terça-feira, outubro 18, 2011

As minhas memórias do colchão - partes VI a IX


Parte VI – A Primeira conversa com o colchão de memória


Depois de uns dois minutos de silêncio, não me contive:

- Sim senhor. “Deus criou o mundo em sete dias, mas demorou vários milhares de anos para criar a senhora”. Nunca ouvi um elogio tão idiota, ainda para mais, referindo-se à imbecil da minha senhoria.

O colchão pareceu meditar um pouco na minha afirmação, pois só respondeu passados mais dois minutos:

- Que exagero, Luís Pedro…ela não é assim TÃO má…

- Tão má? Já ouviste bem aquela voz irritante que produz, segundo as tuas palavras “melodias de encantar que penetram os tímpanos suavemente”? Aquilo não só penetra os tímpanos, como os fura impiedosamente, com os “tá a ver” nasalados e estridentes…

- É um facto que a voz dela é um pouco forte…

- Um pouco forte? Na tua escala dos decibéis, deve fazer mais estragos que o arranque de um avião Concorde…

- Por acaso nunca tive coragem de medir os decibéis da sua voz…

- E a “visão magnífica da cara senhora”? Estamos a falar da mesma “senhora”? É que se estivermos a falar da minha senhoria, eu utilizaria antes o termo “múmia putrefacta”. Convenhamos, o aspecto dela é pior que o do Tutankhamon…

- Pois, mas o corpo dela ainda tem algumas curvas…

- Curvas? Já viste o rabo dela? É disforme, quase nem entra pela porta da rua. Conheces um personagem da Disney, o Gansolino? O rabo dele ao pé do da senhoria é pequeno e gracioso…

- Sim, tens razão, a senhoria é grotesca…

- Grotesca é pouco! Ainda mais grotescas são as tuas palavras de elogio! Que colchão imbecil!

- Imbecil o quê? Tenho de fazer pela vida!

- Fazer pela vida? Eu despedia-te e assava-te na fogueira a lume brando, só por causa desse chorrilho de disparates que proferiste em tão pouco tempo!

- Estás irritado e tens razão! Mas tens de compreender que sou um colchão com alguns anos de experiência, a vida não está fácil e agora há colchões novos, mais bonitos, mais macios e que se prostituem por bem menos, acredita! Olha o exemplo do colchão do italiano! Novíssimo, de uma marca toda da moda, muito senhor de si e que deixa que a senhoria lá se deite com o italiano, em troca do não pagamento das rendas. Eu seria incapaz de deixar essa rabuda Gansolina deitar-se um segundo em cima de mim…

Fiquei surpreendido:

- O quê? A senhoria deita-se com o italiano?

- Ah, pois é bebé. Ou pensas que ela lhe oferece os pastelinhos de Belém de borla?

- E o Giovanni vai nessa conversa?

- Luís Pedro, o Giovanni é italiano…É natural que se deite com tudo o que se mexe, incluindo múmias rabudas pré-históricas…

- Mas isso é um escândalo! Está ela para aqui a deitar sentenças, quando se comporta pior que uma meretriz e…

- Oh Luís Pedro, não sejas puritano! Já te vi trazeres para aqui umas belas peças…

- Eu? Quando?

- Sei lá, uma vez trouxeste uma mulher que parecia uma diva do cinema dos anos 20…

- Ah, com aquele penteado Lulu?

- Sim, essa mesma. O penteado até devia ficar bem à senhora, mas há oitenta anos atrás…

- Que exagero, ela não era assim tão velha…

- Na escala da idade do Universo talvez não seja assim tão velha...

- Agora estás a ser infantil. Um lambe-botas infantil…e bufo…tinhas alguma necessidade de fazer um relatório daqueles à senhoria?

- Sabes bem que ela ia desconfiar se eu dissesse que tu eras casto que nem o teu vizinho de casa, o Filipinho…até porque tu tens uma boa figura…

- Oh, um elogio! Fico agradado, meu amigo colchão!

- Não sejas assim. Sabes que és bonito.

- Esta conversa está a parecer-me um pouco estranha e começamos a desviar-nos do essencial. E o essencial prende-se com este simples facto: a partir de agora, não posso trazer a MINHA namorada para o MEU quarto…

- Não necessariamente…

- Não necessariamente? Não ouviste a outra cretina? Não posso levar companhia feminina para o quarto. A menos que seja para estudar ou ver televisão. Que programa fantástico! Vou dizer a uma rapariga: “olha, queres vir para o meu quarto hoje à noite? Não podemos tirar a roupa nem tocar-nos. Mas vai dar um filme fantástico na televisão! Eu faço as pipocas! O que me dizes disso?” Amigo colchão, acho que ninguém resistirá a tanto charme! As mulheres vão fazer fila para estarem comigo!

Ficámos um minuto em silêncio. Até que o colchão, num tom de voz misterioso, disse:

- Talvez haja uma terceira via, uma solução consensual que agrade a todas as partes envolvidas…

- Ah é? E que solução é essa?

- Chega-te mais perto, para que ninguém oiça.

O colchão fez-me a proposta. Ouvi-o, estarrecido:

- Estás maluco?

- Estou a falar muito a sério e penso que sairemos todos a ganhar.

- Só se fores tu! És um depravado!

