quarta-feira, setembro 15, 2010

Diário de um Funcionário Público: o Meu Colega Romualdo

Os meus colegas da Direcção-Geral de Impostos são muito simpáticos. Hoje, fui almoçar com um deles, que trabalha noutro Departamento, nas Execuções Fiscais. Chama-se Romualdo Castelo. Mudou de emprego há dois meses. Não percebi bem onde trabalhava antes, mas viveu momentos dramáticos. Eis o que o Romualdo me contou:

“Ganhava bastante bem, e tinha um bom Gabinete. Partilhava a sala com uma colega, a Joaninha. Percebi, logo no primeiro dia, que ela era irritantemente prestável.
“Estou com fome”, disse-lhe, a meio da manhã.
Ela atirou-me um pacote de bolachas Maria:
- Podes comê-las todas, se quiseres. Eu tenho mais cinco pacotes
Para ser simpático, agradeci-lhe, sorrindo, e comi uma bolacha.

A minha colega de trabalho, que era irritantemente prestável, ficou imensamente satisfeita por me ter sido prestável. Por isso, atirou-me com outro pacote de bolachas Maria, com um pacote de barras de cereal, com cinco diferentes tipos de peças de fruta, e com doze tipos diferentes de sandes.
- Podes comer o que quiseres!

Agradeci-lhe, sorrindo, e peguei nas cerejas.
A minha colega de trabalho, que era irritantemente prestável, ofereceu-se logo para me descascar as cerejas, e para tirar os caroços.
Agradeci-lhe, sorrindo.
Depois, como não havia caixote do lixo, a minha colega de trabalho, que era irritantemente prestável, engoliu os caroços, com um sorriso.
Eu disse-lhe:
- Agora, o que me apetecia mesmo, era um belo de um cigarrinho. Mas não tenho nenhum aqui comigo…
A minha colega de trabalhou exclamou logo:
- Toma um dos meus. Se não quiseres estes, tenho cigarros de outras marcas – Marlboro, Camel, John Player Special, Português Suave, Ritz e Lucky Strike. Tenho dos normais, e dos Light.
“Ah, não”, disse-lhe eu, para fazer pirraça. Só fumo cigarros vindos da zona da fronteira Paris/China.
A minha colega de trabalho, que era irritantemente prestável, ficou a pensar, durante uns segundos, e respondeu:
- Tenho uma amiga, a Siang Mae, que mora para esses lados. Vou-lhe telefonar agora.
Pegou no telemóvel, e marcou um número:
- Estou sim, Siang Mae? Podias trazer-me uns cigarros, aqui ao trabalho? Eu sei que estás a 10.000 quilómetros de distância, mas eu pago-te o avião.

No dia seguinte, lá apareceu a Siang Mae, com vinte maços de cigarros da zona Paris/China.
Eu disse-lhe:
- Muito obrigado, mas agora apetecia-me um charuto cubano.
A minha colega de trabalho, que era irritantemente prestável, ficou a pensar, durante uns segundos, e respondeu:
- Tenho um amigo, o Fidel, que mora para esses lados. Vou-lhe telefonar agora.
No dia seguinte, enquanto dava umas baforadas no charuto cubano, perguntei à minha colega:
- Quanto é que te devo?
E a minha colega, que era irritantemente prestável, respondeu:
- Não é nada, que disparate!

Quando eu tinha uma leve dor de cabeça, a minha colega de trabalho, que era irritantemente prestável, arranjava-me aspirinas, ou outros cinco tipos diferentes de medicamentos.
Se não me apetecia acabar um Processo, passava-lho para as mãos. Ela terminava-o em meio tempo, e acabava todos os meus outros Processos, e fazia apontamentos explicativos, em cada um deles, com toda a legislação aplicável, e os Acórdãos aplicáveis ao longo de todos os tempos, sobre cada um deles.

