O lobisomem invisível
Sou o lobisomem invisível, mas os meus amigos não acreditam. Pedem-me provas. Mas que provas lhe poderei dar? Envio-lhes fotografias, fazendo as minhas caretas mais ferozes e sinistras, a boca bem aberta, com os caninos salientes, deixando escorrer a baba, o pêlo encaracolado, bem comprido, arrastando-se pelo chão. Mas os meus amigos não acreditam. Não reparam nas minhas garras, no meu esgar ameaçador, nas minhas mandíbulas sanguinolentas. Vêm apenas a mobília da minha casa, a minha cama, com os lençóis desfraldados, o pijama atirado para o chão, as roupas em desalinho, livros espalhados por todo o lado, restos de comida, embalagens vazias de iogurte.
Sou o lobisomem invisível, mas os meus amigos não acreditam. Riem-se e dizem com a voz sarcástica do costume: pois, não há dúvida de que parece mesmo que passou por aí um lobisomem. E devia ser bem grande, deixou-te a casa toda desarrumada, eheh. E estava com fome, a julgar pelas embalagens vazias de comida no chão, eheh.
Não há volta a dar: sou o lobisomem invisível, mas os meus amigos não acreditam.
Pego na minha câmara de filmar, pouso-a em cima da prateleira e começo a filmar. Volto a ensaiar um ar ameaçador, mas o meu pêlo já não está encaracolado, com a irritação ficou eriçado, gotas de suor caem para o chão, é uma noite de agosto, no pico do verão, 20 e muitos graus lá fora e eu com uma camada tripla de pêlo grosso a proteger-me o corpo, o calor é insuportável, solto um uivo forte, uuuuuhhh, grraaauuu, durante um minuto ou dois. Depois, desligo a câmara de filmar. Envio o video para os meus amigos. "Então, já acreditam?".
Sou o lobisomem invisível, mas os meus amigos não acreditam. Eles riem-se e dizem com a voz sacástica do costume: ahah, estou a ver que andas a ensaiar para a Academia de Estrelas. Ou entraste para alguma banda de black metal?Mas onde é que estavas tu? Não ti vimos em lugar nenhum, no video. Só ouvíamos a voz, eheh.
A minha vizinha do lado não acredita. Telefona-me a implorar para eu fazer pouco barulho, parece impossível tanta gritaria a meio da noite. Eu tento explicar-lhe, sim, é mais forte do que eu, não estou a gritar, é o meu tom de voz normal para as noites de sexta feira, sim menina Marta, não estou a fazer nada de mal, porto-me como um cidadão consciencioso, o problema, menina Marta, é que me transformo num lobisom invisível, com a carne para dentro e os pêlos para fora, com garras afiadas, a palma das mãos peludas, as orelhas pontiagudas, o nariz molhado e os caninos salientes, deixando escorrer a barba.
Sou o lobisomem invisível, mas o meus amigos e a menina Marta não acreditam. A menina Marta chama a polícia, que também não acredita.
Sabem? Sou um lobisomem muito peculiar. Quando sinto o medo e a ameaça a aproximarem-se, as minhas garras retraem-se, num acto reflexo, as minhas mandíbulas deixam de ser salientes, o meu pêlo desaparece, de novo, num golpe de magia. Eu bem tento gritar, com a minha fúria contida: uuuuhhhh, grrraaauuu, mas o som da minha voz torna-se quase inaudível. No momento em que a polícia toca à porta, e diz, num tom de voz autoritário: "polícia, faça o favor de abrir a porta", já eu me transformei num cidadão amistoso, cumpridor da Lei e dos bons costumes. A minha face torna-se suficientemente visível para ser completamente identificada pelos agentes da autoridade. "Muito bem, senhor. A sua vizinha apresentou queixa de si, diz que não a deixa dormir com tanto barulho. Não tem vergonha? Um senhor da sua idade? Já é a quinta vez, este mês que isto acontece".
Eu peço muitas desculpas, prometo comportar-me melhor, de uma forma mais consentânea com um indivíduo da minha idade e da minha situação social.
Não vale a pena estar com mais explicações. Sou o lobisomem invisível, mas os meus amigos, a menina Marta e a polícia não acreditam.
Não os condeno. Que provas lhes poderei dar?
