...o deserto vai a Algazel

Algazel queria partir para o deserto. Aprender, à semelhança dos grandes mestres místicos, a recusa da vida. Mas Algazel amava-a profundamente. Perguntou se há um momento em que a partida é inevitável, e meditou durante muito tempo nesta dúvida. Assim foi passando o tempo, até que mergulhou no silêncio em definitivo. Um silêncio que alastrou até ao próprio pensamento, um silêncio que silenciou o tempo, e Algazel já não era senão a areia que restava na parte superior desta gigantesca ampulheta, a areia de que é feito o deserto.

Le plus profond

Pele

«Quem foi que à tua pele conferiu esse papel
de mais que tua pele ser pele da minha pele»

(David Mourão-Ferreira)

Bigger than life em technicolor

Entremez Do Menino Luís, Português, 35 anos, Economista

- Bom dia!
- Huuummm... bom dia!
- Não me reconhece, pois não?
- Ahhhh.... não, desculpe...
- Não faz mal, já foi há tanto tempo! Durante vários anos tomei conta do menino, ali na sua casa, durante o Verão!
- Foi? Ah, talvez me lembre, a senhora é.... é.... a dona... ahhhh.....
- Lucinda! E o senhor é o menino Luís, não é?
- Sim, é verdade!
- Já quase não me reconhecia! Como é que eu não podia estar velha, o menino já tem 35 anos, não é?
- Sim!! É verdade, por acaso, fiz anos há pouco tempo....
- Eu sei! O menino faz anos a 8 de Maio, não é?
- Huuuummm.... sim, está correcto!
- Nasceu às 15h50m! Nota-se bem que o seu ascendente é Balança!
- Realmente, acho que nasci à tarde, mas não sou grande especialista em Astrologia, sabe que...
- Menino que já é Doutor! Formou-se em Economia já lá vão 10 anos, não é?
- Sim!! Mas como....
- Então, o que veio fazer hoje à terra?
- Ah.... tenho uma reunião.... tenho de tratar de uns.... negócios....
- Já sei! Já sei! Olhe que não deve ceder a chantagens!
- Hã??
- Sim, lá porque o Cardoso o viu na eira, junto ao seu terreno, a esconder o corpo daquela desgraçada daquela rapariga, a Luisinha, não quer dizer que tenha o direito a fazer-lhe chantagem e a pedir-lhe 10 mil euros!
- Bem... fale mais baixo, por amor de Deus! Não sei onde é que a senhora foi buscar essa ideia...
- Até porque a mulher do menino também não é propriamente uma santinha....
- O quê???!!!
- Sim, neste preciso momento em que o menino está a falar comigo, ela está na cama com o melhor amigo do menino, na casa dele!
- O quê??! Como é possível a senhora dizer-me uma coisa dessas?
- Na casa dele, que fica na Estrada Militar, nº4, 2ºandar! Que safadeza, da parte dele! Então, da mulher do menino, que lhe mentiu e lhe disse que estava no estrangeiro, em negócios....
- E está!! Isto é...acho que está....
- Se bem que eu até a compreenda...
- Como assim???!!!
- Sabe, o menino já devia ter resolvido os seus problemas...
- Quais problemas?
- De... impotência, claro! Desculpe a franqueza, mas não há mulher que aguente 4 anos sem nada!!
- Bem... olhe, tenho de me ir embora já!
- Sim, volte depressa à cidade e tenha uma conversa com a sua mulher! Talvez ainda a encontre! Não se esqueça: Estrada Militar, nº4, 2ºandar.
- Sim. Deixe que lhe pague o café!
- Que disparate, menino! Ainda por cima, foi despedido ontem, e tudo! Deixe que lhe dê um conselho: conte estas coisas a alguém, a um psiquiatra, senão ainda enlouquece!
- Está bem, está bem, tem toda a razão!!!
- Vá! E não se enerve, tenha cuidado a conduzir! Não se esqueça que o prazo para fazer a inspecção ao automóvel já acabou há uma semana e que o pneu dianteiro esquerdo está um pouco defeituoso, principalmente desde que galgou aquele passeio alto, na Avenida dos Combatentes, quando ia preencher o totoloto!
- Eu conduzo com cuidado! Prometo!
- E a gasolina! Com o que meteu no caminho, o depósito já só dá para 32 quilómetros....

Pulga

O Juan abriu o "1º Campeonato Mundial de Imitadores de Estilos Literários a Partir da Imagem do Frango Frito". Já lá estão Bernardo Soares, Kafka, Henry Miller e Dostoievsky.

A morada para envio de textos está aqui. Peguem já nas cábulas e canetas e participem!

Cuculito

«É certo que a Arte consiste no aperfeiçoamento da forma. Mas vós – e deparamo-nos aqui frequentemente com um outro cardeal erro vosso – imaginais que a Arte consiste na criação de obras perfeitas; reduzis aquele imenso e pan-humano processo de criar a forma a produzir poemas ou sinfonias; e, mais ainda, nunca soubestes apreciar devidamente, e aclará-lo para os demais, quão enorme é o papel da forma na nossa vida. Mesmo na psicologia, não soubestes consignar à forma o lugar devido. Até agora continuamos a julgar que são os sentimentos, instintos ou ideias que regem a nossa conduta, enquanto que a forma a consideramos antes como um inofensivo e suplementário adorno. E quando a viúva, acompanhando o ataúde do seu marido, chora com ternura, nós pensamos que chora porque sente dolorosamente a sua perda. Quando algum engenheiro, médico ou advogado assassina a sua esposa, filhos ou amigo, opinamos que se deixa levar para o assassinato por sanguinários e raivosos instintos. Quando algum político se expressa estúpida, mentirosa e limitadamente no seu discurso público, dizemos que é estúpido porque estupidamente se expressa. Mas na realidade o assunto apresenta-se assim: o ser humano não se exterioriza de modo imediato e concordante com a sua natureza, mas sempre numa forma definida; e esta forma, aquele estilo, modo de ser, modo de falar e reagir, não provém só dele, mas é-lhe imposto desde o exterior; e passa-se aqui que este mesmo homem pode manifestar-se por fora, ora sábia, ora estupidamente, sanguinária ou angelicamente, madura ou imaturamente, segundo a forma, o estilo que se lhe apresente e no modo como é pressionado ou limitado pelo próximo. E se os vermes e insectos correm e voam todo o dia em busca de comida, nós, sem nenhum momento de descanso, sem cessar, estamos em busca da forma de expressão, batalhamos com outros homens pelo estilo, pelo nosso modo de ser e, viajando num eléctrico, comendo, divertindo-nos ou descansando ou fazendo negócios, sempre e sem cessar buscamos a forma e deleitamo-nos com ela, ou sofremos por ela, ou nos adaptamos a ela, a quebramos e violamos, ou nos deixamos violar por ela, amén.»

(Witold Gombrowicz, Ferdydurke)

Rifão Quotidiano

"Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia

chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a

é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece"

(Mário-Henrique Leiria)

Filmes Bonitos Para Ver Em Família