A minha colega, que era irritantemente prestável, tinha amigos em todos os tipos de profissão, em todos os estratos sociais, e em todos os cantos do globo.
Quando falei do meu interesse em comprar uma casa, ela prontificou-se a ajudar, e meteu-me em contacto com dez amigos diferentes, que tinham casas fantásticas para arrendar, e para vender, já totalmente mobiladas, e situadas em óptimos locais, mesmo no centro de qualquer cidade do mundo.

Mudei-me para uma dessas casas. Os meus vizinhos, que também eram amigos da minha colega irritantemente prestável, eram igualmente irritantemente prestáveis, e tocavam-me à porta, a toda a hora, e perguntavam-se se tinha fome, se precisava de almoço, jantar, ou lanche, ou se precisava que me passassem a roupa a ferro.
Os donos dos restaurantes ao pé de minha casa eram igualmente prestáveis, e ofereciam-me refeições de graça.

A minha colega irritantemente prestável perguntava-me sempre, logo pela manhã, depois de me ter oferecido mais um pacote de bolachas Maria, se eu estava satisfeito.
“Nem por isso”, respondia, mal-humorado. “O Sporting perdeu, pela 5ª vez consecutiva”.
E a minha colega, que era irritantemente prestável, dizia-me que era amiga dos presidentes de todas as Ligas de Clubes do mundo, era madrinha de casamento dos Presidentes dos clubes rivais, e podia fazer alguma coisa por mim.

O Sporting começou a ganhar.
A minha amiga, que era irritantemente prestável, perguntava-me, logo depois de me oferecer outro pacote de bolachas Maria, se eu estava mais satisfeito, e eu respondia que sim, mas que estaria ainda mais satisfeito se o Sporting começasse a ganhar sempre por 7-0, e não pela magra vantagem de um ou dois golos, e a minha amiga irritantemente prestável logo disse que podia fazer algo por isso, e o Sporting começou a ganhar por 10-0 todos os jogos, até que me cansei de ver futebol, e ligava a televisão para as notícias, e era sempre a mesma coisa, incêndios de verão, e mais incêndios de verão, até que a minha amiga, que era irritantemente prestável, vendo que eu me aborrecia com a programação, quis fazer alguma coisa pelo assunto, não acabou com os incêndios de verão, mas disse que era amiga dos Directores das Televisões, e os Directores das Televisões, que eram igualmente irritantemente prestáveis, tocavam-me à porta, e perguntavam que programas queria eu ver.

Passado uns tempos, comia de graça, via os programas que queria, não necessitava de trabalhar, mas sentia-me cada vez mais irritado sempre que a minha colega, que era irritantemente prestável, me atirava, logo de manhã, com um pacote de bolachas Maria, e me perguntava como estava, como me sentia, e eu suspirava, e a minha colega de trabalho, que era irritante prestável, suspirava também, e nada me dizia.

Até que, farto da situação, pedi à minha colega de trabalho irritantemente prestável que se atirasse para uma linha de comboio.
A minha colega, que era irritantemente prestável, respondeu-me, com um sorriso:
“Claro que me atiro! Tenho um amigo, que conduz TGV’s, e que pode passar por cima de mim”.
A minha amiga, que era irritantemente prestável, pediu para que lhe passassem por cima com 10 diferentes tipos de comboios, e pediu a 15 amigos, que conduziam aviões, que se espetassem contra o que restasse do seu irritantemente prestável corpo.

Durante uns tempos, não comi de graça, deixei de fumar charutos cubanos, e até trabalhei um pouco.
Até que uma noite, enquanto tentava adormecer, alguém me perguntou:
- Não tens sono? Se quiseres, arranjo-te 20 diferentes tipos de comprimidos para dormir.
Sobressaltei-me. A voz respondeu-me:
- Não te assustes. Sou eu.
Era o fantasma da minha colega irritantemente prestável.
Ela disse-me:
-Tens insónias? Estás preocupado com algum assunto? Se estiveres com medo da morte, não te rales. Desde o meu triste falecimento, travei amizade com Deus, a Nossa Senhora, o menino Jesus, os anjos, os arcanjos, os pastorinhos, e com o Papa João Paulo II. Já tratei de tudo. Quando morreres, vais para uma nuvem-condomínio-fechado. Eu estarei perto de ti, até ao fim da Eternidade, caso precises de alguma coisa.
E atirou-me com um pacote de bolachas Maria.

