Conto de Natal
Desde pequena que Jocasta Damasceno era diariamente atormentada pelo Espírito das Leis.
O tenebroso espectro surgia-lhe a meio da noite e, sem se fazer anunciar, aproximava-se de Jocasta, enquanto esta dormia os seus inocentes sonhos de criança e puxava-lhe os lençóis, o que lhe provocava, obviamente, bastante frio.
Todos sabem que os espectros trazem consigo os arrepios e as temperaturas baixas dos mais rigorosos invernos. Por isso, puxar os lençóis da cama de Jocasta Damasceno parecia ser um capricho um pouco desnecessário (esta teria, provavelmente, acordado à mesma, com o bafo gélido do Espírito das Leis ou, se não acordasse com o seu bafo gélido, acordaria provavelmente com a incandescente luz do Espírito ou com o som da sua voz, parecida com dezenas de trovões desafinados.
"Jocasta...Jocasta Damasceno...escuta o que te digo....daqui fala o Espíriiiito das Leeeeeis...."
Começava sempre assim. Depois, o Espírito das Leis iniciava os seus ensinamentos diários, como este, por exemplo:
"Jocasta...escuta o que te digo. Tens sempre de obedecer e de viver de acordo com o Espírito das Leis.
Sabes o que é o Espírito das Leis, Jocasta? Repara que não estou a falar apenas das Leis numa acepção técnica e específica, como, por exemplo, a Lei complementar e a Lei ordinária.
Não, Jocasta...eu estou a falar das Leis num sentido bastante vasto, ou seja, toda a regra jurídica, escrita ou não. Ou seja, abrange também os costumes. Sabes o que são os costumes, Jocasta? São uma prática social reiterada, acompanhada da convicção da obrigatoriedade.
Deves saber isto na ponta da língua, para não caíres em tentações.
Deves obedecer aos costumes. Mas não a todos os costumes, toma atenção, Jocasta!"
A Jocasta adormecia quase sempre durante as lições e o Espírito das Leis tinha de mandar uma baforada fria para cima da sua cara, o que resultava sempre.
Jocasta Damasceno! Toma atenção, que é importante!Só podes obedecer aos costumes praeter legem e secundum legem, nunca deverás obedecer aos costumes contra legem. Vou agora falar-te dos exercícios da autoridade política que se tornaram pontos doutrinários básicos da ciência política".
Depois do discurso do Espírito das Leis, que durava sempre até de madrugada, Jocasta ainda adormecia, mas já não tinha os sonhos inocentes próprios das criancinhas da sua idade. Sonhava com as diferenças fundamentais entre os costumes praeter legens e contra legens e com os exercícios da autoridade política.
E assim se passaram os anos. Jocasta aprendeu que todo o Direito é emanação da ordem social. Aprendeu o que é a ordem social e aprendeu que lhe devemos todo o respeito, pois devemos respeitar toda a ordem e tudo o que é social, até porque, como o Espírito das Leis bem explicava, social deriva da palavra Latina socii, que significada aliados, e todos sabemos que devemos lealdade para com os nossos aliados.
Jocasta Damasceno continuou a ser atormentada pelo tenebroso espectro a um ritmo diário, durante largos anos. Todas as noites, o Espírito das Leis aproximava-se de Jocasta e puxava-lhe os lençóis, o que lhe continuava a provocar, obviamente, bastante frio.
Até que Jocasta chegou à adolescência. Tornou-se uma bela moça, muito prendada, séria, asseada, respeitadora da boa ordem, dos bons usos, dos bons costumes e amiga dos aliados da ordem social obediente, tal como mandavam os ensinamentos do Espírito das Leis.
Jocasta voltava a pé para casa, todos os dias, vinda das aulas de Metafísica Deontológica Naturalística e os trolhas, os pedreiros, os mestres-de-obra e os capatazes começaram a reparar nela. Ao princípio, talvez por respeito, não diziam nada. Mas, com o passar dos tempos, já cochichavam entre si.
