O camião das mudanças
Encontrei a Olga no Funktrampspank, quando passei por lá para beber um copo. Estava óptima, como sempre, e tentei impressioná-la com os meus passos de dança de pombo pinguim javali. Pelo seu olhar, pareceu-me que a impressionava. E impressionei-a. Ela perguntou-me: “andas feliz? Não me pareces nada bem. Acho que precisas mesmo de fazer umas mudanças drásticas na tua vida.”
Com estas palavras, olhou para o relógio e informou-me que estavam à sua espera num outro local bem longe dali. Antes de se ir embora, informou-me que ia fazer um jantar em sua casa, daí a uma semana, e que eu estava convidado. Perguntei-lhe se precisava de ajuda para cozinhar. Respondeu-me com um mal disfarçado sorriso sarcástico, misturado com uma infinita piedade, dizendo-me que não era preciso, quando muito, eu podia levar umas batatas fritas de pacote, mas que tivesse cuidado, quando as comprasse, para ver se ainda estavam dentro do prazo de validade”. Quando disse isto, olhou-me, de novo, com uma redobrada intensidade no olhar e virou-me costas.
Deixou-me a dançar sozinho, na pista de dança e os meus passos de dança de pombo pinguim javali tornaram-se, de repente, acabrunhados e sombrios. Bebi mais um gin tónico e voltei para casa. Estava decidido. Tinha de fazer mudanças drásticas na minha vida.
Cheguei a casa e liguei o computador para fazer umas pesquisas na net. Tinha mesmo de encontrar os maiores especialistas na matéria.
Após uma pesquisa rápida, decidi que o melhor seria pedir ajuda a uma empresa. Fazia todo o sentido. Precisava de fazer mudanças drásticas. Nada melhor do que pedir ajuda aos maiores especialistas. E os grandes especialistas são as grandes empresas. Por isso, procurei empresas de mudanças. Mas que tipo de empresas de mudança?
Descobri que há empresas que só trabalham à hora e há empresas que fazem orçamentos fixos. Decidi-me pelo orçamento fixo. Até porque os sites da especialidade avisam que os serviços à hora apenas são recomendados para mudanças sem complexidade e em que seja evidente que em duas a três horas fica tudo feito. Eu precisava de um pouco mais de duas horas. Uma semana, talvez, para ter tempo de fazer um brilharete no jantar em casa da Olga.
Telefonei para o endereço de uma empresa de mudanças, dei-lhes a minha morada e disseram-me que no dia seguinte iam mandar uma camioneta de mudanças.
Sentindo-me satisfeito com as mudanças profundas que se avizinhavam na minha vida, bebi três gins tónicos e deitei-me a seguir.
Fui acordado pelo insistente toque da campainha. Olhei para o relógio. Eram só duas da tarde. Fiquei assustado. Quem é que me estava a acordar assim tão cedo? Seria uma emergência familiar?
Levantei-me após três bocejos prolongados e oito toques insistentes na campainha da porta.
“Já vai, já vai”.
Abri a porta, mas não vi ninguém. Até que ouvi uma voz fininha, realmente irritante, parecia um daqueles bonecos de borracha que damos aos cães para abocanharem.
Mas eu não tinha cães. Olhei para o chão. Vi uma camioneta, pequena, assim exactamente igual a esta que se encontra nesta imagem em baixo.
“Estava a ver que não abriam a porta. Estou aqui há dez minutos, parada, à espera. A primeira coisa que tens de aprender é que “tempo é dinheiro”. “Roma e Pavia não se fizeram num só dia” e está-me a parecer que não vai ser nem numa semana que começas a mudar de vida, se mantiveres esses hábitos doentios de acordar tarde”.
Não consegui conter uma gargalhada. A camioneta tinha uma voz realmente engraçada.
“Estás-te a rir de quê? Eu estou de pé desde as seis da manhã. Não é nada bonito andares a gozar com quem trabalha”.
“Desculpe, senhora camioneta”, disse-lhe eu, num trejeito de dor, pois a camioneta, num acesso de raiva, pisou-me em cheio no dedo pequeno do pé, com uma daquelas mini rodas dentadas, pequeninas mas bem afiadas.
“Eu nem tenho nada a ver com isso, recebo o mesmo, estejas tu de pé ou deitado. Não percebo é a mentalidade das pessoas que me contratam para uma coisa e depois não querem fazer nada. Por isso é que este país não avança. Querem mudanças, mas querem que as mudanças ocorram enquanto estão a dormir, sem fazerem esforço nenhum.
“Desculpe, mas eu deitei-me tarde…”
“Deitaste-te tarde…a fazer o quê? A jogar playstation? A olhar para a televisão? E como é possível uma pessoa deitar-se com esta bagunça toda em casa? Olhem para este chão de entrada! Umas meias atiradas para um canto, sapatos, migalhas…”
Senti-me um pouco vexado. A verdade é que a camioneta tinha uma certa razão. Meias mal cheirosas. Sapatos. E ela nem reparou na embalagem de iogurte. Nesse instante é que me dei conta… estava à conversa já há uns bons dois minutos e ainda não me tinha apresentado:
“Peço desculpa, mas estou a falar com quem?”
A camioneta fez um trejeito de desdém:
“Com quem é que haveria de ser? Tenho cara de quê? Vendedor de bíblias? Homem das pizzas? Cobrador do gás? Sou a camioneta de mudanças!”
Fiquei espantado e dei-lhe conta disso mesmo.