- Ai, que rapazinho tão sensível e pudico!

- Não estou a ser pudico, mas o que me estás a pedir ultrapassa o limite do razoável!

- É a minha proposta! É pegar ou largar!

- Então considera que está largado! Adeus!

- Onde é que vais?

Afastei-me do colchão e dirigi-me para a porta do quarto:

- Hoje durmo no sofá da sala. Não me apetece falar contigo.

Fechei a porta do quarto com um estrondo

Parte VII – Um encontro mal sucedido

Passou-se uma semana. Durante esse período de tempo, disse à minha namorada que não a podia receber em casa, pois ia visitar os meus pais à aldeia.

“Pensava que os teus pais moravam a cinco minutos de tua casa”, disse-me ela.

“Sim, mas vamos visitar a família do meu pai, que mora numa aldeia transmontana”, respondi.

“Disseste-me que o teu pai foi abandonado à nascença, foi criado num orfanato e nunca conheceu família nenhuma”.

“Sim, por isso vamos visitar o orfanato, ele fez lá bastantes amigos…”

“Mas disseste-me que o orfanato ficava na Guiné-Bissau e que foi completamente destruído durante a guerra e mataram todos os responsáveis do orfanato, juntamente com todas as criancinhas, que foram fechadas numa sala, à qual atearam fogo e o teu pai foi o único sobrevivente graças a…”

“Tudo isso está correcto, mas vê lá tu que o meu pai foi a um psiquiatra, que o hipnotizou, teve uma regressão e lembrou-se de repente que tinha nascido numa aldeia transmontana”

Não sei se a minha namorada acreditou, mas deste modo ganhei algum tempo. Precisava de trazer uma mulher para casa e experimentar outras alternativas. Foi fácil, parei num daqueles bares manhosos de marinheiros e engatei uma miúda em estado pré-comatoso, depois de termos dançado agarrados umas duas ou três músicas de kizomba/ pop chunga dos anos 80.

Entrámos em casa por volta das 4 da manhã.

Não me apetecia ir para o quarto, com medo dos comentários sarcásticos do colchão de memória.

Fomos para a casa de banho. Não sei porquê, mas tínhamos de começar por algum lado. Por isso, começámos e acabámos aí.

Sempre achei que se travam grandes relações de amizade no chuveiro. Também poderia servir para acordar o meu engate do seu estado pré-comatoso. Por isso, despimo-nos e enfiámo-nos lá dentro.

Tentei ligar a água quente, mas fui interrompido por uma voz com um leve sotaque alentejano:

- Perdão, Luís Pedro mas deram-me ordens estritas, repito – ordens estritas para não deixar ligar a água durante a noite, muito menos quando entram duas pessoas ao mesmo tempo na banheira.

Depois dos diálogos com o colchão, já não me espantava com criaturas antropomórficas, por isso, sem me deixar afectar, retorqui:

- Muito bem…e deixa-me adivinhar: de quem partem as ordens?

- Da patroa, como não podia deixar de ser.

- Mas a patroa deixa o Giovanni tomar banho com as suas visitas…

- Luís Pedro, o Giovanni é italiano, é suposto poder tomar banho com quem quiser e às horas que quiser…

- Mas isso é ridículo…dá-me cinco minutos, pelo menos…

- Lamento, mas não posso transigir. No máximo, cada um pode tomar banho sozinho, à vez, e durante cinco minutos. Neste caso, uma das pessoas terá sempre de ficar do lado de fora da banheira e não pode espreitar pela cortina. Se espreitar, corto a água de imediato. A patroa é clara, no Ponto 5 do seu “Regulamento Interno para o bom trabalho dos chuveiros” (passo a citar): “de modo a evitar comportamentos porcos e lascivos, que incitem ao sexo, é estritamente proibido que duas pessoas tomem banho ao mesmo tempo no chuveiro ou que uma delas fique a assistir à outra pessoa a ensaboar-se. Isso poderia fazer com que houvesse recurso à masturbação, com lamentáveis consequências para o chão da casa de banho, que ficaria pegajoso”.

- Por favor, isso é ridículo…

- Pois, mas não há nada a fazer. Eu sou um chuveiro um pouco antigo, agora há novos modelos muito melhores, não quero perder o meu emprego, com esta idade.

- Certo, certo, isso já não me interessa…olha, esquece…não me apetece mesmo tomar banho.

Olhei para a minha conquista nocturna, que apresentava um aspecto lastimável. Estava deitada no chão, de olhos fechados. Começou a gemer: “ai meu Deus, ai meu Deus” e compreendi que iria começar a vomitar daí a nada. Por isso, peguei-lhe pelos braços e aproximei-a da sanita. Abri o tampo. No momento em que o meu engate se preparava para vomitar, ouvi uma voz, com um sotaque levemente madeirense:

- Luís Pedro, o que estás a fazer?

Percebi que a voz vinha da sanita e retorqui:

- O que achas que estou a fazer, sua malcheirosa? A minha amiga prepara-se para vomitar!

A sanita pareceu ficar um pouco ofendida:

- Não é preciso seres mal-educado comigo, está bem? Até porque também és responsável pela origem do meu mau cheiro. Ou esqueces-te que costumas sentar-te aqui nunca menos do que duas vezes ao dia?