Até que um dia, um dos trolhas, o mais atrevido deles todos, e provavelmente, já com um grãozito na asa, gritou, com uma voz parecida com dezenas de trovões desafinados, mas aquecida pelo bafo de álcool ordinário:
"És memo boa! Queres-te casar comigo, ó princesa? Por ti fazia todo o tipo de cenas, eu até cometia crimes em sentido formal e em sentido material, tás a ver? Tens um corpinho de delito, que nem te conto! Como é que te chamas, ó jóia?".
Jocasta correu para casa, realmente apavorada, a pensar nas tenebrosas palavras do trolha.
Será que ele estaria mesmo disposto a cometer uma violação da lei penal incriminadora? A proceder a uma acção ou omissão que constitui ofensa a um bem jurídico individual ou colectivo?
E, pior que tudo, ficou a saber que tinha um corpo de delito. Sabia bem que o corpo de delito é o conjunto dos vestígios materiais resultantes da prática criminosa. Desde a mais tenra das idades que se habituara a obedecer cegamente ao Espírito das Leis. Como é que poderia continuar a fazê-lo se a sua alma habitava num reles vestígio material resultante da prática criminosa?
Jocasta chegou a casa exausta, depois da longa corrida, e trancou-se na casa de banho. Olhou demoradamente para as mãos. Cerrou os punhos, com força. Olhou para o espelho e pôs-a a observá-lo, demoradamente, pela primeira vez na vida, com a devida atenção.
Com horror, percebeu que sentia um terrível fascínio pela imagem devolvida pelo espelho. Encarava, pela primeira vez, de frente, o terrível inimigo que o Espírito das Leis a havia ensinado a combater, desde pequena: um corpo de delito permanente, cujos vestígios possuíam uma durabilidade extensa e perene. Depois, foi-se deitar, sem comer o jantar.
À noite, o Espírito das Leis atormentou-a com redobrada intensidade. O sermão era sobre a rejeição da ilusão positivista de que a lei é auto suficiente e que a norma não poderá nunca ser vista com abstracção da ordem social. Mas Jocasta nem o ouviu. Pôs-se a pensar no seu corpo de delito, cheia de curiosidade. Queria observá-lo atentamente. Mas, assustada, escondeu-se na penumbra do quarto. Não podia deixar que o Espírito das Leis reparasse em si.
No dia seguinte, bem cedo, foi à loja da esquina e comprou um pack de espanta espíritos, made in China e colocou-os à entrada do seu quarto.
Foi para as aulas de Metafísica Deontológica Naturalística e entrou na sala antes de todos os outros. Não tomou apontamentos e já bocejava quando, a meio da aula, o professor resolveu sentar-se. Acto contínuo, o professor mandou um berro realmente arrepiante. Gritou, enquanto segurava um pionaise, que alguém colocara estrategicamente bem no meio da sua cadeira:
"Quem foi o malandreco que fez isto?"
Ninguém se acusou. Jocasta Damasceno estava na fila de trás, bem embrulhada num longo casaco, que lhe escondia por completo o conjunto dos vestígios materiais resultantes da prática criminosa. Esboçou um sorriso tímido. Nunca as aulas lhe tinham parecido tão divertidas.
De regresso a casa, cantarolava, passou pelos homens das obras e disse-lhes, alegremente:
"Bom dia, trolhas, bom dia pedreiros, bom dia mestres de obras, bom dia capatazes"!
Estes gritaram, em uníssono:
"Oh jóia, tens um corpo de delito que nem te digo".
Jocasta sorriu, radiante.
Quando chegou a casa, trancou-se na casa de banho e admirou-se ao espelho. Tomou um banho demorado e, ao jantar, comeu por três. Havia que alimentar o corpo de delito.
Adormeceu logo, apenas para ser acordada por um grito aflitivo.
"Socorro, socorro, acudaaam-me".
Jocasta quase nem reconheceu a voz do Espírito das Leis.
Assustado pelos espanta-espíritos, gritava com um tom de voz efeminado, nada assustador:
"Jocasta...Jocasta Damasceno...escuta o que te digo....daqui fala o Espíriiiito das Leeeeeis...Jocasta...escuta...porque é que colocaste estes horríveis espanta-espíritos aqui no quarto? Dão-me uns arrepios horríveis..."