“Olhe que deve haver aqui um equívoco. Eu disse que precisava de fazer grandes mudanças. Está a perceber? Mudanças drásticas. Com o devido respeito, mas a senhora camioneta não me parece que tenha o tamanho suficiente para…”
A camioneta devia ser bem sabidinha, pois cortou-me o pio num piscar de olhos.
“Já ouvi esse discurso aí umas centenas de vezes. Meu amigo: eu já andava a fazer mudanças drásticas ainda nem tu devias ser nascido, portanto respeitinho, sim? Não conheces ditados populares, está visto. Não podes julgar um livro pela capa.”
Enquanto a camioneta falava, entrou de rompante pela casa e já andava a inspecionar cada recanto. Quando rematou com o “não podes julgar um livro pela capa”, já estava na sala, a olhar para as estantes.
“Por falar em julgar um livro pela capa…tens aí muita literatura, sim senhor! Para quê? Aposto que nem leste metade das coisas que para aqui estão. E se leste, andaste a gastar tempo. São só historinhas. “Antologia de poesia búlgara”! Fantástico! A tua vida mudou com a leitura desse livro? Deve ter mudado sim, perdeste dinheiro a comprar o livro, perdeste tempo a lê-lo, perdeste tempo a tentar compreendê-lo e agora gastas espaço na prateleira para o guardar. E nem sequer tens um sofá confortável! Olha-me para isto! Como é que queres mudar de vida se tens um sofá do tempo da pré-história”?
A camioneta saltou de rompante para o sofá.
“As molas estão todas estragadas. Meu amigo, lição nº 1: o conforto é essencial. Tens de te sentir bem em tua casa. Se tu não te sentes confortável dentro da tua casa, mais ninguém se sente confortável. Está visto. Tens as tuas prioridades todas trocadas. Olha, isto abriu-me o apetite. Estava mesmo a apetecer-me comer qualquer coisa. O que há para comer”?
A pergunta da camioneta apanhou-me desprevenido. A verdade é que eu já não ia às compras há umas semanas. Tinha-me abastecido bastante bem com latas de atum e de sardinha. E o stock de grão e de massa ainda estava com níveis satisfatórios.
“O que queres comer?”, perguntei à camioneta.
“Não sei, o que há? O lha, estava mesmo a apetecer-me um peixinho grelhado, acompanhado de batatas e verduras, depois de uma sopa caseira e uma entrada qualquer.”
“Não tenho sopa. Se quiseres, vou ali num instante buscar uma sopa instantânea ao supermercado. Peixe tenho – atum. Não há salada, mas tenho grão. O grão conta como verdura, não é?”
A camioneta começou a lançar-me impropérios:
“Parece impossível! Estou a falar com um adolescente? Olá! Planeta Terra a chamar o satélite perdido em órbita! Atum em lata? Estamos num acampamento de escuteiros? Desculpa, não queria dizer isso, é um insulto para os escuteiros, coitados dos escuteiros, os escuteiros sabem fazer nós, sabem ver trilhos, montar tendas e orientar-se no meio do mato. Tu nunca deves ter acampado, certo? Ou só acampaste para ires àqueles festivais de verão para fumares droga.”
“A verdade é que não costumo cozinhar para mim. Não sei cozinhar muitas coisas”.
“Não sabes cozinhar muitas coisas. E não queres aprender, não é? Antologia de poesia búlgara, romena, os melhores contos burlescos, ensaio sobre sei lá o quê. E livros de culinária? Nenhum! Sim senhor! Está visto que as prioridades estão mesmo trocadas! Vá, amanha-te e cozinha-me um peixinho fresco. Tenho fome! Quero comer!”
A camioneta começou a fazer uns ruídos realmente esquisitos e irritantes. Uma mistura de buzinas ensurdecedoras, motores ligados ao máximo, misturados com sons de travagem a fundo. E aquela voz de boneco de borracha que damos aos cães para abocanharem. Não me contive:
“Está bem! Eu tento cozinhar-te um peixe! Mas cala-te e ajuda-me a mudar de vida. E ajuda-me a fazer boa figura no jantar em casa da Olga, no próximo fim-de-semana.”
Cedo percebi que a camioneta não fazia os ruídos esquisitos e irritantes apenas quando tinha fome. Fazia esses ruídos quando tinha fome, quando eu não lavava a loiça, quando não varria o chão nem fazia a cama, nem arrumava o quarto ou limpava o ralo da banheira. Começou a fazer os ruídos esquisitos porque dizia que lhe doíam as costas de estar deitada num sofá tão desconfortável, por isso tive de mudar a mobília.
Arranjei um emprego, para fazer face às despesas crescentes. Depois de doze horas seguidas, percebi que a camioneta tem razão. Quando uma pessoa chega a casa, é essencial ter um sofá confortável, para adormecer em meio minuto.
Também percebi que a camioneta tinha os seus momentos de lazer. Quando eu encerava o chão do corredor até este ficar brilhante, sem um vestígio de pó, a camioneta acelerava perigosamente pelo corredor até chegar lá ao fundo, bem perto da parede, para, num último instante, fazer uma miraculosa e fantástica derrapagem, e subir a parede acabada de limpar, num magnífico slalom.
“Bravo, bravo!”, dizia-lhe eu, entusiasmado. Depois, ia logo limpar a parede, que acabara de se sujar com pequenas manchas do produto utilizado para encerar o chão.
No meio de todas essas tarefas, nunca mais me lembrei da Olga nem voltei a meter os pés no Funktrampspank.