segunda-feira, março 28, 2011

HSC12 36 Amp

Metia-me medo, nem sei bem porquê. Não podemos falar em imponência física, eu que sou bem mais alto, pelo menos uns sete ou oito centímetros. Já nem falo da sua magreza, os braços estreitos, mais as suas pernas meio tortas, em suma, uma figura ridícula. Ainda por cima, com óculos. Não é que os óculos resolvam grande coisa, naquele caso grave de miopia… Mas não havia nada a fazer, matraqueava-me aquelas ordens todas e eu ficava calado, acobardado, obedecia a tudo, sim claro, tens toda a razão, não me batas mais, por favor... Naquele dia foi a mesma coisa. Acordou-me às seis da manhã, já com o banho tomado. Era a minha vez, o gás acabou-se passado um minuto e tive de apanhar com aquela água gelada de Novembro a furar-me os cornos e o coro cabeludo, até os cabelos fugiam e caíam para o ralo sujo da banheira, os ossos a desfazerem-se pouco a pouco, pele engelhada, a tremer de uma ponta à outra. Ainda me acusou de ter gasto a botija, bateu-me com o cinto e atirou-me com mais umas quantas reprimendas. Saímos de casa à pressa e tropecei em dois degraus. O pior veio depois. Tentei ligar o carro, mas não deu em nada. Claro, deixou as luzes acesas, na noite anterior. Mas a culpa era minha, como sempre, e correu atrás de mim pela rua toda, a largar imprecações. “tem calma,”, respondi-lhe. “Eu resolvo o assunto”. “Então resolve o assunto depressa, faz-te um homem”. Chamei o vizinho ensonado, ainda de pijama, a resmungar por todos os lados e pedi-lhe ajuda. Para a resolução deste problema, são necessários dois cabos de bateria e um carro que, evidentemente, tenha a bateria carregada. Depois, colocam-se os dois carros de modo a que as baterias estejam próximas. Com ambos os carros desligados, liga-se o cabo vermelho ao positivo da bateria descarregada e a outra ponta ao positivo da bateria carregada. De seguida, liga-se o cabo preto ao negativo da bateria carregada e a outra ponta à terra, isto é, a uma parte de metal do carro descarregado – procurem uma parte metálica, não pintada e sem óleo e certifiquem-se que o cabo não fica no caminho de nenhuma peça móvel.Com os cabos bem presos, liga-se o carro que tem a bateria carregada e acelera-se um pouco (aí até às 2 mil rpm). Com o carro ligeiramente acelerado, dá-se à chave do carro descarregado que deverá pegar. Convém deixar os dois carros ligados uns dois minutos e depois removem-se os cabos na ordem inversa: primeiro desliga-se o negativo e depois o positivo. A coisa lá se fez mais ou menos desta forma e o carro voltou a dar sinais de vida, mas cuidado, avisou o vizinho, “Se o carro descarregado se aguentar em funcionamento, é conveniente deixá-lo ligado uns 20 minutos ou meia hora, para que o alternador carregue a bateria. No entanto, o alternador necessita, geralmente, de pelo menos 2 mil rpm para ser eficiente, pelo que o ideal é ir dar uma volta com o carro.” Arrancámos. Passado um momento, deixei o carro ir abaixo, acidentalmente. Quase fui espancado, tive de voltar atrás, chamei de novo o vizinho, agora colérico, levei com mais reprimendas, etc. Desta vez, o automóvel ficou sem problemas. Andámos uns bons quilómetros, tratámos de tudo o que havia a tratar. No regresso, pela estrada deserta, teve uma reacção estranha. Faltava-lhe o ar, sentia fortes dores no peito, arfava. “estou a morrer, não consigo respirar, ajuda-me depressa, por favor, resolve este assunto, faz-te um homem!” Estava a ver que se finava por ali. Não é que me importasse, mas metia-me medo. E eu tinha de me fazer um homem. Por um impulso, abri o porta bagagens e tirei de lá os cabos que utilizara há pouco para ligar à bateria do automóvel do vizinho. Para a resolução deste problema, foram necessários dois cabos de bateria e o meu carro, que tinha a bateria carregada. Depois, coloquei o meu carro de modo a que a bateria estivesse próxima do seu coração. Com o carro desligado, liguei o cabo vermelho ao seu peito (não sem antes lhe ter arrancado a parte de cima da roupa) e a outra ponta ao positivo da bateria carregada. De seguida, liguei o cabo preto ao negativo da bateria carregada e a outra ponta à terra, isto é, a uma parte do seu corpo – procurei uma parte metálica, não pintada e sem óleo e acabei por me resolver pelo seu cinto. .Com os cabos bem presos, liguei o carro, que tinha a bateria carregada e acelerei um pouco (menos do que até às 2 mil rpm). Deixei o carro ligado durante dois minutos e removi os cabos na ordem inversa: primeiro desliguei o negativo e depois o positivo. Passado uns minutos, melhorou, deixou de estrebuchar, as cores voltaram-lhe pouco a pouco às faces, que ficaram com um tom rosado, assemelhava-se um pouco a um suíno. Mas não estava fora de perigo. Continuei a abanar-lhe o corpo vigorosamente e andámos de um lado para o outro, sem nunca parar durante uns bons vinte minutos pela estrada, para não se ir abaixo. Recuperou e voltou ao seu estado normal, como se nada de invulgar tivesse ocorrido. Não me agradeceu, mas também não me descompôs. À noite, ao jantar, pagou-me a sobremesa e no dia seguinte acordou-me às 6.15. As nossas relações não se alteraram a partir daí, mas deixei de ter medo. Voltei a acordar às seis da manhã, tomo sempre um duche de água fria, que me fura os cornos e o coro cabeludo, até os cabelos fogem e caem para o ralo sujo da banheira, os ossos desfazem-se pouco a pouco, a pele fica engelhada, a tremer de uma ponta à outra. Mesmo assim, insulta-me e diz-me que gasto demasiada água. Os seus ataques tornaram-se cada vez mais frequentes e ocorrem, actualmente, a um ritmo diário. Sempre que tal acontece, olha-me suplicante, sabendo que depende de um gesto meu. (Faz-te um homem, faz-te um homem). Com o hábito, aprendi a prolongar a operação de salvamento. Descobri que é capaz de aguentar quase cinco minutos sem um carregamento de bateria. Os espasmos aumentam de intensidade e pelo corpo propagam-se lentamente umas manchas azuladas, com um tom intenso. Acaricio-lhe o cabelo e fixo-lhe as faces assustadas, que assumem uma beleza invulgar. Quando sinto que os ataques ameaçam roubar-lhe o último sopro de vida, dirijo-me em passos lentos para o carro, vou buscar os cabos e repito a mesma operação de sempre. Ligo o carro e sento-me ao volante, deixando o motor a trabalhar durante alguns minutos, enquanto fumo um cigarro e oiço a minha estação de rádio favorita. Nesses instantes, sorrio para dentro, o peito fica carregado de uma alegria transbordante e concluo que a vida não é assim tão má.

