses, vocês demoraram 40 minutos, ouviram bem, quarenta minutos desde o início
da manifestação até à reposição absoluta da normalidade. Agora, conseguiram
reduzir para metade!”
Os sorrisos ficaram mais abertos. Alguns atreviam-se já a cantar
o hino da Operativa.
O Dr. Carlos continuou: “há seis meses, vocês demoravam uma
hora!
Um funcionário desdentado, deitando grandes quantidades de
sangue pela boca, disse: “viva a Operativa”.
Gritaram todos: “Viva”. Até a Cátia, que já tinha sido reanimada.
O Dr. Carlos meteu água na fervura: “meus caros, vamos a ter
calma! O resultado não é mau, mas podia ser muito melhor. Vejam este gráfico –
caminhamos para o bom, mas para chegarmos ao bom ainda falta um longo caminho.
Mas os chefes estão atentos ao nosso trabalho. Sabem que nos andamos a
esforçar. Quero o próximo simulacro de manifestação resolvido em um minuto e
meio, estão a ouvir?
Todos acenaram, afirmativamente, e gritaram: “viva a
chefia”!
10.10
O Dr. Carlos colocou um ponto final na reunião. “Vá, vamos
voltar ao trabalho, para mostrarmos do que somos capazes. Isto durou um
bocadinho mais do que devia, por isso, vamos ter de fazer descontos de tempo.
Hoje ninguém sai antes das oito da noite e vamos fazer um treino adicional no
sábado, um pequeno task force. Podem ir. Cátia, está bem?”
A Cátia não conseguia falar. A cara estava espatifada, o
maxilar torto, não restava nenhum dente. E a respiração, sibilante…O Rui
confirmou que era apenas um pulmão perfurado por três costelas. Estava tudo
bem.
10.11
Os funcionários sentaram-se todos ordeiramente.
O dia passou-se calmamente. Os funcionários assobiavam o
hino da Operativa em ambiente de alegre camaradagem. Outros mostravam fotos:
“olha, isto foi quando te dei aquela biqueirada nos tomates, foi brutal!”
Às 19.30 deu-se a surpresa do dia.
Com um sorriso, o Dr. Carlos saiu de dentro do seu gabinete,
com um pastel de nata na mão.
“Equipa, como agradecimento pelo vosso esforço, comprei esta
prenda, que vamos oferecer à valente
Cátia! Toma lá, Cátia!”
A Cátia estava deitada em cima da mesa, a escrever no
computador, com o único dedo que não se encontrava partido.
“Vá, come o pastel, Cátia!”
A Cátia tentou pegar no pastel, com o dedo, mas deixou-o
cair ao chão.
O Dr. Carlos apanhou o pastel.
“Come o pastel, Cátia!”
O Dr. Carlos aproximou o pastel daquilo que restava da cara
da Cátia, o sangue pisado alastrara-se pela face, tornava-se difícil distinguir
o que quer que fosse.
“Come o pastel, Cátia!”
Lágrimas de esforço desciam-lhe pelos olhos, a Cátia bem
queria comer o pastel, para bem da equipa, mas não lhe restava boca, dentes,
maxilares…
Inadvertidamente, o Dr. Carlos aproximou o pastel do nariz
de Cátia.
Com um esforço sobre-humano, a Cátia, mexia o nariz,
tentando partir bocados pequenos do pastel, para o ir enfiando pela cana do
nariz abaixo.
Aos poucos, foi conseguindo. Pedaço a pedaço, o pastel foi
todo sorvido pelo nariz da Cátia.
A cada bocadinho minúsculo que desaparecia, dizia a equipa
em coro:
“Come o pastel, Cátia!”
A tarefa durou até à meia-noite. O Dr. Carlos tinha afazeres
profissionais e foi-se embora, sendo substituído pelo subchefe.
O subchefe saiu pouco depois e foi substituída pela
assistente.
“Come o pastel, Cátia”.
Quando chegou ao último pedaço, já todos dançavam, em alegre
ambiente de genuína fraternidade, compaixão.
Cantaram, entoando o ritmo do hino da operativa:
“A Cátia é boa companheira….”
“