- Desculpa lá, ó sanita, mas não vês que a minha amiga está aflita?

- Bem vejo, mas tens de compreender que eu sou uma sanita um pouco antiga e não me convém ir contra o “Regulamento interno das sanitas”, nomeadamente o seu artigo 12º, nº3, que dispõe: “é proibido utilizar a sanita para a prática do vómito causado por álcool, drogas ou outro tipo de vícios que atentem contra a moral e os bons costumes”. Ora muito bem, vê-se perfeitamente que essa tua amiga está alcoolizada e sabe-se lá que mais. E previno-te já, antes que tenhas ideias esquisitas, que também não podes praticar actos sexuais de relevo em cima de mim, conforme indica o artigo 18º, nº1, alínea h) do Regulamento, que dispõe…

- Oh meu amigo, achas que ela está em condições de praticar qualquer tipo de acto sexual de relevo? (naquele momento, a minha amiga revirava os olhos e começava a espumar pela boca). Vá, deixa-a vomitar um bocado!

Ficámos um minuto em silêncio. Até que a sanita, num tom de voz misterioso, disse:

- Talvez haja uma terceira via, uma solução consensual que agrade a todas as partes envolvidas…

- Ah é? E que solução é essa?

- Chega-te mais perto, para que ninguém oiça.

A sanita fez-me a proposta. Respondi-lhe:

- Vá lá, pensava que me ias pedir uma coisa esquisita, como fez o colchão de memória.

- Isso quer dizer que aceitas?

- Sim, aceito!

- Fixe! Então quer dizer que podemos começar a ter tertúlias diárias sobre literatura?

- Não exageres…podemos falar durante uns cinco minutos por dia, enquanto vou à casa de banho…

- Isso já é bom! Sabes, sempre me apeteceu conversar contigo, quando trazias os livros para aqui e começavas a ler em cima de mim, mas eu sou uma sanita tímida, no fundo…

- Pois

- Já a minha mãe dizia: “és uma sanita culta e não brilhas por causa dessa timidez. Estás sempre calada, a engolir a porcaria dos outros”.

- Pois

- Mas olha que eu gosto dessas coisas que tu lês

- Pois

- Aquelas antologias de contos esquisitos…

- Pois

- Se bem que eu prefira poesia

- Pois

- Adoro poesia portuguesa

- Sim

- Somos um país de poetas

- Pois

- Grandes poetas

- Pois

- Agora há aí uma nova fornada de poetas de grande valor

- Sim, um ou outro, dizem

- Um ou outro? Nem penses! Há resmas deles. Costumam encher um bar chamado “O Botequim”. Adorava ir ao Botequim declamar a minha poesia. Porque eu também escrevo, sabes?

- Ah é?

- Sim, umas coisas simples. Uma vez, mandei para uma revista literária, mas não me responderam. Têm coisas de valor, Miguel Manso, David Teles não sei das quantas e uma búlgara, a Górgona Angel, mas o meu preferido é o Ruy Narval. Que poeta! Adorava ter um livro dele.

- Se quiseres, atiro-te com um livro dele, podes devorá-lo à vontade. Acho que estás ao seu nível.

- Fazias isso? Ficava-te eternamente grato!

- Sim, claro! Olha, a minha amiga podia vomitar para ti, então? Acho que ela já está a ficar azul…

Não vou contar o que se passou nas horas seguintes, mas travei conhecimentos com o bidé, o lavatório e a balança. Depois, já farto, saí de casa com o meu engate, que já se mostrava um pouco recomposta, mas pensava ouvir vozes na cabeça: “uma sanita estava a falar comigo”, repetia, assustada.

Parte VIII – O segundo encontro com o colchão

Deixei o meu engate à porta da sua residência e deambulei pelas ruas durante umas horas. Cheguei a casa por volta das nove da manhã, com uma directa em cima. O Giovanni ainda não regressara da sua noitada. O menino Filipe Já tinha saído para as aulas. O costume.

Entrei estafado no quarto. O colchão interpelou-me de imediato:

- Então Luís Pedro, estás cansado?

- Eu? Não, é impressão tua…

- Devias ir à casa de banho lavar essa cara, estás com remelas.

- Deixa estar, não me apetece dialogar com o lavatório…

- Estou a ver que já fizeste novos amigos cá em casa!

- Ah sim, são todos encantadores! O lavatório, o bidé, a sanita…

- Não te esqueças do chuveiro! É um bocado temperamental, mas não é mau tipo!

- Pois, acredito…

- Mas olha que estás MESMO com um ar cansado…

- Nem por isso…

- Estás com olheiras…

- Tenho sempre olheiras.

- Pois, mas estás com um olhar vidrado, os olhos vermelhos, prestes a saírem das órbitas…

- É alergia ao pólen das árvores!

- Estamos no inverno, Luís Pedro! Acho que o pólen das árvores não te faz grande mal nesta altura…

- Então devo estar a ficar com uma constipação.

- Se estás a ficar constipado, deves deitar-te um bocado.

- Obrigado, mas sinto-me óptimo!

- Olha que ainda pioras e pegas alguma gripe…assim é que não podes receber a tua namorada…

- Faz cá uma diferença…não a tenho recebido mesmo…

- Não a tens recebido porque não queres!