sexta-feira, março 25, 2011

"Todos os países tinham o seu contingente de imbecis, de sacanas e de putas. Era preciso ser um débil mental para acreditar que se passavam coisas importantes noutros lados.
A única diversidade era a da linguagem e a única novidade era que os mesmos imbecis, sacanas e putas se exprimiam numa língua diferente. Medhat recusava-se a absolver a aberração dos que aprendiam toda a espécie de idiomas estrangeiros a fim de penetrar o sentido das mesmas palermices que podiam ouvir na sua terra, sem precisar de se deslocar e gratuitamente. Pela sua parte, nunca se sentira tentado a percorrer o planeta à procura de sensações ditas transcendentes por se situarem em hemisférios distantes.
De que servia mudar de continente, aspirar a outros climas, se não se conseguia ver, em primeiro lugar, o que se passava à nossa volta?"

Albert Cossery – excerto de “Un complot de saltimbanques” , Tradução de Ernesto Sampaio, Edições Antígona.

sexta-feira, março 04, 2011

O Ângulo oferece genuínos produtos revolucionários!




A organização do próximo dia 12 de Março “pede para que todas as pessoas que se decidam manifestar levem escritas numa folha A4 as razões que os levaram ao protesto para depois serem entregues na Assembleia da República”
Boring! Qual é o interesse? Até parece que vão cantar as Janeiras de porta em porta, com uma folhinha na mão, para não se esquecerem da letra!?!
E se houver uma rabanada de vento que leva as folhas atrás? E se chover? As folhas ficam todas empapadas. Estou mesmo a ver que, quando acabar a manif, toda a gente atira os papéis para o chão. E aqueles que deitarem os papéis para o lixo, não devem mandar para a reciclagem.
Por isso, o Ângulo lembrou-se de fazer tshirts trendy, com uns slogans revolucionários à maneira. É mais prático, mais amigo do ambiente e mais cool. Assim, podem todos ficar com as mãos livres para carregarem o ipod.
Enviem já as encomendas para a nossa redacção. Os primeiros 100 compradores recebem grátis uma “tshirt Lugones”.
De que estão à espera? Peçam o dinheiro aos pais e despachem-se!

quinta-feira, março 03, 2011

A juventude tem a palavra


Para iniciarmos o dossier dedicado à Revolta dos Precários, o Ângulo resolveu dirigir-se ao epicentro, ao âmago do problema. Para isso, nada melhor do que entrevistar um jovem português. E resolvemos entrevistar um jovem normal ou, como se diz em termos jurídicos, um “homem médio”, daqueles que se encontram na rua e se mostram muito surpreendidos quando são abordados ou aqueles que são escolhidos aleatoriamente para fazer perguntas sobre o Estado da Nação ao Professor Marcelo, no Jornal Nacional.
Para encontrarmos um desses jovens anónimos, pedimos ajuda a Isabel Stilwell, directora do Jornal Destak, que nos indicou Bernardo Maria Espírito Santo Pinto Magalhães e Mello Teixeira Duarte, que também tem a enigmática alcunha de “Al Ganzel”.