"É para não me arrancares os lençóis da cama. Faz-me frio. E devias ter vergonha de destapares uma donzela dessa forma despudorada." - respondeu Jocasta, num tom de voz parecido com dezenas de trovões desafinados. E acrescentou: "se prometeres que não me voltas a destapar, seja em que circunstâncias forem, eu retiro daqui os espanta-espíritos".
O Espírito das Leis concordou, de bom grado. A partir dessa noite, o corpo de delito podia crescer a seu bel-prazer.
Passaram-se os meses. O corpo de delito floresceu, resplandecente, num conjunto de factos criminosos de durabilidade extensa, conscientemente opostos à Lei vigente.
Para contrariar a possível realização de perícias criminais, Jocasta achou por bem esconder os vestígios dos delitos diariamente perpetrados por si, pelo que resolveu, então, espalhar as sementes do seu corpo de delito. Ao princípio, cortava alguns fios de cabelo, as unhas dos pés e das mãos, tirava um macaco do nariz ou juntava os seus fluídos corporais dentro de um frasco. De seguida, embrulhava as sementes do corpo de delito em bonitos papeis coloridos e festivos e enviava-os, incógnitos, pelo correio, para qualquer parte do mundo.
Uns tempos depois já enviava pelo correio outras partes do corpo, primeiro os dedos mindinhos dos pés, depois passou para os outros dedos dos pés, os dedos das mãos, os braços, as pernas... Durante a noite, protegidas pelos lençóis e embaladas e fortalecidas pelas vetustas litanias do Espírito das Leis ancestrais, as partes do corpo arrancadas durante o dia voltavam a crescer, ainda mais fortes e amadurecidas, prontas para cometerem novas práticas opostas à Lei vigente.
Jocasta continuava a voltar a pé para casa, todos os dias. Os polícias sinaleiros, os legisladores, curandeiros e juízes conselheiros reparavam nela e cochivavam, entre si.
Diziam-lhe:
-
Querido leitor. Vou interromper a minha narrativa. Não estarás a ouvir, neste momento, alguém a tocar à porta? Ou não ouves o som de um objecto a cair pela chaminé? Levanta-te e vai ver o que é.
Será um embrulho colorido?
Aproveita para veres o que está dentro do teu sapatinho. E não te espantes se vires lá dentro um belo e delicado pezinho, palpitante de vida.
O tenebroso espectro surgia-lhe a meio da noite e, sem se fazer anunciar, aproximava-se de Jocasta, enquanto esta dormia os seus inocentes sonhos de criança e puxava-lhe os lençóis, o que lhe provocava, obviamente, bastante frio.
Todos sabem que os espectros trazem consigo os arrepios e as temperaturas baixas dos mais rigorosos invernos. Por isso, puxar os lençóis da cama de Jocasta Damasceno parecia ser um capricho um pouco desnecessário (esta teria, provavelmente, acordado à mesma, com o bafo gélido do Espírito das Leis ou, se não acordasse com o seu bafo gélido, acordaria provavelmente com a incandescente luz do Espírito ou com o som da sua voz, parecida com dezenas de trovões desafinados.
"Jocasta...Jocasta Damasceno...escuta o que te digo....daqui fala o Espíriiiito das Leeeeeis...."
Começava sempre assim. Depois, o Espírito das Leis iniciava os seus ensinamentos diários, como este, por exemplo:
"Jocasta...escuta o que te digo. Tens sempre de obedecer e de viver de acordo com o Espírito das Leis.
Sabes o que é o Espírito das Leis, Jocasta? Repara que não estou a falar apenas das Leis numa acepção técnica e específica, como, por exemplo, a Lei complementar e a Lei ordinária.
Não, Jocasta...eu estou a falar das Leis num sentido bastante vasto, ou seja, toda a regra jurídica, escrita ou não. Ou seja, abrange também os costumes. Sabes o que são os costumes, Jocasta? São uma prática social reiterada, acompanhada da convicção da obrigatoriedade.
Deves saber isto na ponta da língua, para não caíres em tentações.
Deves obedecer aos costumes. Mas não a todos os costumes, toma atenção, Jocasta!"
A Jocasta adormecia quase sempre durante as lições e o Espírito das Leis tinha de mandar uma baforada fria para cima da sua cara, o que resultava sempre.