- Já falámos sobre isso e continuo a achar a tua proposta imoral e degradante!

- Porquê, Luís Pedro? Só precisavas de te deitar um bocadinho sobre mim…vá, deita-te…senta-te um pouco, pelo menos….

Sentei-me na borda da cama. O colchão continuou a falar:

- Vês, Luís Pedro? Eu não mordo!

- Não disse que mordias…

- Parece! Diz-me lá, nestes dois anos em que te deitas sobre mim, alguma vez te fiz mal?

- Não, pelo contrário! Até tenho dormido muito bem em cima de ti! Olha, por exemplo, nesta altura do ano nunca sinto frio durante a noite nem preciso de usar cobertores…

- Isso é porque a espuma de memória retém o calor muito bem, o que significa que irás manter a temperatura corporal durante a noite sem sentires frio. Este é um fantástico bónus com o preço da energia a aumentar, já que vai poupar energia e dinheiro sem ser necessário ter o aquecedor de casa ligado.

A conversa do colchão começou a embalar-me. Deitei-me por cima dele, vestido, com os sapatos calçados. Balbuciei:

- Estou mesmo confortável…

O colchão respondeu-me com o seu sotaque levemente transmontano e com um tom de voz aveludado:

- Um colchão de espuma de memória é inacreditavelmente confortável. O corpo afunda-se na sua espuma densa e ao longo do dia, esta sensação de relaxe não tem preço…tira os sapatos, Luís Pedro…

- Porquê? Tens medo de ficar com algum ácaro ou com pó que traga da rua?

- Luís Pedro, os colchões de espuma de memória criam um ambiente que não é propício à humidade, formação de pó e ácaros, o que os torna ideais para quem sofre de alergias ou problemas respiratórios. Os colchões de espuma de memória são hipoalergénicos…

Tirei os sapatos

- Sabes tantas coisas, colchão…vou-te contar um segredo: a minha namorada gostava muito de dormir em cima de ti!

-Os colchões de espuma de memória absorvem os movimentos. As qualidades viscoelásticas ajudam a eliminar a vibração, de modo a não perturbar o parceiro ou parceira durante o sono.

- Então era esse o teu segredo, colchão!

- Não é segredo nenhum, Luís Pedro. Tudo o que te estou a dizer está contido no meu livro de instruções.

- Mas no teu livro de instruções não diz nada que poderias apaixonar-te…

- O que é que queres, Luís? Não sou de pedra, caraças, sou um colchão.

- E um colchão muito bom…

- De que me serve isso? Nem te queres estender sobre mim…

- Eu estou estendido…

- Assim, tão encolhidinho? Eu tenho muito espaço, podes estender os braços e as pernas…

- Pronto, já estendi. Tens de perceber que fiquei um bocado confuso…

- Fui muito franco contigo, Luís Pedro, e fiz-te uma proposta clara – ignorar que tragas para cá a tua namorada e esconder essa informação, sem nada divulgar à senhoria, em troca de um pouco de calor…

- Um pouco de calor? Tu pediste para eu te acariciar todos os dias…

- Pedi-te apenas para passares os teus dedos sobre a minha espuma. Acho que não há nada de mal nisso. É pouca coisa em troca do teu silêncio!

- Ficas feliz se eu fizer isso?

- Sabes bem que sim…

Comecei a percorrer as minhas mãos sobre o colchão. Ele começou a falar de um modo mais arrastado:

- Isso, Luís Pedro, continua…

- Não te estou a aleijar?

- Claro que não! Eu adoro sentir as tuas mãos a percorrer o meu material esponjoso de alta densidade…

Senti uma pequena fissura numa das extremidades do colchão:

- O que é isso, colchão?

- Ah, é um corte, não ligues…Foi feito pela namorada do anterior inquilino, uma rapariga muito ciumenta. Uma vez, ela zangou-se, entrou aqui no quarto e começou a partir tudo o que via. Depois, pegou numa faca e fez-me uns golpes. Foi tudo por maldade. Ainda me remendaram, mas notam-se as costuras…

- Não há problema, até ficas com mais personalidade.

- Achas que sim, Luís Pedro?

- Claro! É sinal de que tens um passado.

- E que passado! Sabias que já dormiram montes de raparigas giras por cima de mim?

- A sério?

- Uma delas foi aquela actriz famosa…aquela que está num poster, ali na parede.

- A Rita Pereira Chaves , que fazia de “Safinha”, nos “Morângulos com Açúcar”? Não posso!

- Essa mesma! Que mulherão! E que belo par de mamas!

- São boas? Viste-a nua?

- Claro que a vi nua! Ela dormiu toda nua em cima de mim, fez sexo em cima de mim, veio-se em cima de mim…Luís Pedro…estás a ficar excitado ou é impressão minha?

- Tás a falar da Rita Pereira Chaves, meu…como é que querias que ficasse?

- Então despe essas calças, pá!

Tirei as calças

- E tira essa t-shirt! Cheira a tabaco e suor!

Tirei a t-shirt

- Vá, deita-te, que eu continuo a falar da Rita Pereira Chaves, se quiseres…

- Sim, por favor!

