Sócrates - Os Outros
Do diário de Kierkegaard (52 X 4 A 497)
Cerebral-místico-palaciano. «Do not go gentle into that good blog»
Claire Parnet: J de Joie [Alegria]. É um conceito do qual você gosta muito, pois é um conceito de Espinosa, que tornou a alegria num conceito de resistência e vida. "Evitemos as paixões tristes e vivamos com alegria para ter o máximo da nossa potência; fugir da resignação, da má-consciência, da culpa e de todos os afectos tristes que padres, juízes e psicanalistas exploram". Percebe-se perfeitamente o que é que você gosta nisto tudo. Gostaria agora que distinguisse a alegria da tristeza e explicasse a distinção de Espinosa. Você descobriu alguma coisa no dia em que leu isso?
Gilles Deleuze: Sim, porque são os textos mais extraordinariamente carregados de afectos em Espinosa. Vou simplificar muito, mas quero dizer que a alegria é tudo o que consiste em preencher uma potência. Sente-se alegria quando se preenche, quando se efectua uma das suas potências. Voltemos aos nossos exemplos: eu conquisto, por menor que seja, um pedaço de cor. Entro um pouco na cor. Pode imaginar a alegria que isso representa? Preencher uma potência é isso, efectuar uma potência. Mas o que é equívoco é a palavra "potência". E o que é a tristeza? É quando estou separado de uma potência da qual eu me achava capaz, estando certo ou errado. "Eu poderia ter feito aquilo, mas as circunstâncias... não era permitido, etc." É aí que ocorre a tristeza. Qualquer tristeza resulta de um poder sobre mim.
GD: Eu dizia que efectuar algo da sua potência é sempre bom. É o que diz Espinosa. Mas isso traz problemas. É preciso especificar que não existem potências más. O que é mau não é... O mau é o menor grau de potência. E este grau é o poder. O que é a maldade? É impedir alguém de fazer o que ele pode, é impedir que este alguém efectue a sua potência. Portanto, não há potência má, há poderes maus. E talvez todo o poder seja mau por natureza. Não, talvez seja muito fácil dizer isso. Mas mostra bem a ideia da ... A confusão entre poder e potência é arrasadora, porque o poder separa sempre os sujeitos que lhe estão submissos, separa-os do que eles podem fazer. Tanto que foi deste ponto que Espinosa partiu. Como você citou: "A tristeza está ligada aos padres, aos tiranos..."
GD: São pessoas que separam os outros do que eles podem, que proíbem as efectuações de potência. Curiosamente, há pouco, você falou da reputação de anti-semitismo de Nietzsche. Neste exemplo, vê-se essa questão muito importante. Há textos de Nietzsche que poderiam parecer preocupantes se são lidos muito rapidamente, e não da forma como propomos que os filósofos sejam lidos. Em todos os textos em que fala do povo judeu, o que é que Nietzsche critica nele? O que fez com que, em seguida, dissessem que Nietszche era um anti-semita? É interessante, pois o que ele repreende no povo judeu, em condições específicas, é o facto deste povo ter inventado uma personagem que não existia antes: o padre. Eu não conheço nenhum texto de Nietzsche a respeito dos judeus sob a forma de um ataque. O ataque é contra o povo que inventou o padre. Segundo ele, nas outras formações sociais, existem feiticeiros, escribas, mas nenhum deles é a mesma coisa que o padre. Eles inventaram uma coisa impressionante e Nietzsche, que tem grande força filosófica, não deixou de admirar o que detesta, ele disse: "Mas é incrível ter inventado o padre! É uma coisa prodigiosa". Em seguida, fez a ligação directa dos judeus com os cristãos. Só que não é o mesmo tipo de padre. Os cristãos conceberam outro tipo de padre e continuaram no mesmo caminho: com a personagem do sacerdote. Pode ver-se o quanto a filosofia é concreta. Eu diria que Nietzsche é o primeiro filósofo a ter inventado, criado o conceito de padre. E, a partir daí, trouxe um problema fundamental que é: em que consiste o poder sacerdotal? Qual é a diferença entre o poder sacerdotal e o poder real? Estas são questões ainda muito actuais. Pouco antes da sua morte, Foucault tinha encontrado a mesma coisa, só que com seus próprios meios. Aí poderíamos retomar tudo sobre o que é prolongar a filosofia. Foucault também sugere um poder pastoral, um novo conceito diferente mas que, ao mesmo tempo, se encaixa no de Nietzsche. Por aí, existe uma história do pensamento. E o que é este poder de padre e como é que ele está ligado à tristeza? Segundo Nietzsche, o padre define-se desta forma: ele inventou a ideia de que os homens estão num estado de dívida infinita. Eles têm uma dívida infinita. Antes havia histórias de dívida, mas Nietzsche precedeu todos os etnólogos. Aliás, os etnólogos deveriam ler Nietzsche. Eles descobriram bem depois de Nietzsche que, nas sociedades primitivas, havia permutas de dívidas. Não funcionava tanto através da troca, como se pensava, mas por partes de dívidas: uma tribo tinha uma dívida para com outra tribo, etc. Eram blocos de dívidas finitas: recebiam e devolviam. A diferença em relação à troca é que havia a realidade do tempo. Era uma restituição diferida. É importante! A dívida precede a troca. São questões filosóficas: a permuta, a dívida, a dívida que precede a troca. É um grande conceito filosófico. Digo filosófico porque Nietzsche o disse antes dos etnólogos. Mas enquanto