Mal a polícia se afasta do prédio, voltam a crescer-me os dentes caninos e o pêlo do corpo. Os meus olhos ficam, de novo, afogueados, o ventre aberto, quase sangrando. São duas da manhã. É a hora em fico com uma incontrolável vontade de sair à rua. Desço as escadas do prédio a correr, os trinta andares são atravessados em poucos segundos, durante as quais assumo todas as formas reconhecíveis dos lobisomens, nas várias vertentes do imaginário popular: bezerro negro com longas orelhas. Burro. Bode. Onça. Cão que solta fogo pela boca. Mula branca com cabeça de homem. Sombra escura. Mas ninguém me vê, Sou o lobisomem invisível.
Chego cansado ao vão das escadas do prédio. Agora já não me apetece sair à rua. Contentar-me-ei com a primeira mulher que me aparecer. Subo um lanço de escadas, até ao primeiro andar, reúno as minhas forças e arrombo a porta da Doutora Sofia, uma senhora divorciada, na casa dos 40, já a roçar os 50. Descubro que já está no quarto, a dormir. Não ouviu nada. Eu aproximo-me, entro sorrateiramente no seu quarto, na forma mais sorrateira possível para um lobisomem, mesmo que invisível. Reparo que a minha excitação atinge a pujança máxima neste instante em que me aproximo da minha presa, a Doutora Sofia, que me parece irresistível, mesmo que esteja a aproximar-se da casa dos 50.
No instante em que a Doutora Sofia já adivinha o meu bafo quente, e que, por isso, fica com um sorriso rasgado na cara, como que pressentindo um sonho mais quente, dá-se a minha terceira transformação.
Acontece sempre isto, nestes momentos de quase gozo dos prazeres terrenos. Contaminado pela excitação, o meu corpo dissipa-se e transformo-me num fantasma. Pelas três da manhã sou o lobisomem invisível incorpóreo. Nos seus sonhos, a Doutora Sofia parece compreender a transformação. O seu rosto retrai-se, o sorriso desaparece e fica um triste esgar de resignação.
Quanto a mim, volto a sair pela porta arrombada, subo as escadas num passo lento e entro, de novo, no meu apartamento. Por sorte, a porta ficou aberta.
Sento-me no sofá e deixo-me ficar a ver as séries policiais que passam à noite, no canal por cabo, ao fim de semana. Vejo o que está a dar. Não posso pegar no controlo remoto. Sinto-me triste, mas nem penso em falar com os meus amigos, no chat do facebook. Não conseguiria carregar nas teclas, atendendo ao meu estado peculiar.
De qualquer forma, não serviria de nada. Sou o lobisomem invisível incorpóreo, mas os meus amigos não acreditam.
Adormeço pouco depois, hipnotizado pelas séries policiais. Deixo-me embalar por sonhos reconfortantes.
Mesmo antes de adormecer, surge-me um último pensamento: coitada da Doutora Sofia. Lá terá de comprar mais uma porta. Só este mês, já é a 5ª, e ainda estamos no dia 20.
Sou o lobisomem invisível, mas os meus amigos não acreditam. Riem-se e dizem com a voz sarcástica do costume: pois, não há dúvida de que parece mesmo que passou por aí um lobisomem. E devia ser bem grande, deixou-te a casa toda desarrumada, eheh. E estava com fome, a julgar pelas embalagens vazias de comida no chão, eheh.
Não há volta a dar: sou o lobisomem invisível, mas os meus amigos não acreditam.
Pego na minha câmara de filmar, pouso-a em cima da prateleira e começo a filmar. Volto a ensaiar um ar ameaçador, mas o meu pêlo já não está encaracolado, com a irritação ficou eriçado, gotas de suor caem para o chão, é uma noite de agosto, no pico do verão, 20 e muitos graus lá fora e eu com uma camada tripla de pêlo grosso a proteger-me o corpo, o calor é insuportável, solto um uivo forte, uuuuuhhh, grraaauuu, durante um minuto ou dois. Depois, desligo a câmara de filmar. Envio o video para os meus amigos. "Então, já acreditam?".
Sou o lobisomem invisível, mas os meus amigos não acreditam. Eles riem-se e dizem com a voz sacástica do costume: ahah, estou a ver que andas a ensaiar para a Academia de Estrelas. Ou entraste para alguma banda de black metal?Mas onde é que estavas tu? Não ti vimos em lugar nenhum, no video. Só ouvíamos a voz, eheh.
A minha vizinha do lado não acredita. Telefona-me a implorar para eu fazer pouco barulho, parece impossível tanta gritaria a meio da noite. Eu tento explicar-lhe, sim, é mais forte do que eu, não estou a gritar, é o meu tom de voz normal para as noites de sexta feira, sim menina Marta, não estou a fazer nada de mal, porto-me como um cidadão consciencioso, o problema, menina Marta, é que me transformo num lobisom invisível, com a carne para dentro e os pêlos para fora, com garras afiadas, a palma das mãos peludas, as orelhas pontiagudas, o nariz molhado e os caninos salientes, deixando escorrer a barba.