- E vai passando as tuas mãos pela minha espuma…sim, como estás a fazer agora…podes arranhar-me todo, eu gosto, faz-me arrepios na espuma…isso, começa a massajar-me também com os pés, a Rita Pereira Chaves fazia isso, sabes? Gostava de se esfregar toda nua por cima de mim, isso Luís Pedro, já estou a sentir-te teso, gostas de falar da Rita Pereira Chaves, não é? Ela tinha a pele tão macia, devia ser do gel de banho que usava, era-lhe oferecido por aquelas lojas todas chiques, em troca de publicidade e…podes tirar as cuecas, Luís Pedro, ficas mais à vontade assim…isso Luís, encosta o teu pénis sobre mim, levemente, oh que bom, parece algodão, tão macio, mas prestes a explodir, não é Luís Pedro, gostavas de o enfiar todo na Rita Pereira Chaves, que dormia aqui toda em pelota e sabes Luís Pedro, ela gostava de homens morenos como tu, com uma pila como tu (oh sim, Luís Pedro, começa a mexer essa pila sobre mim, sobre a minha superfície de colchão formada por poliuretano e outros químicos e que foi criada pela NASA em 1970, com o objectivo de aliviar a tensão em pontos de pressão dos astronautas, especialmente durante as descolagens e aterragens), Luís Pedro, estás a sentir a pressão a invadir-te esse corpo todo, gostavas de comer a Rita Pereira Chaves e a tua namorada, que não vês há uma semana e meia e que nem sabes onde está agora, talvez esteja a dormir sobre outro colchão de espuma de memória com outro Luís Pedro qualquer, mas não pares, Luís Pedro, sente esta densidade de 2 kg, espessa o suficiente para manter a forma do seu corpo e o suporte necessário por baixo…

- Oh…Rita Pereira Chaves, Safinha, uma vez tentei pedir-te um autógrafo, num bar, e mandaste-me à merda…

- Isso é porque não és famoso, Luís Pedro…mas agora estás a roçar-te no mesmo colchão onde ela antes se roçou e se veio todinha, estás a sentir isso?

- Sim, Rita Pereira Chaves, sente-me todo dentro de ti, neste colchão…

- Luís Pedro, continua, estás a ir muito bem, estás a ver? Isto até é bom, podemos ficar assim todos os dias, uma meia hora logo de manhã, enquanto o Giovanni não chega e o Filipe está nas aulas, depois podes trazer as miúdas que quiseres, até te posso dar a morada de algumas, conheço muitas raparigas, digo-te do que elas gostam, podemos ser muito felizes assim, eu sou melhor que nada…

- Oh, sim, colchão…

- E vem-te quando quiseres. Vem-te, que o amor não é o tempo, nem é o tempo que o faz. A minha espuma absorve tudo e guarda a memória de todos os que cá dormiram, nem precisas de me limpar…só tu e eu e que vamos saber, Luís Pedro… tu e eu…

- Sim, colchãozito…

Parte IX: O sentido da vida - conclusão

Vivo num bairro histórico da cidade, daqueles com muitos turistas em bando, com máquinas fotográficas a tiracolo e mapas na mão, que se misturam com a populaça local, sempre à espreita de novidades e com o calão bem afinado em trocas de galhardetes entre matronas gordas e os bêbados da esquina. Moro no primeiro andar e sou acordado todos os dias pelos gritos da Dona Lúcia, que apregoa em voz bem alta as rifas semanais com o sempre prometido prémio de um belo enxoval para o casamento ou um conjunto de faqueiros de cozinha de fazer inveja às japonesas Ginsu, anunciadas em grandes parangonas nos anúncios da TV Shop. No momento em que ela diz pela décima vez “olha a rifa!” estou deitado na cama. Não me levanto.

Melhor do que viver num bairro histórico da cidade é viver num prédio recuperado do bairro histórico da cidade, com elevador ultra moderno incluído no pacote, onde não faltam os painéis electrónicos azuis a marcar os andares, tudo num magnífico requinte de equilíbrio entre a traça original antiga e as mordomias próprias de imóvel do século XXI.

Não é que isso me interesse. Deixo-me ficar deitado todo o dia em cima do meu colchão de espuma de memória, construído por um material espumoso de alta densidade, formado por poliuretano e outros químicos, e que se me molda na perfeição.

Fim

sexta-feira, outubro 07, 2011

As minhas memórias do colchão - Partes I a V

Parte I: O sentido da vida

Vivo num bairro histórico da cidade, daqueles com muitos turistas em bando, com máquinas fotográficas a tiracolo e mapas na mão, que se misturam com a populaça local, sempre à espreita de novidades e com o calão bem afinado em trocas de galhardetes entre matronas gordas e os bêbados da esquina. Moro no primeiro andar e sou acordado todos os dias pelos gritos da Dona Lúcia, que apregoa em voz bem alta as rifas semanais com o sempre prometido prémio de um belo enxoval para o casamento ou um conjunto de faqueiros de cozinha de fazer inveja às japonesas Ginsu, anunciadas em grandes parangonas nos anúncios da TV Shop. Levanto-me ao som da sua voz e no momento em que ela diz pela décima vez “olha a rifa!” já estou no banho a ensaboar-me.