Jocasta Damasceno! Toma atenção, que é importante!Só podes obedecer aos costumes praeter legem e secundum legem, nunca deverás obedecer aos costumes contra legem. Vou agora falar-te dos exercícios da autoridade política que se tornaram pontos doutrinários básicos da ciência política".
Depois do discurso do Espírito das Leis, que durava sempre até de madrugada, Jocasta ainda adormecia, mas já não tinha os sonhos inocentes próprios das criancinhas da sua idade. Sonhava com as diferenças fundamentais entre os costumes praeter legens e contra legens e com os exercícios da autoridade política.
E assim se passaram os anos. Jocasta aprendeu que todo o Direito é emanação da ordem social. Aprendeu o que é a ordem social e aprendeu que lhe devemos todo o respeito, pois devemos respeitar toda a ordem e tudo o que é social, até porque, como o Espírito das Leis bem explicava, social deriva da palavra Latina socii, que significada aliados, e todos sabemos que devemos lealdade para com os nossos aliados.
Jocasta Damasceno continuou a ser atormentada pelo tenebroso espectro a um ritmo diário, durante largos anos. Todas as noites, o Espírito das Leis aproximava-se de Jocasta e puxava-lhe os lençóis, o que lhe continuava a provocar, obviamente, bastante frio.
Até que Jocasta chegou à adolescência. Tornou-se uma bela moça, muito prendada, séria, asseada, respeitadora da boa ordem, dos bons usos, dos bons costumes e amiga dos aliados da ordem social obediente, tal como mandavam os ensinamentos do Espírito das Leis.
Jocasta voltava a pé para casa, todos os dias, vinda das aulas de Metafísica Deontológica Naturalística e os trolhas, os pedreiros, os mestres-de-obra e os capatazes começaram a reparar nela. Ao princípio, talvez por respeito, não diziam nada. Mas, com o passar dos tempos, já cochichavam entre si.
Até que um dia, um dos trolhas, o mais atrevido deles todos, e provavelmente, já com um grãozito na asa, gritou, com uma voz parecida com dezenas de trovões desafinados, mas aquecida pelo bafo de álcool ordinário:
"És memo boa! Queres-te casar comigo, ó princesa? Por ti fazia todo o tipo de cenas, eu até cometia crimes em sentido formal e em sentido material, tás a ver? Tens um corpinho de delito, que nem te conto! Como é que te chamas, ó jóia?".
Jocasta correu para casa, realmente apavorada, a pensar nas tenebrosas palavras do trolha.
Será que ele estaria mesmo disposto a cometer uma violação da lei penal incriminadora? A proceder a uma acção ou omissão que constitui ofensa a um bem jurídico individual ou colectivo?
E, pior que tudo, ficou a saber que tinha um corpo de delito. Sabia bem que o corpo de delito é o conjunto dos vestígios materiais resultantes da prática criminosa. Desde a mais tenra das idades que se habituara a obedecer cegamente ao Espírito das Leis. Como é que poderia continuar a fazê-lo se a sua alma habitava num reles vestígio material resultante da prática criminosa?
Jocasta chegou a casa exausta, depois da longa corrida, e trancou-se na casa de banho. Olhou demoradamente para as mãos. Cerrou os punhos, com força. Olhou para o espelho e pôs-a a observá-lo, demoradamente, pela primeira vez na vida, com a devida atenção.
Com horror, percebeu que sentia um terrível fascínio pela imagem devolvida pelo espelho. Encarava, pela primeira vez, de frente, o terrível inimigo que o Espírito das Leis a havia ensinado a combater, desde pequena: um corpo de delito permanente, cujos vestígios possuíam uma durabilidade extensa e perene. Depois, foi-se deitar, sem comer o jantar.
À noite, o Espírito das Leis atormentou-a com redobrada intensidade. O sermão era sobre a rejeição da ilusão positivista de que a lei é auto suficiente e que a norma não poderá nunca ser vista com abstracção da ordem social. Mas Jocasta nem o ouviu. Pôs-se a pensar no seu corpo de delito, cheia de curiosidade. Queria observá-lo atentamente. Mas, assustada, escondeu-se na penumbra do quarto. Não podia deixar que o Espírito das Leis reparasse em si.
No dia seguinte, bem cedo, foi à loja da esquina e comprou um pack de espanta espíritos, made in China e colocou-os à entrada do seu quarto.