Nos meses seguintes, estive sempre bem acompanhado, no trabalho.
Não cabíamos todos lá dentro, só existia uma mesa, e na sala só havia duas cadeiras. Eu sentava-me numa delas. À minha direita, sentava-se Deus-Pai.
A Nossa Senhora levava-me o café. O Papa João Paulo II trazia-me os jornais desportivos, tabaco, e embalagens de preservativos. A minha colega de trabalho, irritantemente prestável, andava sempre à volta, atirava-me pacotes de bolachas Maria, e supervisionava os seus novos amigos, para que não me faltasse nada.

A janela da sala dava para o rio. Lá fora, Jesus Cristo, que não cabia dentro do meu gabinete, porque não havia cadeiras para se sentar à direita do Pai, fazia os possíveis para me entreter. Andava sobre a água, e fazia milagres muito engraçados.

Mas a minha vida tornava-se cada vez mais insuportável, e os meus assistentes ficavam tristes, sem saber o que fazer.
Todos os dias, repetia-se o mesmo ritual: a minha colega, que era irritantemente prestável, atirava-me, às 10.30, em ponto, um pacote de bolachas Maria:
-Podes comê-las todas, se quiseres. Eu tenho mais cinco pacotes.
Agradecia-lhe, fazendo um sorriso forçado.

Fiquei farto da situação, e despedi-me. Procurei vários tipos de trabalho, fui traficante de droga, e proxeneta. Mas a minha colega de trabalho, que era irritantemente prestável, aparecia, todas as manhãs, com o seu séquito de amigos prestáveis.

Até que me mudei para aqui.
A minha colega é irritantemente prestável, mas tem limites. Nem ela, nem os anjos, ou os arcanjos se atrevem a entrar na Direcção-Geral de Impostos, muito menos, nas Execuções Fiscais.
Hipotequei as minhas esperanças de ter uma bela vida Eterna, e Deus-Pai deixou de se sentar à minha direita.
Mas eu não tinha outra opção.
Sempre odiei bolachas Maria.”

A conversa acabou aí. Levantámo-nos, e quando eu fiz menção de pagar o almoço, o Romualdo Castelo adiantou-se, e pagou a conta toda, incluindo os queijinhos frescos, que nem sequer provei.
Gosto dele, é bastante prestável.

terça-feira, setembro 14, 2010

As Crónicas da Fazenda Pública

A minha caixa de emails tem estado sempre cheia, desde que anunciei, ao meu círculo de conhecidos, que tinha começado a trabalhar para a Direcção-Geral de Impostos, mais precisamente, para a Fazenda Pública.
Todos se mostraram preocupados, pensavam que eu não teria tempo, ou paciência para actualizar os posts, com a regularidade devida.
Sosseguei-os. Disse-lhes que iria continuar a escrever as coisas do costume.
Todos se mostraram preocupados, aconselharam-me a mudar a temática dos textos.
Pedi-lhes para me darem sugestões. As respostas não tardaram.
Segundo a opinião de 100% dos leitores, terei de começar a debruçar-me sobre temas mais práticos, e fazer posts a explicar como se preenchem declarações de IRS e de IRC, como se deve fugir ao pagamento do IVA, ou de IMI, ou IMT, ou como se apaga do sistema informático do Estado todas as referências a processos que envolvam penhoras ou hipotecas.
Não posso aceder a todos esses pedidos. Contudo, escreverei, a partir de agora, um conjunto de notas pessoais, que versarão sobre o meu dia-a-dia no maravilhoso mundo da Função Pública.
Até lá, despeço-me, com os melhores cumprimentos
O amigo ao dispor

L.Lugones

(Representante da Fazenda Pública)