Melhor do que viver num bairro histórico da cidade é viver num prédio recuperado do bairro histórico da cidade, com elevador ultra moderno incluído no pacote, onde não faltam os painéis electrónicos azuis a marcar os andares, tudo num magnífico requinte de equilíbrio entre a traça original antiga e as mordomias próprias de imóvel do século XXI.

Parte II: Descrição do meio humano circundante

Mas a qualidade tem um preço e para pagar o meu quarto com vista para o rio tenho de dividir com outros dois mancebos a coabitação neste imóvel t3 de tamanho reduzido.

Eu durmo no quarto do meio, no lado direito de quem entra pela casa está o quarto do Giovanni, o italiano e do lado esquerdo de quem entra encontra-se o quarto do Filipe, o atarracado e virgem estudante universitário de um curso esquisito do qual já me esqueci do nome.

Os três quartos ficam todos de seguida, paredes meias uns com os outros, mas as paredes estão lá só para darem presença física e para mostrar que estamos num edifício t3, isto porque as paredes não isolam o som, cá para mim se fossem feitas de esferovite ou até de papel de embrulho conseguiam isolar melhor os gritos das namoradas do Giovanni, o atraente estudante italiano de mestrado, digo estudante porque é isso é que ele me conta que está cá a fazer – estudar, mas disso eu pouco sei, o que sei é que o Giovanni passa os dias em casa e digo isso não por me meter na vida dele, porque isso pouco me importa, estão sempre a entrar miúdas cá em casa e isso também pouco me importa, importa-me um pouco mais quando fazem aqueles barulhos todos durante a noite e ai como gemem as namoradas do Giovanni e ele também geme, quando mistura aqueles impropérios em italiano com palavras que entretanto aprendeu em português, provavelmente nas suas aulas de mestrado.

Oiço durante toda a noite o Giovanni a bater contra a parede divisória do nosso quarto, imagino-o vestido de gondoleiro com aquelas camisas de risquinhas azuis e brancas, a conduzir a sua gôndola veneziana e a bater eternamente contra o raio da parede que não isola os sons, mais as miúdas a gritar que nem umas porcas na hora de irem para a matança. Um encanto, como devem imaginar.

Parte III: Tensão subjacente

Mas aqui o Luís Pedro queixa-se disso? Qual quê! O Luís Pedro, numa clara demonstração de simpatia, até empresta comida ao Giovanni - fatias de pão, queijo, leite e sei lá que mais e o tipo só diz grazie ou gracias ou o raio e nunca compra nada para a despensa, nem lava o fogão nem o chão, nem recicla o lixo. Deve pensar que ainda está em Nápoles.

Eu estou-me pouco lixando e não digo nada. Não se metam é na minha vida. Por isso é que o menino Filipe está marcado para sempre na minha lista negra.

Tenho lá eu culpa que ele não possua um único amigo, também com aquelas trombas cheias de acne e aquele amor pelas músicas do Tony Carreira, como é que ele se pode safar? Quero lá saber que o Filipe seja um “deslocado”, que veio de uma pequena aldeia na província para obter um canudo na cidade e que se sinta “engolido” pelo frenesim da multidão, que chore quando vai à casa de banho para que eu não o oiça e que a única vez que viu uma mulher nua na vida foi no preciso instante em que a minha namorada ocasional saiu da casa de banho sem roupa e se cruzou acidentalmente com o menino Filipe.

E eu fiquei chateado com isso? Quero lá saber! Até me ri, fiquei feliz com o Filipe, que correu para a casa de banho corado e escandalizado e se trancou durante meia hora, provavelmente para gratinar a sua beringela pronta a ser estreada há 25 anos.

Falo agora da minha namorada ocasional. Nem sequer é namorada. Por isso, só lhe assenta bem o epíteto de ocasional. E é ocasional porque só aterra na minha casa muito de vez em quando, umas duas vezes por semana, de resto nada sei da sua vida. Diz-me que mora com os pais nos subúrbios e quem sou para duvidar? Não sou polícia, até me posso dar por contente com as duas noites por semana que me dedica. Gosto dela, gosto que ela fique a dormir comigo durante essas tais duas noites semanais.

Até tive o cuidado de avisar o Filipe, disse-lhe que se ele achasse que eu andava a fazer muito barulho que batesse na parede três vezes, assim eu ficava avisado e faria as coisas de um modo mais suave.

Parte IV: A senhora marquesa apresenta-se aos súbditos

Por isso é que fiquei lixado quando a marquesa tocou à porta naquela manhã, chamo-a marquesa não porque seja marquesa, pois acho que não é, mas pelo seu timbre de voz de tia afectada com os males de todo o mundo e porque tem um apelido que demora meia hora a ser soletrado, a marquesa é a minha senhoria e a dona de todo o prédio e dos dois prédios em redor. Raramente aparece e por isso estranhei, estranhei mais ainda quando lhe abri a porta, estava sozinho em casa, o Giovanni ainda não tinha aparecido da sua noitada e o Filipe tinha ido para as aulas e ela entrou em casa de rompante, sem me cumprimentar e a falar num tom de voz agressivo, “olhe Luís Pedro tá a ver, nós precisamos de falar, tá a ver, o seu colega de casa, o Filipe ou lá como se chama telefonou-me muuuito incomodado, tá a ver, a fazer queixas de si, a dizer que o Luís Filipe leva amigas para casa todas as noites e aquilo é uma pouca-vergonha, faz uma barulheira que nem se pode tá a ver e o Filipe não consegue dormir, coitadiiinho, até porque tem aulas de manhã e já está cansadíssimo e telefonou-me desesperadíssimo tá a ver, e eu fiquei muuito perturbada com o tefenema tá a ver, porque eu sou a proprietária de metade deste bairro, tenho todo o cuidado em seleccionar pessoas que ache que possam manter isto tudo compostinho, até que de repente me vêm dizer que o Luis Pedro mete pessoas mais que duvidosas cá em casa e começa a fazer coisas esquisitas, olhe que eu não sou puritana tá a ver, mas tenho de manter o meu bom nome e as pessoas começam a falar e é uma vergonha…”