GD: Essa é uma pergunta pessoal. Sim, eu sempre gostei da elegia. Ela é uma das duas fontes da poesia, uma das principais fontes da poesia. É o grande lamento. Há uma grande história a ser feita sobre a elegia. Não sei se já foi feita, mas é muito interessante. Há o lamento do profeta. O profetismo é inseparável do lamento. O profeta é aquele que se lamenta e diz: "Mas por que é que fui escolhido por Deus? O que é que eu fiz para ser escolhido por Deus?" Neste sentido, ele é o contrário do padre. Ele queixa-se do que acontece com ele. O que significa: "É grande demais para mim". Eis o que é a queixa: "O que está a acontecer comigo é grande demais para mim". Aceitando, pois, o lamento, o que nem sempre se vê, pois não é só "Ai, ai, que dor!", mas também pode ser. Aquele que se queixa nem sempre sabe o que está a querer dizer. A velha senhora que se queixa de seu reumatismo está, na verdade, a querer dizer: "Que potência é que se está a apoderar da minha perna e que é grande demais para que eu a suporte?" Se formos procurar na História, é muito interessante, pois a elegia é, antes de tudo, a fonte da poesia. É a única poesia latina. Na época, eu lia muito os grandes poetas latinos: Catulo, Tibúrcio e outros. São poetas prodigiosos. O que é a elegia? Acho que é a expressão daquele que já não tem um estatuto social, temporariamente ou não. É por isso que é interessante. Um pobre velho que se queixa. Um homem nas galés que se queixa. Não tem nada a ver com tristeza, é a reivindicação. Há uma coisa na queixa que é impressionante. Existe uma adoração na queixa, é como uma oração. Os queixumes populares, tudo... A queixa do profeta, ou a de um tema que você conhece bem, que é a queixa do hipocondríaco. O hipocondríaco é alguém que se lamenta. E as queixas do hipocondríaco são bonitas: "Por que é que tenho um fígado? Por que é que tenho um baço?" Não é o "Ai, como dói!", e sim "Por que é que tenho órgãos?" Porquê isso, porquê aquilo... O lamento é sublime! O queixume popular, o lamento do assassino, que é cantado pelo povo... São os excluídos sociais que estão em situação de lamento. Há um especialista húngaro chamado Tökel, que fez um estudo sobre a elegia chinesa no qual mostra que a elegia chinesa é, acima de tudo, animada por aquele que já não tem estatuto social, um escravo livre. Um escravo ainda tem um estatuto, por mais desgraçado que seja. Pode ser infeliz e espancado, mas tem um estatuto social. Mas há períodos em que o escravo livre não tem estatuto social, ele está fora de tudo. Deve ter sido assim para a geração dos negros na América com a abolição da escravatura. Quando houve a abolição, ou então na Rússia, não lhes tinham previsto um estatuto social e foram excluídos. Interpretam erroneamente como se eles quisessem voltar a ser escravos! Eles não tinham estatuto. É neste momento que nasce o grande lamento. Mas não é pela dor, é uma espécie de canto e é por isso que é uma fonte poética. Se eu não fosse filósofo e fosse mulher, gostaria de ter sido uma carpideira. A carpideira é uma maravilha porque o lamento cresce. É toda uma arte! Além do mais, tem um lado pérfido: não se queixe por mim, não me toque. É um pouco como as pessoas demasiado polidas. Pessoas querendo ser cada vez mais polidas. Não me toque! Há uma espécie de... A queixa é a mesma coisa: "não tenha pena de mim, disso cuido eu". Mas ao cuidar disso, a queixa transforma-se. E voltamos à questão de algo ser grande demais para mim. A queixa é isto. Eu bem que gostaria de todas as manhãs sentir que o que vivo é grande demais para mim porque seria a alegria no seu estado mais puro. Mas deve-se ter a prudência de não exibi-la, pois há quem não goste de ver pessoas alegres. Deve-se escondê-la num tipo de lamento. Mas este lamento não é só a alegria, também é uma inquietude louca. Efectuar uma potência, sim, mas a que preço? Será que posso morrer? Assim que se efectua uma potência, coisas simples como um pintor que aborda uma cor, surge esse temor. Ao pé da letra, afinal, acho que não estou a fazer Literatura quando digo que a forma como Van Gogh entrou na cor está mais ligada à sua loucura do que fazem supor as interpretações psicanalíticas, e que são as relações com a cor que também interferem. Alguma coisa pode perder-se, é grande demais. Aí está o lamento: é grande demais para mim. Na felicidade ou na desgraça... Em geral, na desgraça. Mas isso é um detalhe.