Foi para as aulas de Metafísica Deontológica Naturalística e entrou na sala antes de todos os outros. Não tomou apontamentos e já bocejava quando, a meio da aula, o professor resolveu sentar-se. Acto contínuo, o professor mandou um berro realmente arrepiante. Gritou, enquanto segurava um pionaise, que alguém colocara estrategicamente bem no meio da sua cadeira:
"Quem foi o malandreco que fez isto?"
Ninguém se acusou. Jocasta Damasceno estava na fila de trás, bem embrulhada num longo casaco, que lhe escondia por completo o conjunto dos vestígios materiais resultantes da prática criminosa. Esboçou um sorriso tímido. Nunca as aulas lhe tinham parecido tão divertidas.
De regresso a casa, cantarolava, passou pelos homens das obras e disse-lhes, alegremente:
"Bom dia, trolhas, bom dia pedreiros, bom dia mestres de obras, bom dia capatazes"!
Estes gritaram, em uníssono:
"Oh jóia, tens um corpo de delito que nem te digo".
Jocasta sorriu, radiante.
Quando chegou a casa, trancou-se na casa de banho e admirou-se ao espelho. Tomou um banho demorado e, ao jantar, comeu por três. Havia que alimentar o corpo de delito.
Adormeceu logo, apenas para ser acordada por um grito aflitivo.
"Socorro, socorro, acudaaam-me".
Jocasta quase nem reconheceu a voz do Espírito das Leis.
Assustado pelos espanta-espíritos, gritava com um tom de voz efeminado, nada assustador:
"Jocasta...Jocasta Damasceno...escuta o que te digo....daqui fala o Espíriiiito das Leeeeeis...Jocasta...escuta...porque é que colocaste estes horríveis espanta-espíritos aqui no quarto? Dão-me uns arrepios horríveis..."
"É para não me arrancares os lençóis da cama. Faz-me frio. E devias ter vergonha de destapares uma donzela dessa forma despudorada." - respondeu Jocasta, num tom de voz parecido com dezenas de trovões desafinados. E acrescentou: "se prometeres que não me voltas a destapar, seja em que circunstâncias forem, eu retiro daqui os espanta-espíritos".
O Espírito das Leis concordou, de bom grado. A partir dessa noite, o corpo de delito podia crescer a seu bel-prazer.
Passaram-se os meses. O corpo de delito floresceu, resplandecente, num conjunto de factos criminosos de durabilidade extensa, conscientemente opostos à Lei vigente.
Para contrariar a possível realização de perícias criminais, Jocasta achou por bem esconder os vestígios dos delitos diariamente perpetrados por si, pelo que resolveu, então, espalhar as sementes do seu corpo de delito. Ao princípio, cortava alguns fios de cabelo, as unhas dos pés e das mãos, tirava um macaco do nariz ou juntava os seus fluídos corporais dentro de um frasco. De seguida, embrulhava as sementes do corpo de delito em bonitos papeis coloridos e festivos e enviava-os, incógnitos, pelo correio, para qualquer parte do mundo.
Uns tempos depois já enviava pelo correio outras partes do corpo, primeiro os dedos mindinhos dos pés, depois passou para os outros dedos dos pés, os dedos das mãos, os braços, as pernas... Durante a noite, protegidas pelos lençóis e embaladas e fortalecidas pelas vetustas litanias do Espírito das Leis ancestrais, as partes do corpo arrancadas durante o dia voltavam a crescer, ainda mais fortes e amadurecidas, prontas para cometerem novas práticas opostas à Lei vigente.
Jocasta continuava a voltar a pé para casa, todos os dias. Os polícias sinaleiros, os legisladores, curandeiros e juízes conselheiros reparavam nela e cochivavam, entre si.
Diziam-lhe:
-
Querido leitor. Vou interromper a minha narrativa. Não estarás a ouvir, neste momento, alguém a tocar à porta? Ou não ouves o som de um objecto a cair pela chaminé? Levanta-te e vai ver o que é.
Será um embrulho colorido?
Aproveita para veres o que está dentro do teu sapatinho. E não te espantes se vires lá dentro um belo e delicado pezinho, palpitante de vida.