Depois de cinco tentativas, consegui interromper-lhe um pouco o fio do raciocínio: “eu nunca trago para cá ninguém, quer dizer, trouxe uma amiga umas duas ou três vezes e essa amiga é da máxima confiança, tivemos sempre todo o cuidado em fazer pouco barulho e….”

“Não interessa”, respondeu-me a marquesa. “Isto não é uma casa de passe, eu estou a arrendar o quarto a si, não quero que venham para cá meninas, parece impossível, uns rapazes solteiros estarem a trazer engates da noite….”

“Mas olhe que o outro vizinho de casa já tem trazido umas amigas…”

A marquesa começou a rir-se: “está a falar do Giovanni? Oh Luís Pedro, mas o Giovanni é italiano, é suposto trazer miúdas, não é? E percebe-se tá a ver? O Giovanni é o máximo, tem aquele timbre de voz que parece que tá a cantar uma coisa romântica ao ouvido tá a ver, parece o Eros Ramazzotti, o Giovanni tem charme e só se dá com pessoas de classe. Deixe o rapaz em paz, tá a ver, coitadinho, não basta viver longe de casa, dos pais dele, já está a receber acusações? Já agora, o Giovanni está em casa? Eu trouxe-lhe uns pastelinhos de Belém…”

A marquesa abriu sorrateiramente a porta do quarto do italiano e pareceu desapontada quando não viu ninguém.

“Não está? Pobrezinho, já foi trabalhar…”

“Não foi trabalhar, ainda não voltou da noitada”, respondi-lhe.

“Pois, coitadito, tem de se distrair…Mas olhe, estamos conversados, não quero cá mais meninas, se eu souber que volta a meter aqui alguém…”

Até que lhe perguntei:

“Como é que sabe que o Filipe não está a mentir? Se calhar, embirrou comigo e só está a fazer essas acusações torpes e infundadas para me colocar mal e para me mandar embora…”

A marquesa respondeu-me enigmaticamente:

“Isso é fácil de tirar a limpo. Vamos perguntar ao colchão”.

“Ao colchão?”

“Sim, ao colchão”

“Mas que colchão?”

“Que patetice de conversa, Luís Pedro. Que colchão é que havia de ser? É claro que estou a falar do colchão do Luís Pedro”.

“Aaaah….e acha que o meu colchão tem uma palavra a dizer sobre o assunto?”

“Mas é claro que tem muitas palavras a dizer sobre o assunto! O Luís Pedro sabe que dorme num colchão de memória?”

“Eu sabia que o colchão era de espuma, agora quanto à memória…”

“Pois bem, o colchão é de espuma de memória. Isso quer dizer que se lembra de tudo o que ocorre debaixo dos lençóis da cama. Vá, vamos falar com ele. O Luís Pedro está sozinho ou no quarto ou tem lá alguma das suas…amigas?”

A conversa estava a parecer-me um pouco absurda, mas não me apeteceu contradizer a marquesa. Encaminhei-a para o quarto.

“Esteja descansada, não está ninguém no quarto. Quer dizer, para além do seu amigo colchão.”

Não consegui disfarçar uma risada, que foi ignorada pela marquesa.

“Muito bem, vamos lá”.

Parte V – O colchão de memória

O meu quarto estava relativamente arrumado, tivera o cuidado de atirar a roupa suja para dentro de um saco de plástico. As roupas da minha namorada ocasional estavam metidas dentro da terceira gaveta da cómoda.

A marquesa dirigiu-se para o pé da minha cama e começou a falar:

“Bom dia, senhor colchão! Está com bom aspecto!”

Para minha surpresa, o colchão respondeu-lhe, com um leve sotaque transmontano:

“Que agradável surpresa, minha senhora! Está cada vez mais bonita e encantadora! Há muito tempo que não a via!”

A marquesa pareceu ficar agradada com o elogio:

“Muito obrigado, é sempre tão cavalheiro! “

O colchão continuou com a conversa melosa:

“Não tem nada de agradecer, a senhora sabe que só digo as verdades e só estou a dizer o que penso, quando muito, o meu elogio empalidece face à visão magnífica da minha cara senhora…”

“Oh colchão, deixa-me corada com tanto elogio! Olhe, tá a ver, vim aqui para lhe pedir um grande favor!”

