sexta-feira, setembro 27, 2013

Conto de Outono



O meu amigo é o Sem-Nome.
Ele não gosta nada que o trate assim, acha que Sem-Nome é muito pouco dignificante.
Pergunta-me porque é que não o trato por Óscar, por exemplo. Mas ele não tem cara de Óscar. Os meus outros amigos chamam-no de “Bolinhas”. Isso sim, é um nome um bocado ridículo. Agora, “Sem-Nome” não é nada ridículo. Até tem uma certa pinta. Em abono da verdade, os meus conhecidos têm toda a razão em tratá-lo por Bolinhas, pois ele assemelha-se a isso mesmo, a uma pequena bola de papel. Quer dizer, assemelhava-se, quando o conheci.
Depois, foi aumentando de tamanho. Hoje em dia, os meus conhecidos, quando o tratam por Bolinhas, até estão a ser bastante benevolentes. Actualmente, o meu amigo é mais alto do que eu e bem mais espesso de cintura. Espesso de cintura é uma forma simpática de não o chamar gordo. Porque o Bolinhas ou o Sem-Nome, ou o Óscar, como ele prefere que o tratem, tornou-se gordo, pesado, um fardo de papel sujo e amarfanhado.

Todos os dias se repetem os mesmos rituais. Ele toca à porta um pouco depois da hora de jantar, quando eu estou sentado, na mesa do escritório, a tentar escrever alguma coisa.
“Entra, Óscar, estou a tentar trabalhar”.
Ele entra, sem dizer nada, senta-se na cadeira de baloiço que tenho no escritório e fica a olhar, absorto, para o vazio. Às vezes, pega num copo de whisky e finge bebericar um pouco (toda a gente sabe que ele não toca em álcool, podia manchar-lhe ainda mais os fardos de papel que formam o seu corpo).
Depois, tento começar a trabalhar.

Encaro o martírio do papel em branco, sob o olhar atento do meu amigo.
Pego na caneta e começo a fazer uns rabiscos aleatórios, para ganhar tempo. Mas ele está atento. Por isso, todas as noites, entabula-se entre nós este diálogo, que segue os seguintes termos:

Ele (impaciente, olhando para o relógio): Então, não começas a escrever?
Eu (com um ar entediado): hoje não me apetece, estou cansado. Vamos beber um copo, para desanuviar?
Ele (com um ar entediado): Estás cansado do quê? Do teu trabalhinho na seguradora? Deves passar o dia todo a ver vídeos no facebook. Eu é que estou cansado. Estou mais cansado do que tu, de certeza.
Eu (verdadeiramente espantado): estás cansado do quê? Acordaste às duas da tarde, não saíste de casa e só deves ter caminhado numa distância máxima de dez metros. Por isso é que estás gordo.
Ele: estou cansado por te chamar tanto à atenção. Por isso é que és um escritor falhado. Não tens ambição. Deixas-te andar. Só queres é copos e boa vida. A profissão de escritor não se coaduna com isso. Concentra-te. Escreve!
Eu: Escrevo o quê?
Ele: O que te vier à cabeça. Mas não deixes a folha em branco, que me dá azias.

E começo a escrever o que me vem à cabeça. Regra geral, aparecem-me apenas ideias disparatadas. Quanto mais disparatadas são as minhas ideias, mais o Sem-Nome me incentiva a continuar a escrever.

Ele: Vá, continua com esse conto, que vais bem!

Volta e meia, surge-me uma ideia realmente promissora. Curiosamente, quando começo a escrever uma história realmente boa, o Sem-Nome parece desinteressar-se, boceja, espreguiça-se, resmunga umas palavras inaudíveis.
A sua falta de entusiasmo acaba por me contagiar, ao fim de algum tempo.
Por isso, levanto-me e vou fumar um cigarro ou vou à cozinha comer bolachas de chocolate.
Quando regresso, já lá não estão os rascunhos de papel em que eu estava há trabalhar, minutos antes. Ao princípio, ficava espantado e perguntava:
- Óscar, onde é que está o conto que eu estava a escrever?
Ele respondia-me, evasivo:
- Qual conto?
- Aquele que eu estava a escrever ainda nem há cinco minutos atrás.
- Ah esse…não sei, a janela está aberta, as folhas devem ter sido levadas por uma corrente de ar. Ou foram comidas pelos gatos. Mas escreve uma coisa nova. Muito sinceramente, acho que o conto não estava a sair assim lá grande coisa.

Acabei por perceber que o meu amigo era um bocadinho aldrabão. Afinal, as folhas dos meus contos não são levadas pelas correntes de ar provocadas pelas janelas abertas, nem são comidos pelos gatos. Passam a fazer parte do enorme amontoado de papéis que constituem o corpo do meu amigo. Por razões e por processos que eu nunca consegui perceber, sempre que começo a escrever um conto, um poema, um ensaio, um romance, uma peça processual, um manifesto artístico, algo que me pareça conter uma centelha de criatividade e (porque não), um pouco de génio, o trabalho fica sempre inacabado e vai fazer parte de todo aquele amontoado de peças sujas e desconexas que constituem o meu amigo Óscar.

Ficam apenas os trabalhos medíocres. A esses, o meu amigo nem lhes toca.

Podem perguntar-me porque é que me levanto durante o processo da escrita. Mas não é preciso levantar-me para que me desapareçam as obras. Acontece-me sempre alguma coisa. Às vezes, estou cansado e adormeço um minuto. Outras vezes, vou à casa de banho. Posso ir mudar um disco da aparelhagem, pois eu apenas consigo escrever enquanto escuto música. Ou oiço um barulho no corredor e vou ver o que se passa. Ou levanto-me para ir atender o telefone. Ou espirro.
Sempre que volto a olhar para o meu trabalho, desapareceu. E o corpo do meu amigo Sem-Nome vai ficando cada vez mais rotundo, alimentado pelas minhas folhas caídas.

Podem perguntar-me porque é que não me desembaraço do meu amigo. Mas a verdade é que só consigo escrever quando ele está perto de mim.

E depois, quando a noite já vai bem adiantada, saímos e vamos apanhar ar.
O Sem-Nome vai-se tornando, a cada dia que passa, um conversador cada vez melhor. As minhas amigas adoram as suas tiradas espirituosas, os seus aforismos brilhantes, os seus comentários políticos sociais. Descubro, nos seus discursos, muitas ideias que escrevi nas minhas centenas de histórias inacabadas.

Depois, vamos todos para o jardim. O Sem-Nome levanta-se e começa a cantar, a capela, estranhas melodias, que nos embalam. O vento vai ficando mais forte e arranca várias folhas do corpo do meu amigo. Mas ele mantém-se imperturbável e continua a cantar.

De manhã, enquanto estou no trabalho, lá na seguradora, surpreendo-me, muitas vezes, a cantarolar as suas melodias, de uma forma muito tosca, em nada se assemelhando ao timbre do meu amigo. Penso: “já tenho saudades de ouvir o meu amigo Sem-Nome”.
E ponho-me a pensar, com entusiasmo, em todos os textos que irei escrever durante a noite.