Segundo as palavras de Isabel Stilwell, trata-se de um jovem perfeitamente normal, com os problemas e as angústias normais da gente grande acabada de chegar à idade adulta.
Encontrámo-nos com Bernardo na sua vivenda na Quinta da Marinha, ao final da tarde.
Ficaram desde logo à partida desfeitos alguns estereótipos referentes à chamada “Geração à Rasca” – Bernardo tem 30 e não mora com os pais, pois tem casa própria; não depende deles financeiramente e não ganha 500 euros por mês.

Bernardo vive sozinho desde os 24 anos, altura em que se tornou Administrador Executivo de uma famosa Consultora Financeira.
Não lhe falem da letra da música dos Deolinda. Damos a palavra a Bernardo:
“Acho estúpido o refrão da música que diz que eu fico a pensar bla bla mundo parvo onde para ser escravo é preciso estudar. Meus amigos, se estudam e são escravos, desculpem lá mas são mesmo parvos. Parvos porque gastam o dinheiro dos pais e dos nossos impostos a estudarem e a não aprender nada. Isso acontece porque estudam para aqueles cursos que não interessam nada, as letras e a filosofia. Depois ficam desempregados, vivem à mama dos pais e bebem copos e drogam-se. Pá, é tipo, eu também gosto de ler o tio Patinhas, o César das Neves e o José Eduardo dos Santos, aquele jornalista da RTP, mas uma coisa é ler essas cenas na praia, outras é tar a tirar cursos disso. Depois admiram-se e ainda se armam esquisitos e não querem trabalhar nos supermercados. Quando não têm qualificações para estar no mercado de trabalho. Não estudam gestão, engenharia, informática…claro, preferem os concertos, os fuminhos e os copos. Isto o mundo já se sabe, é dos que mandam e os que são mandados, andam aí com comportamentos decadentes e armam-se em queixinhas. Atenção, eu também gosto de me divertir, ainda este fim-de-semana dei um pulinho à Tailândia e bebi uns copos e coiso e tal, mas viver só disso…por isso é que o país está assim. Só se queixam.
Eu também trabalhei quando estava na universidade, o meu pai empregou-me lá na empresa dele em part-time e pagava-me uma miséria, menos de 1.000 euros, mais a mesada. E só me comprou o BMW quando eu entrei para o segundo ano do curso”

Segundo Bernardo, os números estão do seu lado:
“Um estudo da Universidade Católica revelou que a maioria dos licenciados não tem vontade de andar a cantar essa coisa esquerdóide dos Deolinda, sabem porquê? Porque a maioria dos licenciados ganha duas vezes mais do que a média e 80% mais do que quem tem o ensino secundário. Os meus amigos estão todos bem. A empresa de construção civil da minha namorada ganhou agora um concurso de obras públicas e o meu melhor amigo é Presidente de uma Fundação. Por isso, parem lá de ser vítimas. Os nossos pais andavam em guerra com…com…com outras pessoas e os nossos avós passavam fome. Mas não vale a pena viver no passado, como estas histórias todas que houve agora por ocasião do centenário do 25 de Abril. Vivam no presente, neste belo país!”

Mas Bernardo também confia nos benefícios de uma experiência no estrangeiro:
“Vejam o caso do filho do D. Duarte. Ou eu, que fiz um Mestrado numa Universidade inglesa e fui colocado num escritório de uns amigos dos meus pais, numa sucursal em Singapura. Abre os horizontes, é bom”.

O próprio Bernardo contribui para o avanço do país, pois tem sempre vários estagiários a trabalhar na sua empresa:
“Só contrato os melhores e olhe que eles querem todos vir para cá. Batalham muito entre si. E nós apoiamos esse espírito competitivo, é bom. Têm de mostrar que merecem vestir a nossa camisola”.

E serão bem pagos? Bernardo responde:
“Não pagamos à maior parte dos estagiários. Mas isso é de propósito. É para formar o carácter. É como nas universidades, aqui eles são os caloiros, os bichos. Também há praxes. Mas eles gostam”.
No final da entrevista perguntamos a Bernardo o significado da sua alcunha.
“Al Ganzel? Ahah, isso foi quando eu fumava umas cenas malucas há uns anos, em festas nas casas dos amigos dos meus pais, lá no Egipto e na Tunísia, com o Ben Ali e esses. Bons tempos! Esta túnica que tenho na cabeça arranjei-a lá. É gira e dizem que dá efeitos terapêuticos, tipo as pulseiras do Power Balance. Ofereci uma túnica ao Santana Lopes e outra ao Chakal”.

Para terminar, perguntámos a Bernardo se ia à manifestação do dia 12.
Ri-se.
“Acha? Isso vai contra os meus princípios. Parece que não percebem que só há uma forma de dizer basta: passar a fazer parte da solução”
Bernardo despediu-se, pois estava com pressa. Disse-nos que ainda tinha de passar por um Posto Médico, para arranjar um atestado e apanhar, a seguir, um avião para Angola.