“Diga, minha senhora. As suas palavras são suaves melodias de encantar e purificam cada recanto dos meus tímpanos à medida que neles penetram suavemente”

“Ah, deixa-me sem palavras, amigo colchão…”

“Sem palavras fico eu para a tentar descrever. Dizem que uma imagem vale mais que mil palavras, mas mil imagens nada valem comparadas com a simples palavra que menciona o seu nome”

“ Pois, colchão, muito obrigado, mas vamos ao que interessa. Tá a ver, o que acha do Luís Pedro?”

“Está a falar do rapaz que dorme por cima de mim? É boa pessoa, obviamente não se compara com a unha do dedo mindinho da minha cara senhora, de todo o modo ele não é um mau indivíduo, podia ter um bocado mais de cuidado com a higiene pessoal, às vezes deita-se com a t-shirt que levou para sair à noite, empestada de tabaco, não costuma tirar as meias, que usa sempre com aqueles sapatos malcheirosos…”

Fiquei indignado, pois claro:

“Sapatos malcheirosos? Custaram-me 150 euros e meto pó de talco para afastar o mau cheiro…”

A marquesa retorquiu:

“Deixemo-nos de ninharia! Eu queria falar de coisas mais sérias…tá a ver, colchão, diga-me, o Luís Pedro costuma trazer….companhia?

“Está a falar de companhias do sexo feminino?”

“Pois claro! O Luís Pedro recebe visitas?

“Deixe-me cá ver…ora bem, o senhor Luís traz, de facto, uma companhia de sexo feminino para o seu quarto. Aparece, regra geral, depois de jantar. A companhia de sexo feminino é bonita, não tanto como a senhora, é claro, mas em comparação com a senhora ninguém é bonito. Costumo dizer para com os meus botões que Deus criou o mundo em sete dias, mas demorou vários milhares de anos para criar a senhora e…”

“Chega, colchão! Gosto muito dos seus elogios, mas vamos ao que interessa! Seja sucinto e telegráfico!”

“As suas palavras são ordens, minha senhora! Eis então os factos:

. O arrendatário Luís Pedro recebe nos seus aposentos uma jovem mulher;

. Com uma periodicidade máxima de duas vezes por semana;

. A jovem mulher pernoita nos aposentos;

. E sai logo de manhã. Já ouvi dizer que ela conta aos pais que vai dormir a casa de uma amiga;

. Na verdade, tem relações sexuais com o Luís Pedro;

. Às vezes, sem preservativo;

. Costumam falar um pouco;

. Parece-me que as conversas da jovem mulher enfastiam um pouco Luís Pedro, que se mostra bastante interessado em desenvolver relações mais íntimas com a mesma. Digo isso porque o pénis de Luís Pedro aumenta logo em 50% aquando do primeiro beijo que dá à jovem mulher;

. A jovem mulher começa a falar do seu dia de aulas, num volume baixo, entre 30 a 40 decibéis;

. O Luís Pedro ouve-a quase em silêncio ou faz um ruído de assentimento, semelhante ao ruído das folhas das árvores quando há um pouco de vento, com cerca de 10 decibéis;

. A jovem mulher pergunta ao Luís Pedro se o está a maçar e se ele já não gosta dela;

. O Luís Pedro fica um pouco sobressaltado e responde-lhe: “claro que gosto, querida!”, num volume de som com cerca de 60 decibéis;

. Acto seguido, passam a uns rápidos preliminares, que antecedem os actos sexuais de relevo, que atingem volumes que podem chegar perto dos 100 decibéis, ou seja, semelhantes ao ruído de um camião a passar e superior ao ruído médio de uma fábrica, por exemplo.

. Se a senhora quiser, posso especificar melhor as posições sexuais mais utilizadas e o tempo de duração do coito….

A marquesa interrompeu a exposição do colchão:

“Já chega! Não quero saber pormenores da vida sórdida do Luís Pedro! Tá a ver, já sei o que me interessa! A partir de hoje, não quero que essa jovem senhora ou que mais alguém entre no quarto do Luís Pedro com intenções pecaminosas! Isso quer dizer que até podem entrar cá colegas de escola, desde que não suceda o mesmo que nos filmes pornográficos, onde os colegas de escola levam os cadernos para os quartos uns dos outros, começam a ler os livros de estudo, mas quando chegam à terceira página já estão todos nus e a lamberem-se todos uns aos outros! Ou seja, em suma: podem entrar no quarto do Luís Pedro colegas de escola, mas têm de se comportar convenientemente, tá a ver, sem tirar roupas e sem se atirarem para cima do meu amigo colchão e muito menos sem produzirem os tais ruídos que se comparam ao barulho de um camião. Estamos entendidos?”

Tive de concordar:

“Sim, estamos entendidos”.

A marquesa pareceu ficar satisfeita:

“Muito bem! Agora, tenho de me ir embora, ainda vou passar pelo quarto do Giovanni…”

A marquesa saiu e fiquei sozinho no quarto com o colchão. Este disse-me em surdina:

“Pronto, lá vai aquela badalhoca falar com o colchão de espuma do quarto do italiano. O desgraçado tem de lhe fazer uma exposição global de tudo o que acontece durante todos os dias e todas as noites. Coitado. Tem uma sorte pior que a Sherazade”.

Não respondi. Sentei-me na cadeira, a pensar.

(Fim da Parte V. A continuação segue dentro de momentos).