Sou o lobisomem invisível, mas o meus amigos e a menina Marta não acreditam. A menina Marta chama a polícia, que também não acredita.
Sabem? Sou um lobisomem muito peculiar. Quando sinto o medo e a ameaça a aproximarem-se, as minhas garras retraem-se, num acto reflexo, as minhas mandíbulas deixam de ser salientes, o meu pêlo desaparece, de novo, num golpe de magia. Eu bem tento gritar, com a minha fúria contida: uuuuhhhh, grrraaauuu, mas o som da minha voz torna-se quase inaudível. No momento em que a polícia toca à porta, e diz, num tom de voz autoritário: "polícia, faça o favor de abrir a porta", já eu me transformei num cidadão amistoso, cumpridor da Lei e dos bons costumes. A minha face torna-se suficientemente visível para ser completamente identificada pelos agentes da autoridade. "Muito bem, senhor. A sua vizinha apresentou queixa de si, diz que não a deixa dormir com tanto barulho. Não tem vergonha? Um senhor da sua idade? Já é a quinta vez, este mês que isto acontece".
Eu peço muitas desculpas, prometo comportar-me melhor, de uma forma mais consentânea com um indivíduo da minha idade e da minha situação social.
Não vale a pena estar com mais explicações. Sou o lobisomem invisível, mas os meus amigos, a menina Marta e a polícia não acreditam.
Não os condeno. Que provas lhes poderei dar?
Mal a polícia se afasta do prédio, voltam a crescer-me os dentes caninos e o pêlo do corpo. Os meus olhos ficam, de novo, afogueados, o ventre aberto, quase sangrando. São duas da manhã. É a hora em fico com uma incontrolável vontade de sair à rua. Desço as escadas do prédio a correr, os trinta andares são atravessados em poucos segundos, durante as quais assumo todas as formas reconhecíveis dos lobisomens, nas várias vertentes do imaginário popular: bezerro negro com longas orelhas. Burro. Bode. Onça. Cão que solta fogo pela boca. Mula branca com cabeça de homem. Sombra escura. Mas ninguém me vê, Sou o lobisomem invisível.
Chego cansado ao vão das escadas do prédio. Agora já não me apetece sair à rua. Contentar-me-ei com a primeira mulher que me aparecer. Subo um lanço de escadas, até ao primeiro andar, reúno as minhas forças e arrombo a porta da Doutora Sofia, uma senhora divorciada, na casa dos 40, já a roçar os 50. Descubro que já está no quarto, a dormir. Não ouviu nada. Eu aproximo-me, entro sorrateiramente no seu quarto, na forma mais sorrateira possível para um lobisomem, mesmo que invisível. Reparo que a minha excitação atinge a pujança máxima neste instante em que me aproximo da minha presa, a Doutora Sofia, que me parece irresistível, mesmo que esteja a aproximar-se da casa dos 50.
No instante em que a Doutora Sofia já adivinha o meu bafo quente, e que, por isso, fica com um sorriso rasgado na cara, como que pressentindo um sonho mais quente, dá-se a minha terceira transformação.
Acontece sempre isto, nestes momentos de quase gozo dos prazeres terrenos. Contaminado pela excitação, o meu corpo dissipa-se e transformo-me num fantasma. Pelas três da manhã sou o lobisomem invisível incorpóreo. Nos seus sonhos, a Doutora Sofia parece compreender a transformação. O seu rosto retrai-se, o sorriso desaparece e fica um triste esgar de resignação.
Quanto a mim, volto a sair pela porta arrombada, subo as escadas num passo lento e entro, de novo, no meu apartamento. Por sorte, a porta ficou aberta.
Sento-me no sofá e deixo-me ficar a ver as séries policiais que passam à noite, no canal por cabo, ao fim de semana. Vejo o que está a dar. Não posso pegar no controlo remoto. Sinto-me triste, mas nem penso em falar com os meus amigos, no chat do facebook. Não conseguiria carregar nas teclas, atendendo ao meu estado peculiar.
De qualquer forma, não serviria de nada. Sou o lobisomem invisível incorpóreo, mas os meus amigos não acreditam.
Adormeço pouco depois, hipnotizado pelas séries policiais. Deixo-me embalar por sonhos reconfortantes.
Mesmo antes de adormecer, surge-me um último pensamento: coitada da Doutora Sofia. Lá terá de comprar mais uma porta. Só este mês, já é a 5ª, e ainda estamos no dia 20.